Por: Fernanda Rosário
Na última quarta-feira (11), o projeto de lei que equipara a injúria racial ao crime de racismo foi sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A assinatura da mudança na lei ocorreu durante a posse das ministras da Igualdade Racial, Anielle Franco, e dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, no Palácio do Planalto, em Brasília. A proposta foi aprovada em dezembro de 2022 após passar pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal.
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O plano de passar a tipificar como crime de racismo a injúria racial nasceu de um projeto de lei apresentado em 2015 pela deputada Tia Eron (Rep-BA) e pelo deputado Bebeto (PSB-BA). O projeto chegou a ser aprovado na Câmara em 2021, mas teve o texto alterado em 2022, o que exigiu nova aprovação na Câmara em dezembro do ano passado.
Com a sanção presidencial, o crime de injúria racial passa a ter mais agravantes. A pena, que antes era de 1 a 3 anos de reclusão, será de 2 a 5 anos para quem cometer o crime, conforme o estabelecido no crime de racismo.
Originalmente, o projeto tratava da injúria racial em locais públicos ou privados de uso coletivo. Entretanto, a proposta entregue para sanção pelo Congresso Nacional prevê o aumento das penas quando o crime de injúria racial for praticado em eventos esportivos ou culturais e para finalidade humorística.
A pena de 1 a 3 anos de reclusão continua para a injúria relacionada à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência, segundo informações da Agência Senado. Além disso, todos os crimes previstos nessa lei terão as penas aumentadas de um terço até a metade quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.
A pena também é aumentada da metade se o crime de injúria em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional for cometido por duas ou mais pessoas. Outra novidade é que, caso a proposta seja sancionada, a injúria racial passa a ser inafiançável e imprescritível, assim como o crime de racismo.
Sanção presidencial de Lula durante cerimônia de posse das ministras Anielle e Sônia | Crédito: Ricardo Stuckert
A advogada criminalista Fayda Belo, especialista em crimes de gênero, direito antidiscriminatório e feminicídios, explica que a mudança admitirá que a prisão em flagrante possa ser convertida em prisão preventiva sem pagamento de fiança, bem como faz com que o crime passe a ser de ação pública incondicionada, ou seja, qualquer pessoa do povo poderá denunciar e não apenas a vítima.
“O Ministério Público ou a autoridade policial poderão inclusive instaurar inquérito policial de ofício, acrescentando que, sendo o crime de ação pública incondicionada, o Estado através do Ministério Público passa a ser o autor da ação, e deste modo, ainda que a própria vítima desista o processo seguirá da mesma forma”, comenta.
Diferenças entre injúria racial e racismo não são evidentes
“A diferenciação desses dois tipos de discriminação sempre foi objeto de confusão por parte das pessoas e aplicadores da lei, já que ambos os casos há uma discriminação em virtude de raça, cor e etnia”. É o que afirma a advogada criminalista Fayda Belo.
A advogada explica que a diferenciação encontrada antes na legislação é de que, no crime de injúria racial (140 §3º do Código Penal), o alvo da discriminação é a honra da pessoa e, para isso, o criminoso se utiliza de elementos relativos a raça, cor e etnia dela. A legislação também admitia fiança no crime de injúria racial.
Já o crime de racismo está previsto na Lei 7.716/1989, elaborada para regulamentar a punição de crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, conhecida como Lei do Racismo. A Lei nº 9.459/13 acrescentou à referida norma os termos etnia, religião e procedência nacional, ampliando a proteção para vários tipos de intolerância.
No crime de racismo, o objetivo não é apenas ofender a honra pessoal em dado momento se utilizando de elementos de raça, cor e etnia, mas é uma ofensa dirigida contra toda uma coletividade, por exemplo, com exclusão e discriminação. É o que explica o mestre em História Social Flávio Muniz, graduando em Direito e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB Uberlândia.
“O crime de racismo abrange o sentido de impedir a pessoa de ter acesso ao local de trabalho ou algum outro local, como ao serviço de saúde, ao lazer, proibir entrada em determinados clubes, restaurantes, coisas assim. Ou seja, está discriminando toda a integralidade de um povo fenotipicamente reconhecido na nossa sociedade como pessoas negras”, explica o historiador.
Para especialistas, injúria racial também pressupõe diferenças entre as pessoas | Crédito: Alma Preta Jornalismo/I’sis Almeida
Segundo a advogada Fayda Belo e o historiador Flávio Muniz, a equiparação da injúria racial ao crime de racismo faz sentido na medida em que a diferenciação entre um crime ou outro não era evidente.
Fayda Belo explica que, na prática, a injúria racial pode ser considerada um racismo individual, por se estar discriminando uma pessoa em virtude de raça, cor e etnia.
“O crime de injúria é um crime contra a honra, e discriminar ou ofender uma pessoa com termos relativos à sua raça e cor, não é apenas uma ofensa à honra, é alimentar a discriminação contra pessoas negras, e fomentar essa desigualdade racial que insiste em se perpetuar no Brasil”, comenta.
O historiador Flávio Muniz lembra que já houve uma decisão do Supremo Tribunal Federal em 2021 sobre um pedido de habeas corpus que concluiu que o crime de injúria racial configura racismo, sendo, portanto, e nos termos da Constituição Federal, delito sujeito à imprescritibilidade.
“Essa decisão foi extremamente importante. A prática de injúria preconceituosa traz em sua composição de certa forma uma conduta da pessoa que pressupõe as diferenças entre as pessoas, viola direitos constitucionais e fere a dignidade da pessoa humana. Ao equiparar a injúria racial ao racismo, nós temos que reconhecer que nós vivemos em uma sociedade em que o preconceito racial existe e é real”, pontua Flávio.
Não só alterar a legislação, mas aplicá-la de fato
De acordo com Flávio Muniz, além da mudança da legislação, o racismo não pode ser compreendido somente do ponto de vista punitivista. Ele explica que é preciso uma efetiva aplicação das normas jurídicas no país e, para isso, é necessário que o racismo seja compreendido dentro de um amplo espectro social e histórico como vetor estrutural e estruturante dentro das instituições de Estado.
“A legislação por si não é suficiente para dar conta do racismo. É preciso termos advogados devidamente preparados para lidar com essa questão, lutarmos dentro dos sistemas jurídicos para que os juízes, os promotores e os procuradores tenham realmente formação para aplicabilidade dessas leis quando essas situações ocorrerem. Precisa de formação dentro da polícia e dos órgãos de segurança para tipificar o crime corretamente”, destaca.
“As leis não são feitas só para punir, mas para nortear, para serem vetores que balizem a vida social e, para que isso aconteça, tem que ser transformado em processo educacional. Há um caráter pedagógico nessa mudança que é poder ensinar a sociedade que o racismo é um crime inaceitável”, complementa o membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB Uberlândia.
A advogada Fayda Belo finaliza dizendo que a equiparação dará mais coragem às pessoas negras em denunciar. “Por outro lado mostrará aos racistas que agora eles efetivamente responderão nos rigores da lei até mesmo com prisão caso se sintam no direito de discriminar, ofender ou excluir uma pessoa negra”.
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