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A esquerda precisa se comprometer com a construção da Marcha Nacional das Mulheres Negras

Confira a transcrição da intervenção de Juliana Gonçalves, representante da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, durante o Festival Mulheres de Luta (MEL), realizado de 11 a 13 de abril de 2025, em São Paulo
Marcha das Mulheres Negras realizada em Brasília, em 2015.

Marcha das Mulheres Negras realizada em Brasília, em 2015.

— Marcello Casal Jr/Agência Brasil

26 de abril de 2025

Licença para chegar. Saúdo aqui as minhas mais velhas, as mais novas e as minhas iguais. Saúdo a cabeça de cada mulher de luta presente.

Sou Juliana Gonçalves: mãe, jornalista, articuladora política, pesquisadora e militante. Em 2008, tomei consciência da minha condição no mundo enquanto mulher negra, periférica e empobrecida por uma sociedade que espera que eu sobreviva para me explorar.

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A partir dessa conscientização, busquei me letrar racialmente e passei a me aquilombar com minhas irmãs, mulheres negras. De lá para cá, fui formada politicamente pelo Movimento Negro, em especial pelo Movimento de Mulheres Negras, composto por muitas irmãs de luta que trilharam e ainda trilham um árduo caminho no enfrentamento do patriarcado, do racismo e da pobreza e de todas as formas de preconceito e discriminação. Mulheres essas que hoje invoco para me fortalecer nesta tarefa de divulgar o evento que vai refletir sobre a realidade de 28% da população brasileira: as mulheres negras.

Minha tarefa aqui, portanto, é abordar a construção da 2ª Marcha Nacional de Mulheres Negras – Por Reparação e Bem Viver, que ocorrerá no dia 25 de novembro de 2025, em Brasília. E, para isso, apontar a necessidade de repactuarmos as alianças entre nós, mulheres – alianças que ajudam a conectar a luta das mulheres negras à luta de todas as mulheres.

A Marcha das Mulheres Negras tem muitas histórias, e vou lembrar uma delas: em 1985, aconteceu o 3º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, em Bertioga (SP). Há um vídeo na plataforma Cultne em que podemos ver a jovem Luiza Bairros, que representava ali o Movimento Negro Unificado (MNU). Luiza se levantou em um encontro muito parecido com este que vivemos aqui, no Festival Mulheres em Luta, para relembrar o quanto as mulheres negras foram essenciais para a sustentação da luta feminista — e como era necessário que o feminismo “universal”  olhasse de maneira séria para as especificidades das mulheres não brancas.

Lembro desse episódio porque foram também mulheres do MNU, entre outras entidades, que incidiram sobre a organização deste festival, que apontaram para a  necessidade de que fosse incluída na programação uma mesa de debate específica que colocasse a Marcha das Mulheres Negras no horizonte de todas as mulheres. A ausência do tema não se justificava, especialmente, num momento em que as mulheres negras organizadas se encontram , a todo vapor, trabalhando muito para a realização da 2ª Marcha Nacional de Mulheres Negras, de norte a sul do país.

Agradeço também à reciprocidade e escuta de Manuela D’Ávila em relação a esse pedido — um gesto que, ao meu ver, parte do reconhecimento de que não há revolução feminista, nem construção de uma democracia real, sem as mulheres negras.

Falo a partir da minha experiência dentro da coletiva Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, espaço que ajudei a fundar em 2014 com muitas companheiras, como fruto do processo organizativo de mobilização e realização da 1ª Marcha das Mulheres Negras, que ocorreu em 2015.

Fomos 50 mil mulheres negras ocupando Brasília naquele ano. Quem esteve lá? (poucas mãos se levantam)… Bem, é preciso aumentar muito esse número e construir uma mobilização forte para novembro.

A Marcha de 2015 foi o último movimento popular e massivo a ocupar Brasília antes do golpe que tirou a presidenta Dilma Rousseff do poder. Vale lembrar que fomos recebidas ali a tiros por um acampamento que pedia a volta da ditadura militar.

Dilma  nos recebeu naquele dia, depois de ver o tamanho da nossa mobilização. Entregamos em suas mãos um documento muito importante:  a Carta das Mulheres Negras de 2015, que trazia nossa visão de mundo e nossas reivindicações.

Dias após a realização da Marcha, aconteceram dois fatos curiosos:  o desmonte do acampamento da direita no Congresso Nacional e, surpreendentemente,  o rebaixamento da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Essa não é uma crítica pessoal à ex-presidenta — sou “coração valente” e admiro muito Dilma, que segue fazendo história atualmente à frente da presidência do Banco dos BRICS. Ressalto aqui apenas fatos que refletem como, em momentos de crise, os direitos das mulheres são negociados e os direitos das pessoas negras são totalmente ceifados.

Na Carta de 2015, reivindicamos o Bem Viver e apontamos princípios de um novo pacto civilizatório que precisa existir. Mas, naquele momento, não havia uma institucionalidade sólida capaz de sustentar uma visão realmente disruptiva e revolucionária.

Lá se foram 10 anos — e não foi uma década qualquer. Dissemos “não vai ter golpe”, e teve golpe. Gritamos “Fora Temer”, e Temer ficou. E, seguido dele, apesar do “Ele não”, que também participamos, tivemos os piores quatro anos dos últimos tempos, agravado pela pandemia da Covid-19. Anos de uma conjuntura cruel, que sabemos incidiu com ainda mais violência e requintes de crueldade sobre a população negra.

Diante de tudo o que ocorreu nesses 10 anos, é louvável, sim, estarmos vivas — e mais ainda, estarmos organizadas para enfrentar não só a luta da sobrevivência diária, mas também prontas para a construção de outra sociedade.

A 2ª Marcha está nas ruas desde o ano passado. Estamos organizadas por meio de um Comitê Nacional, composto por diversas entidades como a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), o Fórum Nacional de Mulheres Negras, a Rede de Mulheres Negras do Nordeste, o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans), o MNU, entre outros. Também nos organizamos em comitês regionais, estaduais e municipais.

Esse é um convite às mulheres negras aqui presentes para estarem conosco, fortalecendo essa articulação. A força da Marcha de 2015 foi, justamente, termos olhado para o que nos une, sem silenciar nossas diferenças. Então, estão todas convidadas: as cis, as LBTs, as candomblecistas, as evangélicas, as trabalhadoras, as estudantes, as imigrantes,  as mais novas e as mais velhas. Procurem a organização da Marcha Nacional no seu estado.

Agora, peço licença para me dirigir às pessoas brancas presentes e às suas respectivas organizações: a esquerda precisa se comprometer com essa grande mobilização. Há uma série de coletivos e lideranças orgânicas do Movimento Negro e do Movimento de Mulheres Negras que precisam ser respeitadas e ouvidas nesse processo. Falo também de apoio político e material, para que tenhamos êxito em levar muitas mulheres negras para a Marcha 2025.

Sei que falo para uma plateia consciente — não sei se antirracista, porque, como todes aprendemos com Angela Davis, para ser antirracista é preciso haver prática, uma ação antirracista. Precisamos ampliar os debates sobre a construção da Marcha, mas isso só acontecerá se encararmos que, sim, ainda temos muito a avançar nas relações raciais — inclusive entre nós, mulheres brancas e negras de esquerda. É preciso enfrentar a branquitude e o patriarcado enquanto sistemas de poder, dominação e privilégios. As mulheres brancas podem ser grandes aliadas nessa luta. Mas essa aliança não pode se resumir a nos incluir em mesas de debate. É preciso que mulheres brancas e organizações mistas de mulheres e homens de esquerda se comprometam com  a tarefa de levar com dignidade milhares de mulheres a Brasília.

Aqui em São Paulo, há 9 anos marchamos no 25 de Julho, por conta do Dia Nacional da Mulher Negra (sancionado por Dilma) e pelo Dia Internacional da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. Há 9 anos respondemos à mesma pergunta: “Pessoas brancas podem ir à Marcha?”. Costumo responder com outra pergunta: “Onde pessoas brancas não podem ir?”. Sim, podem ir — e apoiar, respeitando o protagonismo das mulheres negras.

Esse é também um convite desafiador para as organizações tradicionais da esquerda. Um convite para que, sim, se engajem na construção da 2ª Marcha. Mas que cheguem, como ensinou Dona Ivone Lara: pisando no chão devagarinho e respeitando o Movimento de Mulheres Negras.

Finalizo relembrando que, em 2015, invocamos o Bem Viver. Sonhamos com outra sociedade, respaldadas em uma vivência feminista negra — a partir das periferias, das mulheres do campo, dos quilombos, dos terreiros, a partir de uma Amazônia negra. Agora, afrontosas que somos, ousamos falar de reparação — o que traz a necessidade de materializar os imaginários que criamos com o Bem Viver, por meio de políticas reparatórias concretas.

Nosso debate sobre reparação será radical. E não há outro caminho. Porque não há como falar de reparação sem falar no combate ao genocídio negro, das prisões, de justiça racial e de uma economia distante das premissas capitalistas. Queremos debater taxa de juros, ajuste fiscal, equidade salarial por gênero e raça. Queremos falar sobre linha de crédito para mães solo, moradia, previdência social, entre outros temas. Sim, as mulheres negras estão elaborando aportes para uma outra economia possível. Como sempre, no meio da escassez, somos visionárias da abundância e da prosperidade.

Espero que esta minha fala (agora artigo), como uma reza rezada, uma mandinga cantada e um feitiço lançado, ressoe profundamente nos corações e mentes aqui presentes — para que haja real compromisso com este momento tão importante. A Marcha não é o que vai acontecer apenas no dia 25 de novembro: ela é todo o processo de formação, conscientização, ampliação e fortalecimento da luta antirracista no Brasil. Algo que acontece sempre que as mulheres negras se movimentam.

Agradeço imensamente a escuta (e agora, a leitura). Agradeço às companheiras de luta que batalharam para que esse diálogo fraterno acontecesse. Estamos em marcha por nós, por todas nós, por reparação e pelo Bem Viver — até que todas sejam livres.

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  • Juliana Gonçalves

    Jornalista formada pela Universidade Mackenzie e pós-graduada em Jornalismo Literário. Mestra em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolveu a dissertação "O Bem Viver em narrativas de mulheres negras". É militante da coletiva Marcha das Mulheres Negras de São Paulo.

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