Por: Talita Matos
Quando Grada Kilomba, psicóloga, artista e escritora portuguesa que discute questões raciais e de gênero, esteve no Brasil em maio de 2024 disse em entrevista ao Roda Viva: “A mulher negra é o outro do outro. Porque, de um lado, ela não é homem, também não é branca”. Em um continente como a América Latina, em que a construção social ocorre em torno de um padrão de homem universal, que é branco e também é cisgênero, nós ficamos sem identificação social alguma com esse suposto ideal – e um acesso dificultado às políticas públicas.
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Deste modo, parte principalmente da mulher negra e da luta de suas ancestrais a construção de possibilidades e caminhos para si e para sua gente. Isso inclui a carreira. No Brasil, nós ainda somos minoria no trabalho formal, nas posições de liderança em empresas e maioria dos desempregados em idade produtiva. As mudanças que incluem mulheres não brancas e diversificam a cara e a cor das empresas e do mercado de trabalho como um todo são lentas, mas já mostram passos significativos e percebo isso no dia a dia: as mulheres negras estão formadas e/ou capacitadas para oferecer produtos e serviços de alto impacto em todos os mercados.
As oportunidades dificultadas e a falta de ações afirmativas para mulheres negras, colocam-nos em ciclos geracionais difíceis de serem quebrados. Muitos problemas se repetem, passam quase como herança de avó para mãe, de mãe para filha. Mas elas reagem, se organizam e criam formas de quebrar essas barreiras cíclicas, principalmente por meio da educação. A lei de cotas nas universidades públicas foi e ainda é uma ferramenta importante nesta inclusão, direito conquistado e mantido graças à luta dos movimentos sociais. Eu mesma percebi uma mudança gigante na universidade pública, em 2006 eu era a única, no mestrado em 2017 éramos a maior parte da turma.
É um movimento que a escritora Conceição Evaristo descreve muito bem no poema Vozes-mulheres: “A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias”, ao que completa, entre a narração de outras vivências ancestrais: “A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância O eco da vida-liberdade”.
As mulheres negras do passado desempenharam papéis indispensáveis na transmissão de valores, tradições e saberes que moldaram as sociedades e comunidades ao longo dos anos. No contexto profissional das mulheres negras de hoje, a ancestralidade serve como fonte de orientação e inspiração, e também desempenha um papel importante na formação de carreiras e lideranças.
Os valores e tradições ancestrais influenciam em líderes comprometidas com um propósito coletivo e comunitário, tendência comum nas gerações mais novas, como a Millenium e a Z, que cresceram em um mundo com mais consciência racial e de gênero.
O Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, 25 de julho, é uma oportunidade de lembrar essa articulação coletiva que se arrasta há muitos anos, desde o Brasil Colônia até hoje, para a construção de uma sociedade mais justa para todas as pessoas, mas principalmente para as comunidades negras nos centros e periferias do continente.
Talita Matos é fundadora e diretora da Singuê, consultoria de diversidade, equidade e inclusão.