“Temos testemunhado a fragilização das agências de atuação na área ambiental e de apoio a povos indígenas, quilombolas e comunidades rurais tradicionais em geral, aumento da criminalidade sem precedentes, aumento de incidência de endemias, crise econômica abalando muito a vida já precária de quem vive em áreas distantes dos centros urbanos, entre outras”. É o que fala o geógrafo Carlos Durigan em um dos depoimentos sobre o estado do Amazonas disponibilizados hoje no relatório sobre a Amazônia Legal do monitor socioambiental Sinal de Fumaça.
De acordo com a nova publicação, nos últimos quatro anos, a explosão dos índices de desmatamento e as queimadas históricas, além do incentivo político à grilagem, ao garimpo e a outras atividades criminosas na floresta, trouxeram consequências letais para povos indígenas, ambientalistas, ativistas e defensores da luta pela terra.
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“Vivemos uma onda crescente de crimes e violência sem precedentes na Amazônia, um triste cenário dominado pelo narcotráfico tanto nas cidades quanto no interior, povos indígenas e comunidades quilombolas e ribeirinhas ameaçadas por atividades ilícitas e uma estrutura de estado deficiente para dar conta deste cenário”, acrescenta o geógrafo Carlos Durigan, também diretor da Wildlife Conservation Society Brasil.
O estudo do Sinal de Fumaça, a partir de dados da Comissão Pastoral da Terra, aponta que, em três anos, o governo Bolsonaro computou 5.725 conflitos no campo, o maior número de todos os governos em toda a série histórica, iniciada em 1985. “No período, foram registradas 2.329 ocorrências de conflitos por terra na Amazônia Legal, ou uma média de 2 por dia”, destacam.
Entre 2020 e 2021, 28 assassinatos decorrentes de conflitos por terras aconteceram na Amazônia Legal. A categoria que mais sofre violência são os povos indígenas (26%), seguidos por quilombolas e posseiros (17% cada) e sem-terra (14%). Os maiores responsáveis por conflitos são fazendeiros (21%), empresários (21%) e o próprio Estado em suas esferas municipal, estadual e federal (17%).
De acordo com levantamento mais recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, além dos conflitos rurais, a Amazônia Legal tem 10 das 30 cidades mais violentas do país. Sendo que dessas, 11 são cidades rurais com pequenas populações que sofrem com a violência letal há pelo menos três anos seguidos. A taxa de violência letal na Amazônia é 38% maior que a média nacional.
“É possível ver um aumento da violência na Amazônia, sobretudo considerando as mortes violentas intencionais, diretamente relacionadas aos processos que se conectam aos mais variados tipos de crimes, com destaque para a relação entre o tráfico de drogas e os crimes ambientais, bem como o crescimento de facções do crime organizado na região”, comenta Aiala Couto, professor da Universidade Estadual do Pará e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na publicação do Sinal de Fumaça.
Além desses dados, o estudo “Guia Amazônia Legal e o Futuro do Brasil = Um raio X dos 9 estados da região entre 2018-2022”, produzido pelo monitor Sinal de Fumaça, ainda reúne monitoramento, análise, além de dados e depoimentos, sobre as principais crises de desmatamento e conflitos em cada um dos 9 estados que compõem a Amazônia Legal.
O Guia também revela que a maioria dos políticos desses estados apoiou e/ou reforçou o desmonte da política ambiental federal de proteção da floresta e produz um panorama sobre a política de desmonte ambiental observada durante a última gestão do governo federal, o que identifica elementos críticos que devem ser endereçados nas próximas eleições, que ocorrem em outubro deste ano.
Monitoramento político e conflitos de terra
Conforme informações compartilhadas na publicação do “Guia Amazônia Legal e o Futuro do Brasil”, a região amazônica brasileira é organizada em dois principais territórios geográficos que são o bioma Amazônia e a Amazônia Legal, que reúne nove estados do país. Fazem parte da Amazônia Legal os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do estado do Maranhão.
“Essa área corresponde a 58,9% do território brasileiro e quase 16% da região foi atingida pelo desmatamento até o ano de 2020. Entre 2020 e 2021, houve um aumento do desmatamento de 21,97% e, em junho de 2022, a área sofreu a maior devastação já vista nos últimos 15 anos, com uma derrubada equivalente a dois mil campos de futebol em apenas 151 dias”, analisa a publicação.
Cada capítulo do estudo é dedicado a mapear informações sobre cada um dos estados da Amazônia Legal dentro de temas sobre uso da terra e desmatamento, violência, ameaças a defensores da terra e projetos de alto impacto na região.
“Em outra ponta, a publicação revela a movimentação do Congresso Nacional nesse cenário de disputa de terras e recursos ambientais, destacando quatro projetos de lei em tramitação nas casas federais e o comportamento dos governos estaduais e das respectivas bancadas parlamentares diante do chamado ‘Pacote de Destruição’, uma série de propostas legislativas que altera profundamente a gestão do uso de terra no país”, explica o levantamento.
No chamado “Pacote de Destruição”, estão os projetos PL 2633/2020 (sobre grilagem e que ameaça 19,6 milhões de hectares de áreas federais), o PL 3729/2004 (sobre licenciamento ambiental e que gera insegurança jurídica e impacta comunidades que não participam desse processo), o PL 490/2007 (ameaça aos direitos indígenas por meio da incorporação do Marco Temporal) e o PL 191/2020 (sobre mineração em Terras Indígenas).
De acordo com o Guia, por exemplo, o estado do Amapá possui oito deputados federais eleitos. Nas votações que compreendem os projetos de lei do Pacote da Destruição, 62,5% dos votos destes deputados foram favoráveis e 25% dos parlamentares estão alinhados à Bancada Ruralista. Dos três senadores, dois fazem parte dessa bancada.
“Na política socioambiental na Amazônia durante o governo Bolsonaro, nada melhorou e quase tudo piorou. O aparelhamento das políticas e dos órgãos que deveriam garantir a aplicação dessas políticas acabou por acentuar várias problemáticas que já são históricas dentro dos territórios, como a violência contra povos originários, queimadas e desmatamento”, revela Gil Reis, diretor de comunicação do Instituto Mapinguari, em um dos depoimentos disponibilizados.
De acordo com a publicação do Sinal de Fumaça, embora o Amapá apresente níveis relativamente baixos de desmatamento e tenha o maior percentual de áreas protegidas do país, as incertezas fundiárias e a grande extensão de florestas e outras áreas públicas ainda não destinadas, além da falta de controle sobre Unidades de Conservação e Terras Indígenas, abrem espaço para invasões e grilagem, alimentando conflitos no campo.
O Mapa de Conflitos da Fiocruz lista 11 casos de conflitos ligados à terra no Amapá, ameaçando quilombolas, indígenas, ribeirinhos e agricultores familiares. Entre os vetores dos conflitos, constam monocultura, garimpo e especulação imobiliária, gerando aumento da violência e problemas de saúde nas comunidades.
Gil Reis conta que dentro da atuação do Instituto Mapinguari observa a invasão de comunidades quilombolas pelas plantações de soja. “A invasão da soja acaba criando várias situações. A gente sabe que não é apenas o desmatamento. Nós temos o Quilombo do Ambé, que é o maior quilombo demarcado que nós temos no estado do Amapá e está sendo invadido pela soja. A cada mês a plantação de soja cresce um metro a mais para dentro do Quilombo do Ambé”, relatou em evento de lançamento do Guia.
De acordo com o diretor de comunicação do Instituto Mapinguari, o Amapá aparece nas estatísticas como, proporcionalmente, um dos estados mais violentos do Brasil, além de possuir a polícia que mais mata no país. Entre 2020 e 2021, foi registrado um aumento de 30,2% nas mortes violentas intencionais no estado.
“A criminalidade só aumenta, o estado do Amapá vive no ranking de violência contra a mulher e aqui também tem mortalidade dos jovens pretos e o confronto de facções”, relata ativista do movimento negro, cultural e ambiental no Amapá Isis Tatiane da Silva dos Santos, presidente da Associação de Mulheres Mãe Venina do Quilombo do Curiaú (AMMVQC), em depoimento disponibilizado.
Já o Maranhão, de acordo com o estudo do Sinal de Fumaça, tem em seu cenário político 18 deputados federais e três senadores, sendo que 72,25% dos votos dos deputados maranhenses na Câmara foram favoráveis aos PLs do Pacote da Destruição; e 50% deles integram a Bancada Ruralista. Dos senadores, dois fazem parte da bancada.
A tramitação do projeto de lei complementar 246/2020, que institui o Complexo Geoeconômico e Social do Matopiba é uma medida que deve massificar as investidas do agronegócio contra o território. A região chamada de Matopiba, composta por partes do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, concentrou mais de 61% de todo o desmatamento no bioma Cerrado entre 2020 e 2021, sendo o Maranhão o estado que possui a maior área desmatada no grupo.
Além disso, o monitoramento do Sinal de Fumaça destaca que a ampliação da base aeroespacial do Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA) é apontada como emergência quilombola, já que a obra, em parceria com os Estados Unidos, pode implicar a remoção forçada de 30 quilombos, afetando cerca de 2 mil pessoas na região.
Segundo o advogado popular Diogo Cabral, os grandes projetos que se instalaram no Maranhão ainda no regime militar tiveram como resultado uma destruição da economia camponesa, da invasão de territórios tradicionais e um incremento exponencial na miséria.
“O Maranhão está mergulhado em profunda desigualdade e miséria e esse ciclo é acompanhado por um processo de espoliação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, quilombolas, ribeirinhos, quebradeiras de coco”, relatou Diogo Cabral em evento de lançamento do Guia.
“O que resta de Amazônia no estado do Maranhão é devido às resistências que são realizadas por povos indígenas, comunidades tradicionais, quilombolas e o que nós temos assistido são gravíssimas violações de direitos humanos, de direitos territoriais e isso com a anuência do estado”, destacou o advogado.
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