Ana Cláudia Silva Mielke, mulher negra pré-candidata a deputada estadual pelo PSOL-SP, conversou com o Alma Preta sobre a candidatura, assim como sobre sua história, propostas, influência de Marielle Franco e razões que a levaram a se candidatar
Texto / Solon Neto
Imagens / Reprodução (Arquivo pessoal)
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A representação política da população negra e feminina é minoritária no Congresso Nacional, um fenômeno que se estende às instâncias estaduais.
Em São Paulo, a Assembleia Legislativa teve em apenas duas ocasiões mulheres negras em sua composição. Leci Brandão (PCdoB), o caso mais recente, ainda ocupa o plenário.
Leci Brandão tem uma plataforma baseada na defesa de direitos humanos e combate ao racismo. Caso semelhante ao de Marielle Franco (PSOL), vereadora assassinada no Rio de Janeiro em março de 2018. Ou mesmo de Áurea Carolina (PSOL), também vereadora, em Belo Horizonte-MG.
Nas eleições deste ano, novos nomes têm surgido com propostas nesse eixo, apresentando candidaturas posicionadas e propostas voltadas à população negra.
E esse é o caso da moradora do bairro de Campos Elíseos, em São Paulo (SP), Ana Cláudia Silva Mielke, da coordenação executiva do coletivo de comunicação Intervozes, um dos interlocutores do país na luta pela democratização da comunicação.
Aos 39 anos, formada em jornalismo e mestre em ciências da comunicação, ela é uma das mulheres negras que aceitou o desafio de tentar um lugar na política, e é pré-candidata a deputada estadual pelo PSOL.
Da periferia de Vitória (ES) à candidatura em São Paulo
A pré-candidata a deputada estadual pelo PSOL nasceu e cresceu em Cariacica, Espírito Santo. “Um município considerado, digamos assim, ‘patinho feio’ da região metropolitana [de Vitória (ES)], porque é o mais pobre”, segundo ela mesma conta.
Lá, em um bairro de periferia, Porto de Santana, viveu até os 25 anos. Boa aluna, foi estudante de um colégio federal local e em seguida ingressou na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Ela conta que foi a escola o fator fundamental para sua formação. Lembra dos bons professores e dos livros a que teve acesso, de forma que puderam moldar uma personagem de liderança.
Desde o colégio, Ana Cláudia Mielke foi representante de turma e na universidade rapidamente se filiou ao Centro Acadêmico, entrando de cabeça nas atividades políticas do curso em conexão com os projetos federais na educação.
Lá, começou a ler Sueli Carneiro e, por meio dela, conheceu Angela Davis.
Pouco depois de se formar, próxima de correntes políticas negras e socialistas, filiou-se ao PSOL e começou a trabalhar para o mandato da deputada estadual Brice Bragato (PSOL), que à época exercia seu 3º mandato no Espírito Santo.
Ainda em 2006, ela ajudou na campanha de reeleição de Brice Bragato, mas sem sucesso na empreitada, mudou-se para São Paulo, onde passou a trabalhar na Secretaria Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ao mesmo tempo que cursava seu Mestrado.
Assassinato de Marielle e renovação política são motores da candidatura.
Ana Mielke quer transformar a representação política, sua candidatura tem esse intuito.
“O mandato acaba se tornando o lugar de militância das pessoas quando, na verdade, ele deveria ser um instrumento para que essas pessoas militassem em outros espaços, e construíssem movimentos sociais, por exemplo”, afirma.
Ela faz parte de uma das correntes do PSOL, o coletivo Rosa Zumbi, em homenagem a Zumbi dos Palmares e Rosa Luxemburgo. Fundado em 2012, o grupo acredita na formação de novas lideranças negras e femininas.
“Isso a gente conseguiu levar à frente no Rosa Zumbi, e acordamos entre nós que iríamos promover candidaturas de pessoas jovens, não no sentido jovem na idade, mas que não estão há longa data à frente de mandatos. E que essas pessoas deveriam ser necessariamente mulheres ou negros”, ressalta.
Dessa forma, conta a pré-candidata, mesmo em um cenário de desalento na política e crescente descrédito sobre a democracia burguesa representativa, ela resolveu concorrer nas eleições.
Sua candidatura emergiu de uma soma de fatores. Por um lado, sua corrente precisava de uma candidata nas eleições de 2018 para dar continuidade às candidaturas de 2016. Por outro, o assassinato de Marielle Franco, abriu uma série de questionamentos aos quais sentiu necessidade de rebater.
Ela conta que no dia do crime, estava em Salvador durante o Fórum Social Mundial e, ao retornar a São Paulo, se chocou com o teor dos questionamentos.
“Eu vi que algumas pessoas estavam questionando a Marielle enquanto mulher, negra, lésbica e moradora da Maré. Questionando no seguinte sentido: questionando a relação entre a sua negritude e fato de ela ter sido executada, por exemplo, achando que isso era um fato menor, que não era por isso que ela foi executada”, lembra.
Apesar de admitir que o assassinato esteja ligado à atuação de Marielle sobre interesses poderosos, ela não deixa de apontar que o racismo é algo evidente no crime.
“Ela era um corpo matável. Se ela fosse uma mulher branca de classe média, mexendo nesse mesmo conjunto de interesses poderosos, talvez eles tivessem pensado duas vezes antes de mandar executá-la”, afirma Ana Cláudia Mielke, lembrando que há casos no Rio de Janeiro de denunciadores longevos, como Marcelo Freixo, enquanto Marielle durou pouco mais de um ano.
O debate insuflado por sua morte, conta, girava em torno de acusações contra o movimento negro e feminista de criação de “identitarismos” que estariam por isso atrapalhando o debate dos movimentos sociais.
Ana Cláudia conta que essa situação foi um ponto de virada que a empurrou a candidatar-se. Foi a partir de seu posicionamento na defesa de uma visão negra e feminina sobre a memória e o legado de Marielle, dentro e fora do partido, ela foi escolhida como candidata a concorrer às eleições com intuito de:
“Ocupar os espaços e fazer enfrentamentos, inclusive dentro de um campo da esquerda que não consegue enxergar a centralidade de um debate do racismo estrutural no Brasil”, explica Ana Cláudia.
A via instiucional pode ajudar o combate ao racismo no Brasil?
“Eu sou de uma formação que acredita que é necessário ocupar tanto pela via institucional, e disputar o Estado, digamos, por dentro, quanto por uma via de mobilização social, de movimento social’, afirma a pré-candidata.
Para ela, sua candidatura faz parte de uma estratégia que mantém vias paralelas, na disputa institucional e no fortalecimento dos movimentos sociais.
Ela acredita que há uma necessidade permanente da presença de vozes negras dentro das Câmaras e Assembleias Legislativas não só para legislar, mas também para fiscalizar a execução de políticas do poder público no que concerne à população negra e pobre.
“Se você não tem ninguém ali que possa olhar para essas políticas e apontar o dedo em como elas são falhas em atender a população negra e pobre do Estado de São Paulo, essas políticas vão sendo implementadas sem nenhuma autocrítica e sem nenhum controle social efetivo”, aponta.
“Se você não tem, por exemplo, pessoas negras que façam o debate racial, e precisa botar isso entre parênteses, atuando no acompanhamento das políticas de segurança, é óbvio que as políticas de segurança vão ser eugenistas. Elas vão ser políticas que exterminam a diferença, e a diferença é a negritude, nesse caso, porque o padrão é branquitude”, ressalta.
As propostas de uma candidatura negra
Apesar de ainda não divulgado, o programa da candidata já está sendo trabalhado. Baseada nos direitos humanos e voltada à população negra e feminina, Ana Cláudia estruturou sua candidatura sob seis eixos. São eles:
1. Comunicação e cultura enquanto direito humano.
2. Políticas para negros que valorizem a identidade e promovam a igualdade.
3. Mulheres sem medo de lutar, viver e ser feliz.
4. Educação para Cidadania e Direitos Humanos.
5. Segurança pública pautada na garantia dos direitos humanos.
6. Participação social como condição essencial da Democracia.
Entre as medidas que pretende implementar estão as cotas em setores públicos até agora pouco ocupados. É o caso do sistema judiciário, em que pretende propor uma ação afirmativa para aumentar o número de negros em seus quadros.
“A gente precisa ter diversidade lá dentro por uma questão de representatividade, mas principalmente porque a gente precisa mudar o olhar que o sistema de Justiça tem sobre as pessoas negras no estado de São Paulo”, aponta Ana Cláudia.
A candidatura também trabalhará valorizando, através de propostas de leis de fomento estaduais, iniciativas de comunicação populares, comunitárias e independentes.
Além disso, ela quer valorizar espaços culturais, tirando o controle de alguns deles de grupos privados e passando-o para coletivos de grupos culturais periféricos.
Ana Cláudia também lembra que pretende criar formações sobre racismo para agentes públicos de diversos setores, como saúde, educação, assistência social e segurança. Da mesma forma, quer fortalecer a implementação de leis como a 10.639 e a 11.245, voltadas para o ensino de história da África e indígena no ensino básico, focando no combate à lógica meritocrática em sala de aula e a implementação de práticas pedagógicas voltadas à diversidade. Para tal, pretende levar adiante discussões de gênero, sexualidade e combate ao machismo à sala de aula.
Neste campo, a pré-candidata se posiciona e afirma que irá combater toda e qualquer proposta no âmbito do “Escola sem Partido”, projeto que, para ela, pode impedir o debate de questões como o racismo dentro de sala de aula.
Os professores também tem espaço no programa, com propostas para a valorização da categoria. Ana Mielke também propõe a defesa de creches e hospitais da USP, e a garantia de assistência estudantil aos estudantes de baixa renda, com foco em mães universitárias.
Em relação às mulheres, uma de suas propostas é na área da saúde, garantindo parto humanizado pelo SUS e um melhor atendimento às mulheres no parto, com atenção especial às negras e pobres. Ela lembra que há um número alto de relatos de violência obstétrica no setor público de saúde, o que se intensifica em relação às mulheres negras. Essa violência também se estende aos casos de aborto, situação que para sua candidatura deve ser legalizada tornada segura de forma a garantir a saúde da mulher.
Outro ponto importante entre as suas propostas é o aumento do investimento e o fortalecimento de uma rede eficiente de proteção à mulher vítima de violência. A proposta inclui delegacias da mulher, casas de acolhimento, ampliando os horários de atendimento destes e outros serviços. Ainda, estão contempladas em seu programa as mulheres lésbicas e transsexuais, para quem pretende fomentar políticas de saúde. Da mesma forma, pretende apresentar políticas públicas de saúde de assistência social às mulheres na prostituição.
A falta de empatia do povo com o sistema político também é questão relevante entre suas propostas, que pretendem instituir mecanismos de participação popular nas politicas públicas estaduais, fortalecendo conselhos participativos temáticos, e construindo dispositivos de democracia direta para discussão e aprovação de alguns temas de interesse público.
Por fim, a candidata também se colocar contra a chamada “guerra às drogas”, apontando que essa política tem criado encarceramento em massa e morte de jovens negros e pobres. O índice de letalidade policial de São Paulo também será foco de sua candidatura, que quer propor discussões para a desmilitarização da polícia militar do estado.
Ela pretende apoiar a discussão da legalização de drogas como forma de combate a esse cenário, da mesma forma que pretende apresentar discussões sobre penas alternativas, visando desafogar o sistema carcerário, ação reforçada por uma maior número de audiências de custódia.
Representatividade não é só figuração
A pré-candidata do PSOL acredita que vivemos um cenário de distanciamento e desconfiança em relação aos políticos devido à criminalização da política, mas não só isso.
Segundo ela, a forma como a política tem se apresentado coloca representantes distantes da realidade do cidadão comum, longe do cotidiano das pessoas. Portanto, para ela, a crise que vivemos é também em larga medida culpa do comportamento da chamada classe política
O antídoto da representatividade, porém, não é o suficiente para garantir uma mudança. Para ela, é necessário uma postura popular.
“Eu acho que quando você está discutindo representatividade, você não está discutindo só representatividade do ponto de vista imagético da coisa, digamos assim. Você está discutindo que você quer que pessoas que estejam inseridas no seu cotidiano, na sua vida, na forma como você enxerga a vida, como você usa a vida, façam parte do sistema político”, afirma Ana Cláudia.
Concluindo a entrevista, ela demonstra esperança em fazer parte de um processo de representatividade real com sua candidatura, propondo uma renovação político e ética.
“Eu acho que isso recompõe o lugar da política. Recompõe um elo entre representante e representado, que eu acho ter se perdido no último período”, conclui.