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Segundo Ministério da Saúde, 62,8% das mulheres mortas durante o parto são negras

6 de março de 2018

A equipe de reportagem do Alma Preta conversou com enfermeiras e mulheres que passaram por processos violentos durante o parto. De acordo com as entrevistadas, o estereótipo da “mulher negra forte” justifica a falta de auxílio dada durante o procedimento médico.

Texto / Anna Laura
Imagem / Thinkstock photos

Violência obstétrica é um termo ainda pouco conhecido, porém muito recorrente. Segundo dados da Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres gestantes sofrem maus tratos. Portanto, se você é mulher e mãe, é provável que tenha passado por algum abuso durante a gestação do seu filho(a).

O que é e como identificar?

A violência na obstetrícia significa o abuso e os maus tratos para com mulheres gestantes, seja durante a gravidez ou durante o nascimento do bebê. É possível identificar esse tipo de agressão quando:

– Deixam de oferecer ou negam algum alívio para sua dor;
– Negam atendimento;
– Agressão verbal ou física por parte do profissional responsável pelo caso;
– Abuso sexual durante consulta ou procedimento de parto;
– Realização de qualquer procedimento sem consentimento da mãe;
– Discriminação racial;
– Relativização do sofrimento da gestante por conta da cor da pele, etnia, peso, etc;
– Condições ruins no sistema de saúde;

Se qualquer uma dessas atitudes forem reconhecidas pela mãe, é provável que a violência obstétrica tenha ocorrido.

Cultura da cesárea x Violência

Um estudo chamado “Nascer no Brasil: Inquérito Nacional” sobre o parto e nascimento, com coordenação da Escola Nacional de Saúde Pública e Fiocruz, acompanhou exames de pré-natal de 23.894 mulheres de 191 municípios de todos os estados brasileiros em 266 hospitais.

Os resultados apontaram que 66% das mulheres preferiram o parto normal no início da gravidez, o que é o natural e esperado. Todavia, somente 59% tiveram esse tipo de parto, que é um direito garantido por lei, assim como as orientações sobre o parto. Outro problema é que uma grande parcela das maternidades contabilizadas na pesquisa não tinham os medicamentos necessários e equipamentos básicos para a mãe e o bebê, para ambos os tipos de parto.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que somente 15% dos partos de um país sejam cesárea. No entanto, o Brasil lidera o ranking de cesarianas, chegando a aproximadamente 56% dos casos.

De acordo com a ginecologista Melania Amorim, em entrevista para o iG, a cesárea deve ser uma opção em casos alarmantes como:

– Sofrimento fetal – quando o bebê não está bem e o nascimento precisa acontecer emergencialmente;
– Apresentação córmica – quando o bebê está atravessado durante o trabalho de parto;
– Hemorragias durante a gravidez – quando há descolamento da placenta ou placenta prévia (quando a placenta recobre o colo do útero);
– Mãe portadora do vírus HIV – as chances do bebê ser contaminado com o vírus cai para 50% na cesariana;
– Herpes genital – o bebê tem maiores chances de contrair a doença no parto normal;
– Prolapso do cordão – quando o cordão umbilical sai antes do feto. Quando isso ocorre no parto normal, o cordão fica tensionado, impedindo que o sangue passe para a criança;

violencia obstrétrica ThinkstockPhotos corpo

Violência contra a mulher negra ganha destaque no campo da saúde (Foto: Thinkstock photos)

A cultura da cesárea é prejudicial uma vez que interrompe ou limita o processo fisiológico e natural que abrange o corpo feminino. O corpo da mulher é propício para o parto normal. A falta dessa técnica resulta em um ato cirúrgico, na maioria das vezes desnecessário, expondo a mãe e o bebê a situações de risco, podendo ocasionar infecções e hemorragias na mulher e complicações respiratórias, sobrepeso, entre outros para o bebê.

Racismo obstétrico

A violência obstétrica atinge uma em cada quatro mulheres no nosso país, de acordo com o Ministério da Saúde. E dessas, alvos da violência obstétrica, 65,9% são negras.

Além disso, a mesma pesquisa mostra que somente 27% das negras gestantes obtiveram acompanhamento durante a gestação. Um dado ainda mais alarmante dessa apuração: 62,8% das mortes maternas são das negras.

O motivo para os números é o racismo, a objetificação e principalmente a alusão da “mulher negra forte”, de acordo com a enfermeira e negra Renata Barroso, 37 anos. Renata trabalha em um hospital público e relata que já presenciou muitos casos de racismo com gestantes, todos semelhantes.

“As mulheres negras são extremamente estereotipadas, as gordas principalmente. Como trabalho na maternidade, sempre presencio casos de maus tratos e falta de paciência com as mulheres grávidas, mas as negras são sempre mais excluídas. Essa ideia de que nós suportamos tudo é muito presente, principalmente entre os médicos homens”, aponta.

O racismo obstétrico na prática

Kátia Alves, 21 anos e estudante de Psicologia, sentiu na pele o racismo e a violência obstétrica durante o parto do seu filho Nicolas, agora com cinco meses. Ela foi ao hospital Santa Casa de Arapongas, no Paraná, após sentir dores e o médico disse, após o exame de toque, que ela estava entrando em trabalho de parto.

“Ele me disse que estava chegando a hora de parir. A minha bolsa, segundo ele, poderia estourar naquela madrugada. Por isso, eu iria ficar internada. Se pela manhã eu não tivesse dilatação, eu deveria voltar pra casa. Por volta das 7h da manhã, ele induziu o furo com oxitocina. Isso sem minha permissão, ele disse apenas que queria induzir o parto”, explica.

Ela diz que antes disso gritou de dor. “Suplicava por uma anestesia, mas não tinha nenhuma enfermeira no quarto”, desabafa. Tudo piorou no centro cirúrgico. “Em momento algum me perguntaram qual era meu plano de parto. Eu queria o mais natural possível, mas não respeitaram e já injetaram oxitocina em mim. Não permitiram que meu acompanhante entrasse comigo, sendo que é um direito por lei. Ele também usou o fórceps sem consentimento e sem anestesia”.

O fórceps é um objeto feito de metal ou silicone que é colocado na cabeça do bebê com o objetivo de retirá-lo do ventre da mãe por via vaginal. Ele é usado quando o bebê está em sofrimento fetal, quando a mãe está exausta e não consegue mais fazer força ou quando, por motivo de saúde, ela não pode fazer força. O objeto também é utilizado quando o bebê não está descendo pela bacia, quando o bebê precisa descer pelo canal vaginal em posição melhor, ou quando trata-se de gêmeos e a mãe precisa de ajuda para parir o segundo bebê.

Ter um parto com fórceps não era a vontade de Kátia.

“Em momento algum ele me informou que faria isso. Eu tinha dilatação total. Logo após a retirada do neném com o fórceps, ele colocou a mão dentro de mim violentamente para tirar a placenta. Ele também colocou vários panos dentro de mim sem avisar”.

Essas atitudes do médico e sem o consentimento de Kátia trouxeram consequências para ela, como 50 pontos para fechar o rasgo que foi feito da vagina até o ânus em decorrência do uso inadequado do fórceps.

“Os pontos não foram feitos corretamente, eu terei que fazer outra cirurgia para reparar e retirar a inflamação, porque ele deixou pele sobrando. Está vazando líquido de fezes do meu intestino que, se atingir meu útero, pode contaminar e me deixar estéril”, disse.

Depois de todo o procedimento, as enfermeiras e o médico culpabilizaram Kátia pelo ocorrido. Segundo ela, disseram que Kátia dificultou porque gritou muito e atrapalhou o procedimento. Ela revelou que o médico estava com pressa, pois era o fim do seu plantão e ele tinha mais cirurgias para fazer. Segundo ela, o profissional tomou decisões sozinho e as consequências para ela foram um episódio traumático, infecções, dores e lembranças ruins.

“Foi muito traumatizante. Tenho pesadelos até hoje com isso. Meu parto foi normal pela medicina, mas psicologicamente e fisicamente digo que foi anormal”, desabafa.

O médico foi demitido do hospital. Segundo uma funcionária do estabelecimento que não quis se identificar, foram mais de 40 casos parecidos com o de Kátia, sendo o médico o responsável.

“Eu procurei um advogado, que disse que era frescura minha e provavelmente eu não ganharia a causa, pois precisaria da assinatura de uma testemunha alegando o que aconteceu”.

Fernanda Gomes, estudante de Serviço Social de 29 anos, experimentou na prática o estereótipo da ‘mulher negra, gorda e forte’ no nascimento de seu filho Rhyan, 7.

“Eu estava com muita dor por causa da dilatação. O médico injetou em mim um remédio que não me lembro o nome, mas era algo para induzir meu parto. Só que eu não queria que ele fizesse isso”, relembra. “Quando eu disse que não iria aguentar de dor pois estava muito forte, tive que ouvir que por ser gorda e negra eu deveria aguentar qualquer coisa. A gente é alvo dessa ideia de que somos infalíveis e fortes, mas não somos sempre, nós também sofremos e sentimos dor”, desabafa.

Um caminho para acabar com a violência obstétrica

Muitas mulheres, mesmo tendo conhecimento do abuso, ficam com medo de denunciar ou não possuem a assistência devida, como o caso de Kátia. Outras acreditam que os procedimentos abusivos são normais e se culpam por gritarem, por pedirem mais auxílio ou por sentirem dores.

No caso das mulheres negras, esse tratamento violento intensifica-se por todo o estereótipo carregado de mulher negra forte e pelo racismo, presente em todas as esferas da sociedade.

Aquelas que decidirem seguir com a denúncia devem estar munidas da cópia do prontuário médico, que pode ser obtido na instituição de saúde onde teve o bebê. Lembre-se também de ligar no 180 para registrar o caso no canal de violência contra a mulher ou no 136 (Disque Saúde).

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