Por: Iara Moura, do Intervozes, Coletivo Brasil de Comunicação Social
“Você liga a televisão e é o tempo todo pau na polícia. Só pau na polícia, pau na polícia (…) Não dá isso. Quantos marginais estão matando policiais e vocês não falam? Faz um levantamento sobre isso. Eu sou contra essa matança desenfreada que está aí, mas aí, só tem duas opções: ou recua, ou avança. E a nossa tropa tem que avançar. Então escreve aí [no jornal], faz um elogio à polícia (…). Graças a Deus faz 16 anos que eu vim pra essa televisão [TV Itapoan, afiliada da RecordTV BA que vai ao ar diariamente de 11h50 às 15h30] e tenho independência”.
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O trecho transcrito é uma fala de José Eduardo, conhecido como Bocão, um dos apresentadores do Balanço Geral Bahia, transmitido diariamente pela afiliada da RecordTV. O corte – em que o apresentador se dirige aos colegas da imprensa e faz um apelo contra o que ele considera uso político da cobertura da violência policial no estado – circulou amplamente nas redes sociais após ser veiculado ao vivo na televisão aberta em 11 de agosto de 2023.
Naquele momento, a escalada de violência se acelerava rumo a um ápice bárbaro. Foram mais de 137 pessoas mortas por arma de fogo na Bahia apenas no mês de setembro. Segundo dados do Fogo Cruzado, Salvador e a Região Metropolitana contabilizaram 74 tiroteios em ações policiais, que resultaram na morte de 72 pessoas e deixaram 13 feridas. Entre os mortos, 31 foram atingidos nas cinco grandes operações policiais que ocorreram no período. Três policiais morreram.
Um olhar mais apurado para os dados de segurança pública e uma navegada no Portal da Transparência colocam em xeque o argumento de Bocão e a suposta “independência” dele e da emissora. A relação amigável entre o programa e o governo do Estado chama a atenção.
Dados do Portal da Transparência dão conta de quatro contratos de comunicação e propaganda em vigência de fevereiro de 2021 até fevereiro de 2024, firmados entre o governo do Estado por meio da Secretaria de Comunicação (Secom), na casa de R$ 355 milhões cada um. Os contratos foram assinados antes de Jerônimo Rodrigues (PT) assumir o posto de governador.
O quadro de despesas, mês a mês, disponibilizado após requisição via Lei de Acesso à Informação, revela que o valor global de contratos firmados com fins de publicidade institucional do Governo do Estado da Bahia em 2023 foi estimado em R$ 177.500.000,00 a ser efetivamente executado pelas quatro contratadas. Deste total, o valor gasto especificamente com publicidade da Secretaria da Segurança Pública – de janeiro a setembro de 2023 – foi de R$ 4.225.024,64.
Conforme observa-se, em setembro, os valores contratuais atingem o pico máximo com mais de 20 milhões investidos em publicidade. Desta soma, R$ 803.105,67 destinou-se a publicizar ações da Secretaria de Segurança Pública.
A alta de gastos com publicidade ocorre no mês em que Salvador e Região Metropolitana alcançaram o ranking nacional de mortes por ação violenta da polícia. Neste período, o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), concedeu pelo menos duas entrevistas ao vivo e exclusivas ao Balanço Geral (RecordTV), líder de audiência no horário.
Logo no início do mês, no dia 6 de setembro, o governador falou ao programa ao vivo por meia hora, em horário de grande audiência, ao meio-dia. Na ocasião, defendeu a ação “firme” da polícia contra o que, tanto ele quanto o apresentador do programa, definiram como uma “guerra contra o crime”.
Nos estúdios da TV Itapoan, Jerônimo anunciou que vai publicar no Diário Oficial mais um incentivo financeiro para a Polícia Militar, parte de um plano de desempenho para a redução de crimes no estado e para a apreensão de armamentos. Durante a fala, vídeos institucionais de viaturas semiblindadas sendo entregues e de gabinetes e prédios policiais recém-inaugurados foram veiculadas.
O programa segue com espaço para ações do Governo do Estado nas áreas de urbanização, mobilidade urbana e educação. Em dado momento, ainda na agenda de segurança pública, o governador também destaca o investimento na instalação de câmeras de reconhecimento facial.
As câmeras integram o Consórcio Vídeo Polícia, contrato de maior valor mantido pela Secretaria de Segurança Pública do Estado. Segundo dados d’O Panóptico, entre 2018 e 2022, o governo do estado investiu R$ 683 milhões para implementar tecnologias de reconhecimento facial (TRF) na Bahia. “Apesar da defesa do uso dessas câmeras como solução para a segurança pública, não foram constatados os efeitos prometidos na redução da violência”, destaca o estudo O sertão vai virar mar – expansão do reconhecimento facial na Bahia.
Segundo o levantamento, além de ser uma tecnologia cara, o viés racial é marcante. Na primeira versão do termo de referência do projeto de interiorização do reconhecimento facial na Bahia, o “estilo de cabelo” e o “estilo inferior” foram listados como parâmetros de análise das TRFs. Segundo a campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira é necessário banir a utilização dessa tecnologia na segurança pública, porque é cara, ineficiente e contribui para o aprofundamento do racismo estrutural, além de acelerar o encarceramento em massa.
Merchandising ou informação?
Ao fim da participação no Balanço Geral Bahia no dia 6 de setembro, véspera de feriado da independência do Brasil, o governador arremata: “Segurança pública não é só polícia, mas eu também sei que polícia é importante. Ontem quando saiu a notícia ‘tá tendo tiro na Federação’ dá vontade sabe de quê, Zé [se dirigindo ao apresentador]? De ir lá junto com a Polícia (…) A PM sabe que pode contar com o governador. Minha ordem não é matar, minha ordem é direitos humanos. Minha ordem é preservar a vida para que a gente possa até, a partir do que nos prendemos, levantar a situação. Mas não dá. Um dos que nós prendemos ontem tem 19 passagens pela polícia. Entra e sai. Aquele baralho, lembra? Nós estamos perseguindo essas pessoas. Nós temos que fazer ações de direitos humanos, mas a polícia tem que ser firme. Se é disputa de facções, faça fora daqui, a Bahia não comporta isso e não vai comportar”, afirma Jerônimo.
Enquanto os dois se despedem calorosamente, Jerônimo manda um abraço para Carlos Alves (atual diretor da Record Bahia) e para “o bispo” (provavelmente referindo-se a Fábio Tucilho, que esteve à frente da afiliada baiana por nove anos e, no fim de 2022, transferiu-se para a chefia da emissora no Rio de Janeiro). Foi sob o comando de Tucilho que a emissora tirou do ar o popularesco “Se Liga Bocão” (2006-2014) e colocou José Eduardo Bocão como apresentador do Balanço Geral. A ideia era seguir na linha sensacionalista dos programas policialescos, porém com estética mais ‘soft’, com menos sangue exposto. Atualmente, o Balanço Geral vai ao ar em duas edições, nas manhãs e ao meio-dia, com duração diária de mais de quatro horas onde revezam-se coberturas de violência com “utilidade pública”, como a denúncia de problemas em regiões empobrecidas e a resolução de conflitos entre vizinhos ou familiares.
Antes de despedir-se por completo, o governador aproveitou para mandar um abraço para a mãe do apresentador e anunciar – no que parece mais uma ação de merchandising – o pagamento de precatórios para os professores estaduais.
Em 22 de setembro, o chefe do executivo volta ao estúdio do Balanço Geral para outra longa entrevista ao vivo. A chamada “Governador da Bahia faz o maior investimento da história da segurança pública do estado” dá o tom do conteúdo da próxima meia hora. Novamente, a confusão entre conteúdo informativo e publicitário cria uma narrativa que torna difícil identificar onde começa o “valor-notícia” e onde se torna “valor-anúncio”. Ao fim, vai sendo repetida a tese de que a letalidade por violência policial é uma espécie de mal necessário de uma guerra contra o crime organizado e de que há um investimento grande e estratégico para manter a “firmeza” do trabalho das polícias.
Jerônimo inicia se solidarizando com a morte de um policial e destaca sobre as forças policiais que “são pais e mães de família que vão em busca de resolutividade, de apreensão de armas e drogas (…) Não vão atrás de corpos”. Na manhã daquela sexta-feira uma operação na região de Águas Claras, em Salvador, e em Feira de Santana, no interior do estado, culminou na morte de seis homens, totalizando 20 pessoas vitimadas somente na semana do dia 15 ao 22, a mais sangrenta do ano.
O governador também se solidariza com as famílias atingidas pela violência e lamenta os prejuízos das escolas fechadas. Volta a defender a “ação firme” da polícia para não permitir que as facções ou os comandos tomem conta de bairros ou cidades. Classifica a ação policial como “atos preventivos”. “Não vamos esperar eles atacarem pra gente ficar numa situação de refém”, afirma Jerônimo. José Eduardo Bocão ratifica que ouviu elogios do “Zero-um do Bope do Rio de Janeiro”, porque a polícia baiana foi para o enfrentamento logo cedo.
A entrevista segue com anúncio da chegada de blindados da Polícia Federal e com aumento do investimento nas polícias. Em dado momento, o governador agradece a “solidariedade” de José Eduardo Bocão e faz um apelo ao povo da Bahia: “é preciso essa rede de solidariedade para que a gente não ultrapasse o limite de divulgar que a Bahia tá insegura, que a Bahia é um caos. Todo mundo perde com isso”, defende.
Em dado momento, Bocão celebra a audiência: “Nunca uma autoridade esteve aqui pra gente apresentar o que a gente tá apresentando em dados, em números… agradecer a você que tá em casa, você é o número um da Record [refere-se aos telespectadores]… é estúpida a nossa audiência, me parece que pela primeira vez nós chegamos a um patamar, com uma autoridade aqui ao meu lado, nesse número que nós estamos agora. É a força que tem essa emissora, dirigida pelo meu querido Carlos Alves. É a força que tem o programa ao lado do governador Jerônimo”, comenta. Após isso, o apresentador anuncia e chama um VT de campanha institucional do governo do estado acerca da conscientização sobre o autismo. A campanha volta a ser repetida no intervalo do programa em diversos dias do mês de setembro.
Apesar de ter sido intensificada durante o mês de setembro, a presença do Governo do Estado da Bahia no Balanço Geral, seja em participações em entrevistas, seja em forma de anúncios publicitários, campanhas e merchandising, é uma estratégia recorrente. Em abril de 2023 já era possível identificar uma ação de merchandising dentro do programa.
Questionada sobre o investimento publicitário especificamente no Balanço Geral e na TV Itapoan, a Secom/BA esclareceu que não contrata canais de TV. As agência contratadas é que firmam contrato com veículos de comunicação. “As agências (contratadas) apresentam a estratégia de mídia de acordo com o objetivo de cada campanha e os valores investidos são autorizados e executados por elas, licitadas para tanto”, declarou a ouvidoria.
Além do investimento em propaganda, outras parcerias com os poderes públicos municipal e estadual também beneficiam o Balanço Geral Bahia. É o caso, por exemplo, do Balanço Geral nos bairros. A ação consiste na realização de espécie de showmício com transmissão ao vivo do Programa, atrações artísticas, prestação de serviços como vacinação e orientação sobre direitos do consumidor, dentre outros. Em 5 de agosto deste ano, o evento ocorreu em Cajazeiras – bairro de alta densidade populacional de Salvador que já foi considerado o maior da América Latina – e contou com o patrocínio da Uninassau, Bahia Norte e Embasa. O Governo do Estado da Bahia e a Prefeitura de Salvador realizaram o apoio institucional.
Modelo de negócios e violações de direitos
Em 2015, o estudo “Violações de direitos na mídia brasileira” acompanhou 28 programas do gênero durante 30 dias, em dez estados brasileiros, e constatou mais de 4.500 violações de direitos, 8.232 infrações às leis brasileiras, 7.529 infrações a acordos internacionais e 1.962 desrespeitos a normas autorregulatórias nas matérias apresentadas.
Já em 2019, outro levantamento, feito pela Andi e pelo Instituto Alana com o apoio do Intervozes, monitorou 20 programas policialescos, em dez estados da federação, durante três semanas, e analisou em seguida as cotas de patrocínio, de merchandising e os anúncios veiculados nos intervalos comerciais. O estudo encontrou o apoio financeiro de instituições públicas e órgãos de estado a diversos programas. Governos e legislativos federais, estaduais e municipais também apoiam este tipo de programação, contrariando a recomendação feita pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em setembro de 2016.
Na ocasião, o CNDH indicou aos ministros de Estado, aos governadores, aos prefeitos e aos dirigentes de empresas estatais que fossem adotadas providências no sentido de vedar/cessar a veiculação de publicidade de órgãos públicos e empresas estatais em programas de cunho “policialesco”, seja como cota de patrocínio, seja nos intervalos comerciais ou por meio de merchandising.
À época, o Governo do Estado da Bahia não apresentou resposta à recomendação, segundo o CNDH. Outros estados como o Ceará e o Rio de Janeiro sinalizaram a vedação expressa de veiculação publicitária nesse tipo de programa. Resta monitorar se a medida vem sendo cumprida.
Trampolim político
Também sustenta esse negócio sangrento e lucrativo o fato de os programas policialescos terem se consolidado como verdadeiros palanques e trampolins políticos. Conforme levantamento feito pelo Intervozes, nas eleições de 2022, o número de candidatos do segmento cresceu: foram mapeadas 43 candidaturas com o perfil policialesco – candidatos oriundos de programas policiais, popularescos ou que se beneficiam deles para a realização de campanhas políticas – em 14 estados brasileiros (BA, PB, PE, CE, PI, AM, PA, RR, MT, MG, ES, SP, RJ e PR) e no Distrito Federal.
Na Bahia, Jorge Araújo, apresentador do quadro “Bafáfá” do Balanço Geral BA, concorreu a Deputado Federal pelo PP e angariou 32.780 votos, ficando na suplência. Ainda em 2022, concorreu seu colega de carreira, Ubiratan Lucas Rocha Matos, o Lucas Bocão. Disputando uma vaga na Assembleia Legislativa do estado, pelo Solidariedade, Lucas chegou a angariar 4.346 votos e também alcançou a suplência. O candidato fez carreira no Programa do Bocão transmitido pela Rádio Eldorado FM, por onde também passou José Eduardo. Com longa carreira nos programas policialescos, Lucas Bocão foi vereador do município de Teixeira de Freitas de 2020 a 2022.
A carne mais barata
Enquanto sangue preto e pobre é derramado, a batalha de narrativas segue a toda prova. Por um lado, vem sendo utilizada a estratégia negacionista de desacreditar dados científicos que, inclusive, baseiam políticas públicas de segurança e saúde. Foi o caso de declaração recente do ministro da Casa Civil Rui Costa, questionando os números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Tal prática é combinada à construção de uma narrativa de pretenso consenso em torno da necessidade de uma ação “firme” (e nesse caso, letal) das polícias. A ação violenta das polícias seria um mal necessário ou uma “ação preventiva” (nas palavras do governador Jerônimo Rodrigues, não custa lembrar) contra a tomada dos territórios por comandos e facções criminosas.
A narrativa da guerra às drogas (e ao crime organizado) já vem sendo questionada por especialistas há algum tempo. Em entrevista ao Grupo Metrópole, Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, demonstra a diferenciação de ações policiais em bairros periféricos e bairros de classes A, B e C. Como explica Dudu Ribeiro, um levantamento feito pela Iniciativa há dois anos apontou os dez bairros com mais notícias sobre violência.
Na lista, a Pituba apareceu com um índice de apreensão de drogas maior que em bairros como o complexo do Nordeste de Amaralina. Apesar disso, a Pituba teve zero homicídios, enquanto no outro foram 58 registrados no ano analisado. “Não é uma guerra contra todas as pessoas que consomem e comercializam drogas”, pontuou Dudu.
Nesta disputa de narrativas, as alianças político-midiáticas beneficiam programas e figuras públicas que lucram em verbas, cachês e anúncios e também com capital político. A que preço Jerônimo Rodrigues (e outros governantes) se alia a essas forças? Os custos sociais já vêm sendo contabilizados nas diversas vidas ceifadas e nas infâncias e adolescências marcadas pelo trauma da violência. Os custos aos cofres públicos, mais facilmente mensuráveis, também não são baixos conforme o apurado. Isso, atendo-se ao gasto com publicidade, sem levantar os prejuízos à comunidade escolar, ao comércio formal e informal, ao sistema de saúde. Na conta, o maior custo recai sobre a população empobrecida e negra, enquanto, na TV, conta-se outra história.
Iara Moura é jornalista, coordenadora executiva do Intervozes e relatora da Plataforma Dhesca Brasil.