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Ditadura militar do Brasil monitorou movimentos de apoio à Palestina

Levantamento inédito feito pela Alma Preta mostra o temor do regime militar de ataques terroristas e o monitoramento dos protestos palestinos no Brasil.
Arte: Chris Dias/Alma Preta.

O movimento palestino mais monitorado pela ditadura militar foi a Organização para Libertação da Palestina (OLP), que tinha como líder Yasser Arafat.

— Arte: Chris Dias/Alma Preta.

21 de janeiro de 2025

Manifestações palestinas com o apoio de partidos de esquerda e do movimento negro em resposta a massacres de Israel. Crianças e mulheres libanesas e palestinas assassinadas em bombardeiros. Movimentos sociais palestinos criminalizados. Pessoas palestinas rotuladas como terroristas.

A descrição remete à atual fase do conflito histórico entre Israel e Palestina, que começou em outubro de 2023. A guerra foi deflagrada por Israel depois de uma operação militar do Hamas que assassinou 1.200 pessoas, a maioria israelenses.

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Mas a referência é à Primeira Guerra do Líbano (1975-1990), que resultou em cerca de 120 mil mortes e aconteceu nos anos finais da ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Segundo relatórios dos serviços de inteligência da época, palestinos e apoiadores da causa foram monitorados pelo regime até, pelo menos, 1986. Ou seja, depois do fim da ditadura no Brasil, em 1985.

Os documentos, que constam do Arquivo do Estado de São Paulo, foram obtidos em pesquisa realizada pela Alma Preta

Nos relatórios da ditadura, normalmente classificados como “Confidencial”, há listas com os nomes de pessoas e organizações que participaram das manifestações pró-Palestina da época. 

O perfil dos monitorados é diverso e inclui lideranças palestinas e de outros movimentos sociais, políticos e professores.

O movimento palestino mais monitorado foi a Organização para Libertação da Palestina (OLP), que tinha como líder Yasser Arafat.  O representante da OLP no Brasil, Farid Sawan, era figura recorrente nos registros dos militares.

Ali Al-Khatib, superintendente do Instituto Jerusalém do Brasil e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Árabes da Faculdade de Campinas (FACAMP), se recorda que a luta palestina também era criminalizada na imprensa durante o regime militar.

“Esse período da ditadura foi muito ruim, muito bravo. A gente não tinha os órgãos de divulgação e, na época, a imprensa retratava o palestino como sinônimo de terroristas”, lamenta Al-Khatib.

Apesar do monitoramento, a ditadura não tinha uma política internacional alinhada a Israel.

Os generais entendiam que o país poderia ampliar as relações comerciais com as nações árabes e construir um projeto de nação forte na arena internacional, com maior independência dos Estados Unidos, principal aliado de Israel.

O Massacre de Sabra e Chatila

A maioria das informações disponíveis é da década de 1980, em especial sobre os protestos que ocorreram a partir de 1982, quando aumentaram as tensões entre palestinos e israelenses. 

O conflito culminou no “Massacre de Sabra e Chatila” em campos de refugiados no Líbano, que ocorreu entre 16 e 18 de setembro daquele ano. Os ataques, liderados por Israel, mataram cerca de 3,5 mil palestinos e libaneses em apenas dois dias.

Para fins de comparação, o conflito atual matou mais de 48 mil pessoas desde o início de outubro de 2023. 

O episódio foi um dos mais sangrentos da primeira Guerra do Líbano, que tem como um de seus marcos a invasão do exército israelense no sul do país, em 1978.

O objetivo era eliminar as bases da OLP. Um bombardeio na região matou cerca de 2.000 palestinos e libaneses e forçou centenas de milhares de civis a se deslocarem. 

No mesmo ano, grupos paramilitares libaneses passaram a ser treinados, armados e financiados por Israel

O país também intensificou os bombardeios e ataques aéreos contra o Líbano, tentando provocar uma resposta que lhe desse uma justificativa para invadir o país.

A “oportunidade” ocorreu em 3 de junho de 1982, quando Shlomo Argov, o embaixador israelense no Reino Unido, foi alvo de uma tentativa de assassinato. 

O ato era de autoria da organização Abu Nidal, uma dissidência do Fatah que não fazia parte da OLP.

A OLP em si negou a autoria do ataque mas, mesmo assim, o atentado foi o pretexto de Israel para uma ação militar.

Em 15 de setembro de 1982, as forças israelenses cercaram os campos de refugiados de Sabra e Chatila e realizaram ataques aéreos. Em seguida, os exércitos paramilitares incitados pelos israelenses atacaram os campos de refugiados.

Marinha monitorou OLP pelo menos até 1986

O documento mais completo sobre os movimentos palestinos é um relatório produzido pela Marinha do Brasil. Classificado como “Confidencial”, ele tem datas de outubro e novembro de 1986 — ou seja, após o fim da ditadura militar. 

É importante lembrar que o Sistema Nacional de Informação (SNI) foi extinto apenas em 1990, em um dos primeiros atos do governo Collor (1990-1992).

Apesar de tratar de diferentes movimentos palestinos, o enfoque do relatório está na OLP.

De acordo com o documento, cerca de 70% dos fundos da organização vinham do pagamento de palestinos ao redor do mundo, que doavam cerca de 5% do salário para a OLP.

O arquivo conta sobre o surgimento da OLP, em 17 de janeiro de 1964, e do braço armado da organização, o Al Fatah, ambos com participação ativa do líder Yasser Arafat. 

Os militares brasileiros escreveram que, depois de uma primeira fase de foco na luta armada, a OLP passou a buscar reconhecimento internacional, com um número cada vez maior de escritórios do grupo em diferentes países.

No Brasil, esse movimento começa com a chegada do representante da OLP no Brasil, Farid Sawan, em abril de 1979. Segundo o documento da ditadura, passou-se a ventilar a possibilidade de um escritório no Brasil, mais precisamente em Brasília. 

OLP no Brasil

“O movimento ganha força quando os palestinos, lá na gestão do Yasser Arafat, conseguiram firmar a Autoridade Palestina e vieram para cá com um embaixador, que era o Farid Sawan, que acabou obtendo um foro de embaixada. Então, o movimento foi crescendo”, explica o advogado Airton Soares.

Soares é figura recorrente nos registros nos atos que condenavam os ataques de Israel. Ele foi deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) de 1980 a 1985 e participou de muitas das ações de apoio à Palestina nesse período do fim da ditadura militar.

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Uma delas foi uma visita de líderes sindicais, estudantis e políticos para o Líbano, organizada por Farid Sawan, para conhecer as instalações da OLP no país e se encontrar com Yasser Arafat. 

Segundo os documentos, Airton Soares teria dito para a imprensa libanesa: “Nós nos convertemos nos porta-vozes da OLP para exercer pressões sobre o nosso governo a fim de que se abra um escritório dessa entidade no Brasil”. 

Quem também participou dessa viagem foi Milton Barbosa, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU).

A OLP abriu seu escritório oficialmente em 14 de julho de 1984, em Brasília. Como previsto, seu primeiro representante oficial foi Farid Sawan.

Manifestações do Brasil

10 de junho de 1982

Uma das manifestações monitoradas e documentadas aconteceu uma semana após o atentado contra o embaixador israelense. 

O ato teve concentração no Largo São Bento, no centro de São Paulo, e contou com cerca de 400 manifestantes. No fim do protesto, bradou-se palavras de ordem contra os Estados Unidos, que apoiava Israel.

29 de novembro de 1982

O grupo de palestinos e apoiadores fez uma nova manifestação na Praça da Sé, também no centro da capital paulista.

Era Dia Internacional da Solidariedade ao Povo Palestino, data criada em 1977 em referência ao dia da aprovação da resolução da ONU que recomendou a partilha da Palestina entre judeus e árabes 30 anos antes.

O ato, que era uma resposta ao Massacre de Sabra e Chatila, começou às 16h30. Havia cartazes com as mensagens “Chega de Ataque aos Povos Indefesos”, “Reagan Terrorista”, “Negros apoiam a OLP”, entre outras.

Por volta das 18h, agentes da ditadura militar registaram cerca de 100 pessoas no ato. Entre os oradores estavam Aldo Rebelo, presidente da UNE, e Souheil Sayegh, representante do Comitê de Solidariedade aos povos Libaneses e Palestinos. 

19 de setembro de 1983

Grande ato ecumênico em memória das vítimas da Guerra do Líbano, com a presença de cerca de 800 pessoas, aconteceu no fim da tarde, na Praça da Sé.

Lideranças religiosas de diferentes crenças se manifestaram. O bispo Dom Angélico Sândalo, que celebrou o casamento de Lula e Janja em 2022, estava presente e afirmou que “os palestinos têm o direito a uma pátria, assim como os israelenses”. 

O reverendo Lopes, da Igreja Luterana, criticou a invasão ao Líbano e condenou o apoio dado pelos Estados Unidos. “A fome e a miséria no Brasil deve-se também à política que os Estados Unidos adotam nos países subdesenvolvidos”, afirmou.

No altar, estavam faixas como “Campos de Concentração, vergonha da humanidade”. Ao final do ato, os presentes cantaram a música de Geraldo Vandré, “Para não dizer que não falei das flores”. 

Uma liderança do Comitê de Solidariedade Árabe Palestino encerrou as atividades com um agradecimento aos presentes. A manifestação se encerrou às 17h50.

O medo de palestinos e libaneses 

Os organizadores das manifestações desse período enfrentavam uma dificuldade de mobilização dos descendentes de palestinos e libaneses, revela Airton Soares em entrevista à Alma Preta: o medo de quem tinha família na zona de guerra.

“O grande entrave para mobilizar os descendentes de palestinos aqui no Brasil era que a maioria tinha parentes lá nas áreas, tanto na Cisjordânia quanto em Gaza. E as pessoas tinham medo de que qualquer atividade aqui pudesse representar um risco maior para as famílias que estavam lá”.

Ali Al-Khatib esteve em Sabra e Chatila meses antes do massacre e relatou a situação que encontrou lá. 

“Eu fui em dezembro de 1981 e fiquei até início de janeiro de 1982. E fui em Sabra e Chatila. Conheci a triste realidade. Cheguei a ver como viviam os palestinos, todo o sofrimento. Eles não tinham direito ao trabalho, não tinham direito à escola, não tinham direito à cidadania, não tinham direito a nada”, recorda.

Monitoramento não representava apoio à Israel

Apesar do monitoramento, os ataques em Sabra e Chatila foram repudiados pela diplomacia brasileira do regime militar. 

O então presidente, general João Batista Figueiredo, condenou os ataques durante a abertura da sessão das Nações Unidas em 27 de setembro de 1982:

“Vejo, com enorme apreensão, a persistência da crise no Oriente Médio, cujo aspectos mais salientes são, neste momento, o conflito entre o Iraque e o Irã e as sequelas da ação militar que vitimou o Líbano, país com que mantemos profundas e fraternas relações. Ainda recentemente, a opinião mundial ficou profundamente chocada com o massacre de civis palestinos em Beirute”, afirmou o general brasileiro. 

Os generais queriam posicionar o Brasil como um país que não se curvava às principais potências militares, principalmente aos Estados Unidos. 

Por isso, especialistas em política externa analisam que as relações diplomáticas com Israel nos anos 1970 e 1980 foram marcadas pelo “pragmatismo responsável” do então presidente, Ernesto Geisel. 

Segundo o artigo “O lugar de Israel e da Palestina na política externa brasileira: antissemitismo, voto majoritário ou promotor de paz?“, de Guilherme Casarões e Tulio Vigevan, Geisel tinha interesse no petróleo dos países árabes. Por isso, ele buscava uma “atuação externa autônoma”.

Na prática, Geisel tinha uma inclinação maior para o favorecimento de interesses pró-árabes. Um exemplo disso foi quando o Brasil votou a favor da resolução das Nações Unidas que condenou o sionismo como forma de racismo e discriminação racial, em 1975. 

Na América Latina, apenas Brasil, Cuba e México votaram a favor, divergindo dos Estados Unidos.

Um ano antes, o Brasil votou a favor da resolução que dava o status de observador para a OLP, outro fato entendido como uma vitória para os palestinos.

Medo do ‘terrorismo’

Apesar do posicionamento a favor dos árabes na política externa, documentos mostram que o regime temia que ativistas pró-Palestina se envolvessem com atividades terroristas no Brasil. 

Soares conta que havia uma rede internacional de vigilância de diferentes países, e Israel compartilhava informações sobre agentes considerados subversivos.

“Havia um perfeito intercâmbio entre o serviço de informação de Israel com o serviço de informação da ditadura militar. Era evidente que havia”, relata o ex-deputado federal do PT.

Entre os documentos, há uma “mostra de material usado pelos terroristas palestinos contra Israel”. O relatório explica o funcionamento de explosivos, alguns deles no formato de cartas, que são acionados quando o envelope é aberto.

Essas informações eram compartilhadas entre os setores de inteligência dos diferentes países.

“Graças à divulgação feita pela polícia, apenas uma [carta] foi aberta descuidadamente. Tratou-se de um funcionário da embaixada de Israel em Londres, matando-o”, conta o relatório.

Um documento de abril de 1975 mostra que o governo brasileiro estava em alerta com a presença de Mai El Arga e Sail Arga, pessoas que tinham passaportes chilenos e que seriam do grupo Habash, descrito pelos militares como terrorista.

“Viajam pela América do Sul afim de recrutarem palestinos ou sul-americanos, dispostos a realizar atentados na Europa e Israel”. 

O documento é classificado como “Confidencial” e tem o título de “Terroristas Palestinos”. 

Eles não foram os únicos. Em 31 de outubro de 1982, um relatório da ditadura apontava que Hibhi Halloum, também conhecido como Abu Firas, do Al Fatah, estava detido no Brasil. 

No aeroporto de Amsterdã, ele deixou duas maletas, com seis armas, bombas, oito quilos de TNT, cinco granadas de mão e munições.

Relação da OLP com as organizações negras

Cecilia Baeza, doutora em Relações Internacionais, professora na Sciences Po Paris e especialista na luta palestina, conta que a OLP adotou como estratégia se associar a movimentos sociais em cada país onde se instalou. 

Na Nicarágua, por exemplo, a organização se aproximou da Frente Sandinista, responsável por derrubar o governo do ditador Somoza. A OLP teve até treinamentos em conjunto com os guerrilheiros sandinistas.

No Brasil, ela afirma que houve um profundo diálogo com o Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980.

“A Frente Sandinista, a Frente Farabundo Martí, em El Salvador, essas guerrilhas tinham muitos contatos, até treinamentos conjuntos com a OLP. Nos anos 1980, vai ter uma aproximação mais ampla, com vários partidos de esquerda, e o Partido dos Trabalhadores no Brasil é um deles”, explica Baeza. 

Ali Al-Khatib, do Instituto Jerusalém do Brasil, reforça a solidariedade que existia naquele momento.

“A gente tinha apoio das organizações sindicais e dos partidos políticos. A gente tinha o apoio do MNU e da UNE. Era muito forte esse apoio que contribuía bastante na mobilização”, conta.

Em um dos relatórios da Marinha, há a confirmação dessa relação entre palestinos e organizações políticas do movimento negro.

Um dos protestos documentados pela ditadura militar aconteceu em 22 de junho de 1982, em frente ao prédio da Câmara Municipal de São Paulo. Entre os 150 presentes, estava Milton Barbosa, do MNU.

Milton também foi observado no protesto do dia 18 de agosto de 1982, que ocorreu em frente ao Consulado dos Estados Unidos.

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  • Pedro Borges

    Pedro Borges é cofundador, editor-chefe da Alma Preta. Formado pela UNESP, Pedro Borges compôs a equipe do Profissão Repórter e é co-autor do livro "AI-5 50 ANOS - Ainda não terminou de acabar", vencedor do Prêmio Jabuti em 2020 na categoria Artes.

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