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África, Orixás, Terreiros, Macumbas e Samba: o desafio à descolonização das mentes do cristianismo eurocentrado

Tempo de jubileu (e de Carnaval afrocentrado) é tempo de exorcizar o diabo que o colonialismo racista colocou em nossas cabeças. A intolerância religiosa é crime; e a ignorância?
Desfile da Estação Primeira de Mangueira no primeiro dia de carnaval do grupo Especial na Marquês de Sapucaí, na região central do Rio de Janeiro.

Desfile da Estação Primeira de Mangueira no grupo Especial do Carnaval, na Marquês de Sapucaí, na região central do Rio de Janeiro, em 2 de março de 2025.

— Tomaz Silva/Agência Brasil

3 de março de 2025

Para o educador Rubens Alves, há escolas que emburrecem; são gaiolas — atravancam o processo educativo; são escolas que não fazem pensar; são fábricas de eternas repetições. Nesse horizonte, também podemos falar de igrejas emburrecedoras, igrejas-gaiolas. São essas igrejas, patrocinadoras da ignorância, espaços religiosos (templos, dioceses, paróquias, seminários, etc) que lucram com a demonização dos tesouros da ancestralidade africana.

Demonizar é uma forma poderosíssima de tentar desqualificar e/ou destruir o outro. No contexto colonialista/racista, demonizar é estratégia de dominação, mas quem demoniza também manifesta suas pobrezas mentais — suas burrices cognitivas. 

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No carnaval de 2025 a maior parte das escolas de samba trazem conteúdos das religiões afro-brasileiras. E essa situação maravilhosa desafia a nós, cristãos e cristãs, católicos e evangélicos, a exorcizar os diabos que o colonialismo colocou em nossas cabeças, entre os quais, o diabo da ignorância, isto é, o diabo emburrecedor. 

O projeto cristão de colonialidade decide o que devemos conhecer e o que devemos ignorar, o que devemos amar e o que devemos odiar. 

Ensina Nelson Mandela que ninguém nasce odiando. Tudo faz parte de um aprendizado. Aprendemos, por exemplo, que Exu é o diabo e que samba, capoeira e jongo são coisas do maligno, pecaminosas, primitivas ou sem valor.  Aprendemos que candomblé e umbanda são do diabo ou religiões inferiores. Tudo isso é mentira colonial! 

Disse Dom Hélder: “Basta de uma igreja que quer ser sempre a primeira, que não tem a coragem de aceitar o pluralismo religioso”.

A intolerância é vizinha da ignorância. Embora não digam, pelo menos de forma aberta, nossos irmãos e irmãs de terreiros sabem que o cristianismo colonialista (católico e evangélico) sofre de burrices crônicas — culposas e dolosas. E a pior burrice é aquela revestida de arrogância. “Não sei e nem quero saber…”. 

Todos os saberes africanos (culturais e religiosos) sofreram (e sofrem) processos sistemáticos de desqualificação, apagamento e demonização. 

Entretanto, a afirmação e a manifestação das tradições religiosas afro-brasileiras na passarela do samba revelam o fracasso de um ideário cristão exclusivista, demonizador e intolerante. Dizendo de outro modo, apesar de inúmeras tentativas de extermínio cultural e religioso (no passado e no presente), o cristianismo não conseguiu exterminar os tesouros ancestrais da negritude. Como cristão reconheço fracassamos – graças a Deus! 

As escolas de samba, dizendo no pé, endossam as palavras do intelectual e escritor Alberto da Costa e Silva: “O Brasil é um país extraordinariamente africanizado”. 

Depreciar, por exemplo, uma obra de Portinari, não é problema de Portinari, mas da ignorância de quem olha. Desse modo, depreciar ou demonizar os tesouros da ancestralidade africana que tomam forma na Sapucaí nos mais diversificados enredo no  ano de 2025, por exemplo, não é um problema dos terreiros, mas da burrice, por vezes, dolosa de quem olha; e, pelo olhar, mata com intenção de matar. 

Demonizar é um ato supremo de violência; violência com glacê religioso.

O carnaval de 2025, pela ênfase na explicação dos saberes dos terreiros, não pode ser uma extraordinária oportunidade para nós, católicos e evangélicos, rompermos com a evangelização emburrecedora patrocinada pelo cristianismo colonial? 

Estação Primeira de Mangueira desfila no primeiro dia de carnaval do grupo Especial na Marquês de Sapucaí, na região central do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Por que não exorcizar o diabo da colonialidade que está em nossas cabeças?  Diz o teólogo Ronilso Pacheco que “o exorcismo deste demônio, o racismo, exige jejum e oração”. 

No plano católico, sobretudo dioceses que usufruíram fartamente do sangue dos escravizados e escravizadas deveriam ser as primeiras a assumirem a Lei 10.639, que faz obrigatório o ensino sobre África e História do Negro no Brasil. Por que não assumem? Qual o Seminário no Brasil que assumiu a Lei? 

Por que alimentar cegueiras, ignorâncias e intolerâncias?  Quem lucra patrocinando burrices coloniais? 

Por isso, é necessário desconfiar de muitas catequeses, cursos teológicos, lives, palestras, retiros, cultos e homilias. É preciso, as vezes, desconfiar de autoridades religiosas que em nome de Cristo e da Igreja emburrecem o mundo com pensamentos coloniais que sustentam a supremacia branca. 

Ensina Dom Helder Câmara que “nem sempre a Igreja é sincera como gostaria ou deveria ser”. 

Adverte, de forma desconcertante, o teólogo Ronilso Pacheco: “Nós precisamos crer menos… Devemos recuperar o lugar da suspeita, a dúvida que foi calada…”.

Nem todo aquele que diz “Senhor, Senhor” lutará pelo fim do racismo religioso. Nem todo aquele que diz “Senhor, Senhor” lutará pela afirmação do pluralismo religioso e pela afirmação e valorização dos tesouros da africanidade. 

Louvo e elogio cada escola de samba que encanta pedagogicamente o Brasil com suas potentes e sapientes religiosidades, cujos saberes ultrapassam a pequenez do olhar de um cristianismo eurocentrado, colonialista e racista. 

O racismo religioso é também questão de cegueira e burrice, burrice planejada. 

Imperatriz Leopoldinense desfila no primeiro dia de carnaval do grupo Especial na Marquês de Sapucaí, na região central do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O celebérrimo Milton Cunha tem plena razão quando fala sobre a Sapucaí: “É desfile da inteligência negra”. É inteligência que desafia, ginga, samba ri e passa diante de nossas burrices coloniais – burrices perigosíssimas! 

Que diabo nos faz amar halloween e odiar uma gira de caboclo? Que demo é esse que patrocina o gospel e persegue o batuque? 

Que entidade maligna é essa que nos faz amar Branca de Neve e desconhecer Xica Manicongo? 

Da minha parte, também sou filho de processos emburrecedores, sobretudo os vividos no mundo eclesiástico. Se vivesse 200 anos ainda assim seria pouco tempo para apagar as marcas em minha alma preta das burrices que aprendi. Como Rubens Alves, estou “aprendendo a desaprender”. Não é fácil.

Talvez, o que posso trazer de diferente da maioria dos meus irmãos de presbitério e de tantos cristãos e cristãs (católicos e evangélicos) que vivem demonizando o mundo e, sobretudo, as religiões de matriz africana, é que, de verdade, de corpo e alma, luto para desemburrecer… Um ser emburrecido é um ser privado de luz! 

Disse o Papa Francisco: “Não podemos formar padres burros”. 

Confessadamente, ainda tenho muita burrice para ser exorcizada dentro da minha cabeça colonizada e cheia de diabos inventados pela catequese e pela teologia da casa grande. Mas isso não é problema nem de Oxalá, nem de Exu e nem de nenhum outro Orixá ou enquice; e também não é problema da Sapucaí ou do samba. O problema é meu; é nosso! O problema é de nossa mentalidade cristã colonizada e do diabo emburrecedor que não sai da nossa cabeça. 

As igrejas cristãs também produzem sim cegueiras e burrices. Deveríamos assistir os desfiles de 2025 de joelhos na Sapucaí. Pedindo perdão a Deus pela aliança histórica com o pecado do racismo e a escravidão; perdão pela demonização, desqualificação e perseguição aos bens culturais e religiosos afro-brasileiros; perdão também pela indiferença ante os tesouros civilizatórios da Mama África. 

Uma Bíblia pode ser mais perigosa que um fuzil! 

A Paraíso do Tuiuti, com o enredo “Quem tem medo de Xica Manicongo”, deixa, em 2025, um desconcertante recado para nós, cristãos e cristãs, quase sempre prontos à intolerância, fruto de nossa conveniente e diabólica burrice colonial: 

“Não venha me julgar… Este dedo que acusa não vai me fazer parar. Faz tempo que eu digo não ao velho discurso cristão!”

Como disse Jesus: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça…”. 

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  • Padre Gegê

    Padre Gegê é pároco em Manguinhos, Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro e Doutor em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a tese "Quem disse que Exu não monta?: Abdias Nascimento, o cavalo do santo no terreiro da história" e militante na Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro

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