A pesquisa Violência Política de Gênero e Raça no Brasil, elaborada pelo Instituto Marielle Franco, apresenta relatos inéditos de parlamentares negras de todas as regiões do país, que mostram a desproteção de mulheres, eleitas ou não, no campo da política. Segundo as informações da análise, o sistema democrático moderno naturaliza a violência e incita a exclusão feminina nos espaços públicos de poder.
O movimento de ocupação institucional de corpos historicamente marginalizados pelo Estado para a ampliação das noções de poder, espaços de fala e capital político geram uma reação, segundo o levantamento. Essa resistência configura a perpetuação da violência como forma de calar, impor e, muitas vezes, interromper as trajetórias de mudança e transformação de mulheres e de grupos étnicos racializados, como pessoas negras e indígenas.
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Segundo Ana Querino, coordenadora da ONU Mulheres no Brasil, a violência política pode ser definida por uma série de agressões físicas, psicológicas e sexuais cometidas contra candidatas, eleitas, nomeadas ou no exercício da função pública ou ainda contra sua família.
“O objetivo da violência é restringir, suspender ou impedir o exercício do cargo, induzindo ou obrigando a mulher a agir contra a sua vontade, ou incorrendo à omissão no cumprimento de suas funções ou no exercício de seus direitos”, salienta Ana Querino na pesquisa.
Dificuldades
“A mulher negra eleita no Brasil possui, portanto, duas frentes de batalha: as internas em seu partido e as das casas legislativas. Nessa última, talvez a pior, os agentes agressores não estão no mesmo campo político e de diálogo. Qualquer erro nessa esfera de intensas disputas e relações complexas e, muitas vezes, tão intrincadas quanto exaustivas, pode custar muito; até mesmo o mandato conquistado”, diz o estudo.
Além disso, a análise aponta que as principais barreiras de acesso e permanência na política para mulheres no Brasil são a falta de recursos para campanha e a falta de apoio do partido e/ou da base aliada, além do assédio e violências no espaço político e da falta de espaço na mídia em comparação aos políticos homens. Dentre as mulheres eleitas para as prefeituras municipais, por exemplo, mais da metade (53%) afirmou ter sofrido assédio ou violência política pelo simples fato de serem mulheres.
“Somado à total ausência de percepção do Estado brasileiro no reconhecimento dessas vítimas, tal método tem efeitos diários e catastróficos, além de ser determinante para os recentes retrocessos na democracia brasileira. A violência política não é somente individual ou partidária; ela viola as bases da democracia e do Estado de direito, e ameaça as liberdades públicas de todas as pessoas”, ressalta a pesquisa.
Outra dificuldade encontrada por mulheres negras na política é o nível de formação acadêmica. Segundo dados do Movimento Mulheres Negras Decidem (2018), nas eleições de 2014, por exemplo, 35% das mulheres negras candidatas possuíam ensino superior. A análise mostra ainda que existe uma barreira maior de elegibilidade para as mulheres negras que não têm um diploma. Enquanto homens brancos com ensino médio incompleto conseguem se eleger com facilidade, naquele ano, 78% das mulheres negras eleitas tinham ensino superior.
“Ter ensino superior configura-se quase como um pré-requisito para mulheres negras se elegerem. Mulheres brancas e homens brancos e negros conseguem se eleger em maior número, apenas com o ensino médio completo. Para mulheres negras chegarem no mesmo lugar dos homens brancos, elas precisam, necessariamente, ter anos de estudos a mais”, avalia a pesquisa.
Avanço tímido
De acordo com a pesquisa do Instituto Marielle Franco, o avanço de mulheres negras em espaços historicamente ocupados por homens brancos é motivo de grande comemoração, ao mesmo tempo que desafiador. À medida que essas mulheres conquistaram representação política, a análise identificou o quanto os progressos ainda são tímidos e insuficientes para garantir uma resposta intensa aos anos em que grupos como mulheres negras, mulheres transexuais e travestis viveram afastados de política institucional.
A deputada federal Benedita da Silva (PT) relembra que chegou à Câmara Municipal de Vereadores do Rio de Janeiro em 1982. Sua campanha política na época, tinha o slogan “Negra, mulher e favelada”. Sua origem periférica, embora fosse uma de suas grandes potências, representou desafios já no primeiro momento na casa, segundo ela.
Em sua entrevista para a pesquisa, ao falar dos benefícios comumente concedidos aos vereadores da casa, Benedita relembra uma fala do presidente da Câmara Municipal na época que questionou a necessidade de um carro ser oferecido a ela. “Por que ela quer carro? Ela mora no morro. Carro não sobe morro”, relembra.
Sobre sua chegada à Câmara dos Deputados como deputada federal recém-eleita, em 1987, Benedita fala de sua condição de saúde e da dificuldade enfrentada para ter seu apartamento funcional em Brasília. Na posse, a deputada estava com dengue, de acordo com ela. Diante da falta de boa vontade para resolver sua demanda pela moradia a que tinha direito, a parlamentar conta que, se necessário, buscaria apoio de bases de comunidades locais.
“Não tem problema, eu vou para a Ceilândia e a associação de lá vai adorar, porque eu tenho intimidade com a comunidade”. O constrangimento do momento de chegada ao poder não parou por aí, segundo a parlamentar. “Batiam na minha porta, não sabiam que eu era deputada, mandavam eu chamar a deputada”.
Mais de 30 anos depois, pouca coisa mudou, de acordo com a pesquisa. A deputada federal Talíria Petrone (PSOL) conta episódios similares ao falar do dia da sua posse e do cotidiano como uma mulher negra na Câmara dos Deputados, onde ocupa o cargo de deputada federal desde 2019.
“Na minha posse eu fui barrada e para entenderem que eu era uma deputada uma assessora minha, uma mulher branca, precisou falar com a policial: ‘ela é deputada. A posse é dela’, porque ela ficava perguntando ‘mas a posse é de quem, senhora?’ E eu falava: ‘eu vim para a minha posse’. E ela insistia, dizendo ‘a posse é de quem, cadê o convite?’ Então foi muito constrangedor e a gente vai se encolhendo, né?”, lamenta a parlamentar.
Talíria ainda relata que a situação só mudou ligeiramente, diante de um novo episódio de violência: ameaças recebidas em abril de 2019. A deputada precisou recorrer à escolta da Polícia Legislativa, inclusive para transitar pela própria Casa. Ainda assim, segundo ela, questionamentos machistas e racistas não deixaram de acontecer.
“Eu só deixei de ser barrada na Câmara quando eu passei a ter escolta. É como se não vissem a Julia [policial da equipe]. Me barram e praticamente barram a Julia. Então, você não vê a mulher no lugar da policial e não vê a mulher negra no lugar da parlamentar”, ressalta Talíria.
“Foi só botar uma trança que eu voltei a ser barrada. É muito chocante. Porque para mim, é mais fácil você conhecer as deputadas negras do que você conhecer os deputados homens brancos, que são todos iguais de terno”, pondera.
Proteção às mulheres na política
A deputada Benedita da Silva faz um pedido para as gerações que constroem e buscam apoiar mulheres negras na política hoje. Durante a entrevista para a pesquisa, ela pede pelo respeito, apoio e humanização daqueles corpos, que não são exclusivamente políticos, mas também sujeitos de suas próprias vidas, que carregam suas singularidades, histórias, dores e responsabilidades para além da vida pública.
Emocionada, a parlamentar diz que mesmo com tantos anos de vida pública e as marcas profundas que a perda de companheiros, o assédio sexual, os boicotes e todo o adoecimento físico e mental que a política institucional lhe causou, nada tirou o seu brilho nos olhos, sua vontade inabalável de viver e fazer a política que acredita.
“Essa nossa luta de mulher negra deixou muitas marcas. Nas nossas relações de afeto, nas nossas construções. As cicatrizes que o tempo marca em nós, as mudanças que são feitas, as coisas que a gente tem que encarar. A gente continua de pé, sem violência, sem vontade de matar ninguém, sabe? Querendo ver as pessoas crescerem, isso faz bem para a minha alma”, comenta.
Atualmente, o Brasil possui o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, que atende as mulheres inseridas na política. No entanto, de acordo com a pesquisa, o programa é marcado pela incerteza sobre sua continuidade. Existem 20 estados da federação que não possuem Programa de Proteção em âmbito estadual, o que em alguns casos, impossibilita uma resposta rápida ao conflito no âmbito local.
Além disso, existe a Lei sobre Violência Política, nº 14.192/2021. A norma define a violência política contra a mulher como “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher”. O texto estabelece também que “serão garantidos os direitos de participação política da mulher, vedadas a discriminação e a desigualdade de tratamento em virtude de sexo ou de raça no acesso às instâncias de representação política”, e também reconhece violência política contra as mulheres como um crime passível de multa ou pena de reclusão
“Na prática, fica evidente a inexistência de mecanismos vigentes no Estado brasileiro que assegurem a proteção necessária e o livre exercício dos direitos políticos de mulheres políticas defensoras dos Direitos Humanos e equipes de mandatos que se encontram em estados sem proteção. O Estado não está preparado para lidar com a dinâmica da violência e riscos enfrentados por essas defensoras”, salienta a análise.
Para a deputada Benedita, é necessário e urgente garantir a proteção feminina nos espaços da política e poder. “Cuidem bem dessas mulheres. As coisas não são apenas aquilo que nossos olhos estão vendo. Algumas são mães, outras são esposas, filhas, mas todas elas, independentemente das suas orientações, todas merecem e querem ser felizes. E a gente faz isso com esse propósito, não é para aparecer. A gente tem projeto e a gente precisa de vocês”, finaliza Benedita da Silva.
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