Após o primeiro turno das eleições presidenciais 2022, uma série de ataques contra o povo nordestino se consolidou no país, a partir do argumento de que essas pessoas não sabem votar, portanto, é o único motivo do candidato do PT – Luiz Inácio Lula da Silva – ter ganhado maior número de votos em estados do Nordeste e Norte do Brasil.
No entanto, esse ódio ao povo nordestino não é um evento inédito na história nacional. É um fenômeno social que ocorre desde o início do século XX devido à migração das pessoas do Nordeste para estados do Sudeste e Sul, em busca de oportunidades de trabalho. É o que explica o pesquisador Marcelo Vasconcelos, articulista, escritor independente, membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB.
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“Quando a migração do povo nordestino começou a chamar a atenção como fenômeno social migratório aos grandes centros urbanos, notadamente por conta da construção da rodovia Rio/Bahia, começou então a ser observado como fenômeno social relevante”, pontua o pesquisador.
Durante a década de 1930, a população local do Sudeste e autoridades públicas podem ter passado a enxergar os migrantes do Nordeste de forma negativa, pelo menos no que tocava a segurança pública, pois foi a partir daquela década que a figura do cangaceiro começava a aparecer na literatura de forma romantizada, como no livro “Os Cangaceiros” de José Lins do Rego, segundo Marcelo.
“Dessa leitura de comportamento do homem do Nordeste bruto, viril e quase alheio a sentimentos é que se constrói – ou se reforça – a imagem do nordestino como um ser violento. Lá pelos idos dos anos de 1970, era comum haver repressão policial aos festejos e ajuntamentos como forrós e outras manifestações da cultura do Nordeste, como a capoeira também” reforça o pesquisador.
Marcelo Vasconcelos ainda salienta que processo migratório, particularmente em relação a São Paulo, deu-se mediante o deslocamento das massas de trabalhadores do sertão do Nordeste, povoando a capital paulista e sua região metropolitana desde a primeira década do século XX, ainda que de forma sutil
“Se por um lado a economia nordestina galgou melhoras, freando a saída de parte de seus habitantes, por outro, essa população passou a ser estigmatizada por uma parte dos ‘sudestinos’, mais notoriamente paulista e carioca. Esse estigma aos nordestinos é fruto de pensamentos xenófobos regionalizados gerados em parte pelo histórico da região Nordeste”.
Intolerância
Um dos fatores determinantes no surgimento dos estigmas ao povo nordestino se deve ao pensamento intolerante de parte da população do Sul/Sudeste, segundo o pesquisador, principalmente entre as décadas de 1930 e 1950.
“As grandes massas de trabalhadores daquela época eram formadas por pessoas sem qualquer instrução escolar. Assim, sem qualquer manejo com o idioma; junte-se a isso o sotaque bem peculiar do povo do sertão no meio da maior metrópole do país. Certamente, houve o natural choque entre as culturas em todos os sentidos, causando estranhamento e, consequentemente, as ‘brincadeiras’ de mau gosto”, avalia.
Diante desse quadro, o migrante nordestino – segundo o pesquisador – passa a ser visto como um sinônimo de representatividade do caos, não só climático ou intelectual. “Um verdadeiro empecilho para o crescimento do país, sendo vistos como o lado atrasado, um peso exaustivo que ninguém queria ajudar a carregar”, enfatiza.
Xenofobia e polarização política
Para Najara Costa, socióloga e co-deputada estadual eleita pela candidatura coletiva do Movimento Pretas (PSOL-SP), o estímulo ao ódio contra o povo nordestino foi instigado principalmente pelo atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e à polarização política que o candidato à reeleição tem plantado nos últimos tempos.
“Bolsonaro representa o ódio e estimula a todo tempo o seu público militante a seguirem inflamados contra tudo o que ele próprio percebe que o descontrói. A polarização política, muito acirrada por ele como a luta do bem contra o mal, é exatamente isso. O povo nordestino representa parte da pluralidade brasileira e deve ser respeitado”, enfatiza Najara.
“É absurdo que tenhamos um presidente que ataque parte da nação brasileira, em um nível tão estarrecedor e antidemocrático”, completa a co-deputada.
A professora ainda acrescenta que a polarização – e consequentemente – o ódio contra o povo nordestino, bebem das mesmas fontes: racismo e classicismo.
“Não podemos desprezar o histórico de formação do Brasil, fundado no colonialismo e escravismo. Bolsonaro representa esse pensamento, que sempre esteve presente, mas nunca tão representado. Esse ódio vai se perpetuar, mas na medida em que o maior representante da nação não o estimule, com a possibilidade da saída de Bolsonaro do poder, ele perde parte considerável de sua força”, pondera a co-deputada.
Fim das eleiçõs representa menos ódio ao povo do nordeste?
O sociólogo e professor universitário Tadeu Matheus explica que atualmente há um encorajamento de uma grande parcela da sociedade que já pensa como o presidente Bolsonaro desde sempre, mas não expressava esse ódio em função de uma ética social que foi sendo construída após a constituição de 1988 e consolida gradativamente pelos governos democráticos.
“Com a chegada ao poder, o fascismo, que é alimentado pelo racismo, xenofobia, machismo, homofobia e outras formas de discriminação se intensificaram e encorajaram essa parcela da população a retomar o debate racista contra o povo nordestino”, destaca.
Contudo, o sociólogo avalia que mesmo após o término do processo eleitoral, a região do Nordeste ainda colherá as sequelas da xenofobia, tão fomentada na gestão bolsonarista. “
“A xenofobia está enraizada nos imaginários dessas pessoas. A polarização política institucional criou um campo amplo para essas pessoas fortalecerem seus discursos de ódio e, a depender dos resultados da eleição, esse quadro pode se intensificar”, destaca Tadeu.
Medidas legais anti-xenofobia: como denunciar?
Segundo Fayda Belo, advogada criminalista especialista em crimes de gênero, direito antidiscriminatório e feminicídios, entende-se por xenofobia toda e qualquer discriminação, menosprezo, exclusão a uma pessoa ou grupo de pessoas em decorrência de sua procedência nacional ou regional.
No Brasil, tal conduta é rigorosamente proibida através da Lei 7716/89 que diz que é crime induzir, incitar ou praticar a discriminação contra alguém em decorrência da região em que vive. Para ela, tais práticas representam o verdadeiro massacre da democracia, “já que essa confere a todo brasileiro o direito de escolher seus representantes sem ser molestado ou discriminado por isso”.
“Infelizmente o que estamos observando no processo eleitoral brasileiro uma tsunami de discursos de ódio contra grupos minorizados, bem como regiões que não aderiram ao atual Presidente da República, menosprezando de maneira reprovável o direito constitucional dessas pessoas em escolher o candidato ou candidata na qual possuem maior identificação”, avalia Fayda Belo.
A Lei Brasileira considera o o crime de xenofobia como imprescritível e inafiançável, ou seja, se a pessoa for presa em flagrante não poderá pagar fiança para ter sua liberdade de volta.
A Claudia Patrícia Luna pontua que mesmo que o caso de xenofobia ocorra em ambiente virtual, é possível denunciar o caso à SaferNet, utilizando enquanto prova prints dos comentários preconceituosos contra o povo nordestino. Outra medida é procurar a delegacia de polícia ou o Ministério Público para que seja instaurado o devido inquérito policial e esse infrator possa posteriormente ser processado, julgado e punido nos rigores da lei.
“As punições variam desde prisão ou pagamento de multa. Se houver possibilidade de punição por outro caminho, se não a via criminal, é possível também solicitar a punição por danos morais em relação à ofensa, em que o infrator será obrigado a ressarcir a pessoa ofendida pelos danos que causou”, pontua Claudia.
Fayda Belo menciona que qualquer pessoa da população pode denunciar esse crime, e não apenas a vítima, já que se trata de crime de ação pública. “Quem recebe uma condenação criminal perde os direitos políticos, vale dizer, não terá mais direito ao voto enquanto perdurar essa condenação”.
Como lidar com o movimento anti-nordeste?
O sociólogo Tadeu Matheus avalia que a sociedade precisa compreender que a polarização política é saudável para a democracia, mas traz um prejuízo para as relações sociais da população brasileira.
Para evitar a disseminação do ódio ao povo nordestino, o professor universitário pondera que será necessário realizar uma ampla política de pacificação e conscientização da população brasileira através de campanhas nas mídias – sejam elas hegemônicas, estatais, livres e sociais – para novamente unir o povo brasileiro.
Já a co-deputada eleita Najara Costa, considera que o movimento anti-nordeste é antidemocrático, portanto, a democracia não pode servir apenas quando convém. Ela destaca ainda que é imprescindível fortalecer o Estado Democrático de Direito, para além de esclarecimentos sobre os impactos da postura antidemocrática do presidente Jair Bolsonaro, “que deve pagar por seus ataques à parte do povo brasileiro”
“Um povo que não tem os seus direitos básicos e mais urgentes atendidos fica à mercê daquilo que há de pior na política. Devemos lutar muito para o fortalecimento de políticas públicas que reduzam de forma urgente a nossa alarmante desigualdade social acirrada pelo avanço do neoliberalismo no Brasil”, finaliza a professora.
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