A reforma tributária, já aprovada na Câmara dos Deputados e que aguarda parecer do Senado Federal, é uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 45/19) que altera consideravelmente a tributação sobre o consumo, substituindo cinco tributos – PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS – pelo Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS). O objetivo desta mudança é simplificar o sistema, reduzir as taxas e aumentar a transparência ao consumidor.
A proposta também cria dois fundos, um voltado ao desenvolvimento regional e outro para a compensação de benefícios fiscais, que serão extintos após a implementação da reforma. O texto foi elaborado pela Câmara dos Deputados, tendo como relator o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).
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Para compreender como a reforma tributária pode influenciar na vida e situação econômica da população negra, periférica, e também dos microempreendedores individuais, a Alma Preta conversou com dois especialistas: Regiane Vieira Wochler, economista e mestra em Economia Política, e o professor universitário Marcos Henrique do Espírito Santo, também economista e mestre em Economia Política.
Alma Preta: Por que essa reforma é necessária no atual momento econômico do país? Ela será positiva para a economia?
Marcos Henrique: A PEC 45/19 tem por objetivo reorganizar o sistema de impostos. Hoje a gente tem um sistema de impostos – tanto estaduais, quanto federais – bastante complexo, dentro de uma cadeia produtiva cumulativa: cada etapa recolhe um imposto diferente, uma alíquota diferente e, no final, a carga tributária fica enorme. Portanto, o objetivo primordial dessa PEC é facilitar o pagamento de impostos e ajudar a unificar e reduzir um pouco a carga tributária sobre consumo.
A reforma tributária é necessária, como você pergunta, no sentido de elaborar impostos melhores racionalizados, mais bem cobrados. Isso faz com que as empresas não precisem se preocupar tanto e gastar tanto. Por exemplo: boa parte das empresas têm departamentos fiscais só para cuidar de impostos. Se for uma empresa muito grande, ela tem um setor só de tributaristas, só de gente preocupada em como pagar os impostos e, ainda assim, diversos problemas ocorrem.
Partindo deste ponto de vista o que essa reforma tributária pretende é melhorar a eficiência da economia e por isso ela é, de fato positiva, porque se conseguir reduzir, facilitar o pagamento, você dinamiza o processo econômico.
Regiane Wochler: A necessidade de uma reforma tributária não é algo novo, mas se tornou urgente diante das abissais desigualdades socioeconômicas que o país enfrenta, sobretudo, após a pandemia. Um sistema tributário que promova justiça social é aquele que garante equidade: quem pode pagar mais, deve ser mais tributado e quem não pode pagar, deve ser amparado por políticas públicas que promovam o bem-estar geral e a cidadania plena.
Alma Preta: Como a reforma tributária pode impactar a população negra e periférica, pensando no consumidor da classe C, D e E?
Regiane Wochler: O governo federal alega que a intenção da reforma tributária é reduzir e simplificar impostos sobre o consumo, sobretudo em bens e serviços de primeira necessidade, como a cesta básica. De forma geral, a redução de impostos sobre consumo tende a ser muito benéfica para a população negra e periférica.
Hoje, proporcionalmente, as pessoas de menores rendas são aquelas que mais pagam impostos e, desta forma, em função das consequências do racismo estrutural, o grupo social que paga mais impostos é o de mulheres negras, dado que elas estão na base da pirâmide social no quesito renda, pois ocupam cargos de menor remuneração no mercado de trabalho, estão mais expostas à informalidade, enfrentam maiores taxas de desemprego e recebem menos da metade da média – apenas 48% – do que ganham homens brancos e amarelos, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Essas mulheres estão também em maior vulnerabilidade social (cerca de 63% das famílias chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha de pobreza, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e enfrentam maior insegurança alimentar, segundo dados da Rede Penssan).
Isso acontece porque, para colocar comida na mesa, as famílias com menores rendas acabam destinando quase a totalidade de seus rendimentos ao consumo de bens essenciais à subsistência da família, como alimentos e serviços essenciais como água e energia elétrica, em que a carga tributária é grande. Então proporcionalmente, acabam pagando mais impostos do que as famílias com rendas maiores que não precisam gastar a totalidade de suas rendas com consumo imediato.
Alma Preta: Quem é Microempreendedor Individual (MEI) será afetado positiva ou negativamente caso a reforma tributária seja aprovada pelo Senado? Por quê?
Regiane Wochler: A tributação de MEI já é simplificada através do Simples Nacional e não deve ser alterada com a reforma tributária.
Marcos Henrique: O que vai na verdade poder efetivamente melhorar a vida desse sujeito é a respeito do pagamento de impostos unificado, através de uma única alíquota. Por exemplo: a indústria é vista como um importante gerador de emprego de alta qualidade e de alta capacidade. Essa indústria certamente vai ter a sua carga tributária reduzida. Por outro lado, o prestador de serviços – visto hoje como o carro-chefe da economia mundial –, tem a expectativa que haja aumento de carga tributária para esse setor. Isso não deve afetar diretamente o MEI, afinal, a gente está falando aqui de grandes empresas, de grandes setores, mas é sempre bom estar atento que de alguma maneira isso deve sim refletir também sobre o MEI.
Alma Preta: Quais tributos serão extintos pela reforma tributária?
Regiane Wochler: Em linhas gerais, o governo propõe extinguir cinco impostos: três federais, o IPI, imposto sobre produtos industrializados; Cofins, contribuição para o financiamento da seguridade social; e PIS, programa de integração social.
Estes serão substituídos pela CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), o estadual ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e o municipal ISS (Imposto sobre Serviços), que serão substituídos pelo IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), cobrado no destino – e não na origem como funciona hoje – cujas alíquotas ainda não estão definidas e são alvo de grande mobilização política por parte dos estados, pois concentram a maior fonte de receitas deles.
A ideia é simplificar a cobrança e assim acabar com distorções que, na prática, representam perda de arrecadação do governo por elisão fiscal (redução de cobranças de impostos prevista em lei, porém, a interpretação ambígua dos diversos impostos acaba resultando em não tributação). Essa migração do sistema atual de cobrança para o de imposto agregado levaria o total de oito anos, começando em 2026 e sendo concluído em 2033.
Alma Preta: Com a reforma aprovada, quais são as expectativas econômicas a curto, médio e longo prazo, pensando no poder de compra da população negra e periférica?
Marcos Henrique: Os efeitos vão ser muito espraiados ainda a longo prazo, vão levar alguns anos até que a transição seja feita – pelo menos uma década – com impacto final lá por volta dos anos 2030. Mas, na minha opinião, o que da reforma tributária deve atender diretamente pessoas negras e periféricas é a respeito da redução do preço dos alimentos, o que é uma excelente notícia, afinal, de acordo com os dados da POF (Pesquisa de Orçamento Familiar), o brasileiro médio gasta 18% do seu orçamento com alimentação.
Regiane Wochler: Do ponto de vista das famílias, no curto prazo o custo da cesta básica e de serviços pode ser reduzido em função da desoneração, se mantidas constantes as demais variáveis. A médio/longo prazos pode representar mais recursos à disposição das famílias, seja pela redução de impostos em cascata sobre consumo (lembrando que ainda não estão definidas as alíquotas do IBS), seja pelo reflexo positivo ao ambiente de negócios e de investimentos produtivos, que podem se traduzir em mais vagas de emprego e melhoria de renda que viriam de um possível crescimento econômico.
Ainda sob o ponto de vista das famílias negras e periféricas, o ideal é que a reforma tributária avance nos próximos meses sobre a tributação de renda, em especial de grandes fortunas, lucros e operações de mercado de capitais (dividendos), pois isso representaria uma fonte de arrecadação de recursos fundamentais para custear a promoção de políticas públicas redistributivas, primordiais para a redução das desigualdades socioeconômicas que vivenciamos no Brasil.
Neste país, a fome e a pobreza têm cor e CEP – preta e periférica – e mudar essa realidade passa necessariamente pela instituição de um sistema tributário justo e equitativo.