Por: Beatriz Ribeiro e Waleska Queiroz
Às vésperas da 30ª Conferência do Clima, Belém, a 6ª capital mais negra do país, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vive uma encruzilhada histórica. Enquanto a cidade acelera sua preparação para receber o maior evento climático das Nações Unidas, suas baixadas seguem marcadas pelo abandono estrutural.
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As baixadas em Belém são comunidades periféricas assim como as favelas, porém localizadas em áreas de terreno baixo e alagadiço, próximas a corpos d’água como rios, igarapés e canais. Essas regiões enfrentam grandes desafios, como enchentes frequentes, falta de infraestrutura básica e serviços públicos insuficientes. São territórios historicamente marginalizados, que sofrem com as consequências da desigualdade urbana e da falta de investimentos públicos. As baixadas em Belém também concentram o maior número de pessoas pretas, pardas e indígenas.
Além disso, segundo o censo 2022, Belém é a cidade com o maior número de favelas/baixadas no Brasil, abaixo podemos ver um comparativo entre o mapa de favelas e o mapa racial da cidade:

Foto esquerda: Atlas das Baixadas, 2025 — localização das favelas/baixadas em Belém do Pará. Foto direita: Atlas das Baixadas, 2025 — concentração de pessoas pretas, pardas e indígenas em Belém do Pará.
Em meio à agenda internacional, cooptada por discursos institucionais, as mídias governamentais destacam as benfeitorias concentradas no centro da capital paraense, como na imagem abaixo, que mostra as obras do novo parque linear na Doca de Souza Franco, o perímetro urbano mais caro da cidade, e também uma das regiões com a menor presença da população negra em Belém.

No entanto, os movimentos sociais seguem firmes, articulando ações que denunciam as violações vividas nas bordas invisibilizadas de Belém. À medida que as obras da COP30 avançam, as baixadas continuam sem qualquer intervenção vinculada ao evento, enfrentando problemas antigos como alagamentos, acúmulo de lixo, esgoto a céu aberto e insegurança habitacional, como no caso emblemático do Residencial Liberdade I e II, na baixada da Terra Firme.

Entrada do Residencial Liberdade I e II, em meio a um lixão a céu aberto. Foto: Beatriz Ribeiro
O Residencial Liberdade, uma obra de grande porte vinculada ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), foi parcialmente entregue, em 2017, a cerca de 320 famílias. A maior parte das habitações, no entanto, permaneceu inacabada, resultando em uma extensa área ociosa e abandonada. Diante dessa negligência, nasceu a ocupação Liberdade, localizada na área não concluída do projeto.
Hoje, é considerada uma das maiores ocupações urbanas da região Norte na luta pelo direito à moradia, abrigando centenas de famílias que, por meio de esforço coletivo, revitalizaram o local para garantir o seu direito constitucional de moradia digna.
Atualmente, mais de 500 famílias vivem sob o risco de serem despejadas sem qualquer amparo do poder público. A Companhia de Habitação do Estado do Pará (COHAB) ingressou com uma ação judicial para a desocupação de duas quadras do residencial — onde vivem as famílias.
Esse conflito fundiário evidencia uma das formas mais “sofisticadas” do racismo ambiental, quando uma pequena parcela da população tem acesso à moradia e infraestrutura urbana adequada, enquanto a maior parcela da população, em maioria negra, não possui os mesmos acessos. Quando políticas públicas não funcionam, ou não existem, a população busca regiões com alta sensibilidade ambiental para habitar, seguindo um padrão que geralmente resulta na vulnerabilidade ambiental e climática dessas pessoas.
O caso do Liberdade é emblemático, pois demonstra um modelo de baixada que não é inteiramente carente de políticas públicas, mas que sofre com a ineficiência das infraestruturas convencionais desse tipo de projeto. Edson Junior, morador da ocupação, comenta sobre uma prática que já pouco se vê nas baixadas belenenses, a pesca nos igarapés canalizados, os quais são pequenos braços de rio que passaram por obras de drenagem padrão, seguindo um modo de projeto baseado no desmatamento da mata ciliar e na concretagem das margens. Geralmente, os igarapés perdem seu nome no processo, em mais um modo de produção do racismo ambiental, com a tentativa de dar fim a troca humano-natureza que ali coexistem.

Igarapé do Liberdade II. Foto: Andrew Leal
Hoje, um dos maiores medos dos moradores é que as obras de macrodrenagem no entorno acabem de vez com a vida no igarapé, uma vez que Belém não possui sistema de saneamento, e utiliza seu sistema de drenagem como estrutura para “coletar” os resíduos sólidos.
Segundo a Prefeitura de Belém, apenas 13,05% do esgoto da cidade de Belém é tratado — o restante é lançado em 14 bacias hidrográficas, agravando a degradação ambiental e ameaçando a saúde pública. Como apontam muitos moradores, “as obras da COP30 não são para nós; são para gringo ver”.
Frente às ameaças do racismo ambiental institucional, as comunidades das baixadas continuam construindo alternativas de resistência. A Terra Firme se reconstrói com projetos como o Sarau em Movimento, que ocupa a comunidade com cultura e arte. Em meio a tantas violações, esses atos de resistência emergem como instrumentos educacionais, de denúncia e também de cura, memória e pertencimento. Cada roda de slam sobre as pessoas e a natureza que os cercam carrega a força ancestral de uma resistência que não se cala diante das injustiças.

Coletivo Sarau em Movimento
Todo esse processo de permanência dessa população nas bordas das cidades é resultado de uma urbanização marcada pela divisão racial do espaço, como aponta Joice Berth em seu livro “Se a cidade fosse nossa”. É, também, a prova viva de que a COP30, se não estiver comprometida com a justiça racial, social e climática, corre o risco de apenas reproduzir o mesmo modelo de exclusão que afirma combater.
Para os movimentos sociais de Belém, espera-se que a COP30 não seja lembrada como um mero espetáculo para os olhos internacionais, mas como um marco de escuta e de reparação real com as populações das baixadas. Afinal, se o futuro do clima passará por Belém, ele precisa, sobretudo, passar pelas mãos de quem sempre resistiu nas periferias da cidade, priorizando no centro da discussão o debate antirracista como caminho para os avanços na luta por justiça climática. Se agora não for o momento para falar das problemáticas locais em um espaço de discussão internacional, quando será?
Beatriz Ribeiro é estudante do curso de biblioteconomia, agente cultural de Belém, multiartista e pesquisadora no Observatório das Baixadas. Integra o coletivo Resistência Feminina Dorothy Stang, é autora do livreto Resistência em Linhas Poéticas (2019) e idealizadora do projeto Poesia em Capa Dura. Desenvolve ações socioculturais com foco em formação crítica, pertencimento e protagonismo periférico, atuando em prol da justiça social.
Waleska Queiroz é engenheira sanitarista e ambiental, mestra em Cidades Inteligentes e Sustentáveis, com foco em justiça climática. Moradora da baixada da Terra Firme, tem atuação destacada em programas como Climate Skills e Boto Fé no Clima. É integrante da COP das Baixadas, co-fundadora do Observatório das Baixadas e integra a PerifaConnection. Foi pesquisadora no Centro Brasileiro de Justiça Climática e já participou das COPs 28 e 29, além da COY19 e da Cúpula das Juventudes 2025.