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‘Parditude’ é uma intenção política, não a consequência automática da diferença

Afirmar que pardos não são negros é uma decisão orientada por uma intencionalidade política que precisa ser explicitada, não uma consequência automática da diferença.
Imagem mostra uma mulher parda e um homem preto.

Imagem mostra uma mulher parda e um homem preto.

— Reprodução/Freepik

15 de fevereiro de 2025

As redes sociais da internet são palco, especialmente, da desinformação. Influenciadores viram especialistas e a ciência vira chacota sob a rubrica de “academicismo”. Pós verdade, racismo algorítmico, desregulamentação das plataformas digitais, tudo isso são elementos possíveis de se elencar neste tópico. O assunto, porém, será racialidade parda, não parditude.  

As ciências humanas operam com conceitos. Miscigenação, identidade, negritude, todos são conceitos, não apenas palavras. Tudo bem, nem todo mundo precisa saber disso, mas quem se arvora especialista de temática das humanidades, como relações raciais, sim. 

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Em 2021 mencionei a palavra “parditude” na minha dissertação de mestrado, em  referência aos casos de fraude branca no sistema de cotas raciais. A frase era mais ou menos assim: esses candidatos reclamam uma parditude (assim, emitálico) genética,  em referência aos seus antepassados. Puro neologismo. Eis que vejo, depois de alguns anos, a palavra virar lema na Internet. 

O sufixo “ude” conforma substantivos abstratos: infinitude e concretude. Branquitude e negritude. Palavras e conceitos, esses últimos com vasto referencial bibliográfico. Parditude, não. Mas tudo bem formular novos conceitos, as ciências humanas operam assim, eu disse ali no início. Se algo existe no discurso, existe no mundo. Então vamos lá. 

Em primeiro lugar, é importante estabelecer que provavelmente todos os seres humanos são mestiços. Essa afirmação depende inclusive da noção de mestiçagem que esteja operando. Nesse sentido, uma pessoa de pele preta ou de pele branca pode ser considerada tão mestiça quanto uma pessoa “parda”/”negra de pele clara”, por exemplo. 

Identidade é uma construção social e o debate sobre parditude cola a identidade à visualidade de traços supostamente mestiços. Existe uma construção social para o preto e para o pardo que não são sinônimas, de fato. Processos de racialização distintos, como tenho elaborado nos últimos anos. Mas afirmar que pardos não são negros é uma decisão orientada por uma intencionalidade política que precisa ser explicitada, não uma consequência automática da diferença. Isso porque dados quantitativos e qualitativos  mostram a proximidade da experiência social de pretos e pardos, algo muito denso para explicar aqui, mas que, em linhas gerais, conformou politica e cientificamente uma categoria única que desse conta de ambos os grupos. 

A categoria “negro” não induz pardos a se identificarem como negros, ela garante direitos. “Negro” nem sequer existe como categoria oficial. Vários nomes circulam no cotidiano das relações, não tem problema nenhum. Mas, para quem quiser e couber, a  categoria “negro” está aí para dar substância a políticas públicas que buscam combater desigualdades históricas. Uma coisa é a multiplicidade de nomes e categorias próprios da subjetividade humana, das muitas formas de expressão cultural, outra coisa é operacionalizar isso para uma burocracia. A engenharia política das lideranças negras  que alçou a definição de negros brasileiros foi genial. 

Mil categorias raciais não dão conta da diversidade racial nem do Brasil, nem de lugar nenhum do mundo. Quando se diz que o movimento negro obriga que se “escolha um lado”, tem-se na cabeça a ideia de que ao declarar-me negra, não me declaro branca, e  por aí vai. Mas sendo assim, ao me declarar parda, também não me declaro indígena, nem cabocla, nem amarela.

A identidade permeia o campo da escolha, mas não é uma  escolha arbitrária. A questão é: a categoria “pardo” também não é sinônimo de  diversidade e não precisa ser exaltada, ela esconde e subnotifica muitos grupos que  deveriam ser contabilizados como indígenas ou como ciganos, por exemplo. Ao olhar  para a história do Brasil e do uso da categoria pardo, vê-se explicitamente que o “pardo” é o justo oposto de diversidade racial, é sinônimo de genocídio e homogeneidade. 

Não jogo todas as minhas pedras na ideia de parditude, não. Deixo algumas para jogar na ideia de colorismo também. Outro “conceito” fantasma que ainda assombra os  debates contemporâneos de raça, sobre o qual já discorri longamente no meio científico  e também na internet. Grupos marginalizados não deveriam opor a ciência do mundo social e da mídia. Tudo é parte da construção do pensamento, ou seja, todas as partes  precisam ser consideradas, ao mesmo tempo em que nem tudo convém, existem ideias  boas e ideias más, coisas que precisam ser reforçadas e coisas que precisam ser combatidas.

Por isso não concluo esse texto chamando as partes a uma conciliação, eu chamo para a complexificação do discurso. O mito da democracia racial não é mito no sentido de uma mentira, é mito no mesmo sentido que é parditude, mito em seu sentido antropológico, um papo para outra conversa.

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  • Gabriela Bacelar

    Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Antropologia e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisa sobre relações raciais, colorismo, comissões de heteroidentificação racial e políticas afirmativas.

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