Neste ano, se estivesse vivo, João Cândido faria 139 anos
Texto / Lucas Veloso | Edição / Pedro Borges | Imagem / Stephany Lopez/Divulgação
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Encruzilhada do Sul é uma típica cidade interiorana. Localizada no Rio Grande do Sul, da capital, Porto Alegre, de carro, a viagem até o município gira em torno de 3 horas. Foi ali que, em 1880, nasceu a pessoa mais conhecida da região, o marinheiro João Cândido Felisberto.
‘Candinho’ ou ‘Almirante negro’ são outros títulos com que a personalidade de Encruzilhada é chamado. Segundo o Instituto de Brasileiro de Pesquisa e Geografia, o IBGE, a cidade tem cerca de 25.877 mil pessoas, “mas nem todas conhecem quem foi o João”, garantiu Thiago Silva, morador da região
Aos dez anos, o menino foi para Porto Alegre aos cuidados do almirante Alexandrino de Alencar, amigo da família do patrão de seu pai. Com 14 anos, Candinho ingressou como “grumete” na marinha do Brasil, pelas mãos do próprio almirante Alexandrino. Na época, a instituição era destino de jovens excluídos e marginais da sociedade, em sua maioria, negros. Era uma prática comum que os rapazes chegassem ali indicados pela polícia.
No ano seguinte ele foi escolhido para trabalhar no Rio de Janeiro. Ali, seu espírito de liderança ganhou destaque em relação aos demais. Aos 20 anos já era instrutor de aprendizes-marinheiros. No início de 1900 tomou parte em uma missão na qual o Brasil disputou com a Bolívia o território do Acre. Na missão contraiu tuberculose pulmonar e voltou para o Rio de Janeiro onde ficou internado por noventa dias.
Recuperado, aos 29 anos, João Cândido foi enviado junto a outros marinheiros para a Inglaterra, a fim de conhecerem o equipamento do novo navio de guerra brasileiro batizado de Minas Gerais. Lá, os marujos brasileiros travaram contato com marinheiros ingleses, que compunham um dos mais politizados e organizados proletariados existentes no mundo. A partir de então, os marinheiros brasileiros passaram a questionar a situação da marinha no país.
No Brasil, os marinheiros exerciam trabalhos braçais cansativos, recebiam castigos corporais e eram alimentados com comida estragada. Naquela época, o país ainda estava sob o julgo da escravidão e as chibatas eram usadas com frequência para punições.
A situação dos marinheiros brasileiros ganhou popularidade entre os brasileiros. Quando as autoridades perceberam o clima de revolta instalado, João, reconhecido líder dos marujos, foi convidado a comparecer ao Palácio do Governo do então presidente Nilo Peçanha, que tentava fazê-lo aliado. Na reunião, ele resistiu à tentativa de aproximação e pediu o fim da chibata.
“[Eles eram ] amarrados em…em um aparelho, um…um pau…um ferro que tem nas cobertas dos navios. Eram expostos ali, amarrados e castigados brutalmente”, relembrou o almirante negro, em março de 1968, no Rio de Janeiro, quando o MIS – Museu da Imagem e do Som, coletou uma entrevista com o marinheiro, sob a condução do historiador Hélio Silva, a jornalista Dulce Alves, o superintendente e o diretor executivo do museu.
“Quando não eram as varas de marmelos, era uma corda intitulada… de barca, linha de barca. E sempre os carrascos colocavam agulhas e pregos, preguinhos pequenos na ponta, coberto…”.
No dia 16 de novembro de 1910, o marujo Marcelino Menezes foi punido com 250 chibatadas. Seis dias depois, na madrugada de 22 a 22 daquele mês, começava a mobilização dos marinheiros, conhecida por “Revolta da Chibata”.
Os marinheiros ocuparam dois navios brasileiros e apontaram para a baia de Guanabara pelo fim das chibatadas. João Cândido liderou o Minas Gerais, maior embarcação de guerra brasileiro. Outros navios, como São Paulo e Bahia se juntaram no protesto.
Após quatro dias tensos, a Revolta chegou ao fim quando o governo concedeu anistia aos envolvidos. Nos dias seguintes, os marinheiros ainda enfretantaram represálias. Ao todo, vinte e dois marujos foram presos na Ilha das Cobras, sede dos Fuzileiros Navais, enquanto João Cândido seguiu trabalhando como marinheiro no Minas Gerais.
Em dezembro daquele ano, aconteceu um motim armado na Ilha, que dividiu os marujos. João Cândido e alguns líderes da revolta de novembro posicionam-se contra o motim, julgando que este poderia enfraquecer a causa. Os amotinados foram massacrados em cerca de 24 horas. Muitos oficiais também terminaram mortos.
Apesar de ter se posicionado contra a revolta na Ilha das Cobras, João foi preso ao desembarcar do Minas Gerais, sob a alegação de ter desobedecido ordens superiores. Novas levas de prisões de marinheiros superlotaram os presídios.
Com outros dezessete marujos, o Almirante Negro foi transferido para a Ilha das Cobras, onde todos foram trancados em uma solitária, no dia 24 de dezembro. Dois dias depois ao abrir a cela, o oficial deparou-se com 16 dos presos mortos por asfixia. Apenas João Cândido e o soldado naval João Avelino sobreviveram.
Em 18 de abril de 1911, João foi transferido para o Hospital dos Alienados, sob a alegação de que era doente mental. Ali, ele permaneceu durante dois meses. Fez amizades que o deixaram fazer passeios pela cidade. Sem justificativa plausível para sua permanência no hospital, o almirante foi levado de volta ao presídio na Ilha das Cobras.
Dezoito meses depois, João e seus companheiros foram levados ao Conselho de Guerra para serem julgados. Na ocasião, foram defendidos por advogados contratados pela Irmandade da Igreja Nossa Senhora do Rosário. No primeiro dia de dezembro de 1912 foram absolvidos, mas excluídos da Marinha.
Ao sair da prisão, com 32 anos, João estava sem dinheiro e abatido. Após uns dias procurando emprego, foi acolhido pelo carpinteiro Freitas, que lhe ofereceu abrigo. Logo, passou a namorar Marieta, uma das filhas do carpinteiro, e tornou-se conhecido das pessoas do bairro.
Trabalhando no porto, o almirante encontrou lugar na tripulação do veleiro Antonico, que o marinheiro conduziu durante alguns meses pela costa brasileira, tornando-se inclusive comandante do barco depois que o proprietário adoeceu. Após o natal, casou-se na Igreja da Glória com a filha do carpinteiro que lhe deu abrigo.
Depois de pouco mais de um ano ele foi demitido do Antonico a pedido do comandante dos portos de Santa Catarina, Ascânio Montes, que era oficial do Minas Gerais durante a Revolta da Chibata e havia sido preso pelos revoltosos na ocasião.
Depois disso, foi difícil encontrar novo emprego, pois João Candido passou a ser boicotado, fosse pelo comandante do Porto de Santa Catarina, ou por sua saúde debilitada. Em 1917 a sua esposa morreu, vítima de uma infecção intestinal.
Três anos depois, João Cândido conheceu Maria Dolores, moça de 18 anos, pela qual se apaixonou. Os dois se casaram e passaram a morar em São João de Meriti, subúrbio do Rio de Janeiro. João passou a trabalhar de madrugada na descarga de peixes na Praça 15, enquanto procura ajudar Maria na criação de seus quatro filhos.
A relação foi marcada por diversas brigas. O fim acontece em 1928, quando Maria Dolores colocou fogo no próprio corpo na frente as duas filhas do casal, Nuaça, 8, e Zelândia, 4.
No ano seguinte, João conseguiria a guarda dos filhos. Em 1930, por supostas relações com líderes de esquerda que estariam conspirando contra o presidente da época Washington Luís, foi preso novamente. No mesmo ano passou a morar junto de uma nova mulher, Ana.
Em 1964 foi derrotada a “Rebelião dos Marinheiros”, liderada pela Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), que surgiu em 1962 lutando pelo direito da classe. Candido tomou parte na Rebelião, ocorrida no prédio da Associação e considerada por alguns a versão da década de 60 da Revolta da Chibata. Em 6 de dezembro de 1969, aos 89 anos, João Cândido morreu vítima de um câncer no intestino.
Turmalina 18-50
No ano passado, a companhia de teatro Cerne, de São João do Meriti, na Baixada Fluminense, inscreveu um projeto para recontar os últimos dias do almirante negro. O nome da obra foi baseada no endereço de Candinho. Rua Turmalina, lote 18, número 50.
Aprovado no edital Rumos, do Itaú Cultural, os artistas conseguiram financiamento para colocar em prática o projeto. No sábado, dia 9 de novembro, em apresentação no Ginásio Rodolfo Taborda, em Encruzilhada do Sul, o grupo estreou o espetáculo.
Com dramaturgia e direção de Vinicius Baião, a obra reúne Átila Bezerra, Gabriela Estolano, Graciana Valladares, Higor Nery, Leandro Fazolla e Madson Vilela no elenco.
Para o diretor, visibilizar a figura de Candinho com a cidade de São João foi um dos principais objetivos do projeto. “Nós sempre ouvimos falar muito pouco dele ali, onde ele morou. Nem as pessoas que moram na rua em que ele viveu”, comenta Baião. “Os meritienses não sabem que João passou por lá. Os livros de História falam da revolta de maneira muito superficial”, completa Fazolla.
“Nós sabíamos que seria uma homenagem a um homem preto, e isso é muito honroso. Aqui, na cidade onde o Candinho nasceu, eu entendi que o espetáculo é para os meninos e meninas pretas entenderem que eles podem ser o que quiserem. Não só como um número. Podem ser heróis, como foi o Candinho”, destaca Madson Vilela, um dos atores que protagoniza o herói em cena.
Elenco do espetáculo ‘Turmalina’ 18-50 em cena. (Foto: Stephany Lopez/Divulgação)
Responsável pela trilha sonora, direção musical e preparo vocal, Kadú Monteiro relembrou que apresentar a peça na cidade onde nasceu João Cândido foi marcante ao conhecer crianças da ONG Divina Providência. “Nós conhecemos elas em uma aula em que tocam em baldes, produzem som a partir daquilo. Nós fazemos isso no palco. O nosso melhor público serão elas, crianças negras vendo que elas podem e sabem fazer o que nós estamos mostrando”.
O processo para composição do espetáculo contou com mesas de debates e bate-papo sobre apagamento histórico do líder da Revolta da Chibata, direitos humanos e o protagonismo negro nas artes. Os encontros foram registrados em fotos e vídeos e serão doados pelo grupo ao Museu João Cândido, em São João do Meriti.
A atriz Graciana Valladares relembrou a importância de trabalhar com um elenco formado por artistas negros. “Isso nos permitiu diálogos importantes para construirmos essa pesquisa coletiva, algo que nem sempre acontece. Tem trabalhos onde não podemos questionar sobre questões que tratam sobre o nosso próprio povo”, avaliou.
Maya Koketsu, produtora executiva responsável do programa Rumos, ressalta a importância do apoio às expressões culturais no país. “Esse projeto foi de muito afeto, como são os todos os nossos processos. A gente não é patrocinador que dá o dinheiro e quer um resultado final, mas a gente está em tudo, acompanhamos todas as situações, e vibramos com as conquistas”, observou. “O trabalho de Turmalina é a prova disso”.
João Cândido como herói brasileiro
Em março deste ano ano, o deputado federal Chico D’Angelo (PDT/RJ) propôs que o nome de João Cândido constasse no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
O Livro, composto por páginas de aço, é guardado no Panteão da Pátria Tancredo Neves, na Praça dos Três Poderes em Brasília. Hoje, o documento coleciona dezenas de nomes, como o de Tiradentes, quem abre a relação dos heróis. Também consta do livro, sem a indicação individualizada dos nomes, um tributo aos seringueiros recrutados para trabalhar na coleta de látex durante a Segunda Guerra Mundial, os Soldados da Borracha.
Na justificativa do projeto, o parlamentar argumentou que a história de um país não é feita apenas com a ação de grandes homens e mulheres, geralmente ligados aos segmentos dominantes da sociedade ou ao poder político (chefes de estado, políticos, monarcas, militares, entre outros), mas também, no cotidiano das relações sociais e das lutas políticas.
“Esta proposição legislativa vai nessa última direção ao propor que seja inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão Nacional, na capital da República, o nome de João Cândido Felisberto, marinheiro e líder de um dos movimentos sociais mais importantes da Primeira República- a Revolta da Chibata (1910), conhecida também como “Revolta dos Marinheiros””, escreveu.
O processo para que um novo nome seja incluído no Livro passa pelo Senado e a Câmara dos Deputados, que precisam aprovar uma lei.
Vários projetos tramitam nas duas Casas do Congresso Nacional para acrescentar heróis e heroínas ao livro. Atualmente, no Senado, aguardam decisão os projetos que homenageiam o General Joaquim Xavier Curado (PLC 124/2007), Bárbara Pereira de Alencar (PLC 75/2012) e Joaquim Nabuco (PLS 383/2012).
Já na Câmara tramitam outros nomes, como Carlos Marighela (PL 2857/2011), Cacique Serigy (PL 3724/2012), Chefe Tupiniquim Tibiriçá, o Chefe Temiminó Araribóia e o Potiguar Poti (PL 3716/2012), Luiz Carlos Prestes (PL 1771/2011), João Goulart, Leonel Brizola (PL 1642/2011) e Machado de Assis (PL 6623/2009).
O líder quilombola Zumbi dos Palmares é um nome que conta no livro há anos. No ano passado, o patrono da abolição no Brasil, Luís Gama foi homenageado. Gama foi escravizado até seus dez anos de vida, analfabeto até 18 e se tornou um dos principais intelectuais do movimento abolicionista brasileiro.
*O repórter viajou a convite do Rumos do Itaú Cultural.