Quando a violência racista envolve uma empresa ou grupo capitalista acontece um outro fenômeno de afastamento da discussão sobre racismo: é a “chamada gestão de crise”
Texto / Juca Guimarães
Imagem / Mídia Ninja
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“Quando Fred foi morto em Chicago, os negros, em particular, e as pessoas decentes, em geral, sangraram em todos os lugares”, disse o reverendo Jesse Jackson, durante a cerimônia fúnebre pela morte do ativista Fred Hampton, de 21 anos, militante dos Panteras Negras. Hampton foi assassinado por policiais, que invadiram a sua casa em Chicago, no dia 5 de dezembro de 1969, durante um dos períodos cruciais da luta pelos direitos civis nos EUA.
O crime fez parte de uma conspiração do FBI para acabar com os panteras negras, que estava em ascensão após o assassinato de Martin Luther King, em abril do ano anterior. Pelo visto, em 2019, 50 anos depois da morte do ativista e da denúncia do reverendo, os níveis de pessoas decentes no mundo nunca estiveram tão baixos.
No Brasil, particularmente, a comoção pela morte brutal de pessoas negras é cada vez mais rasa. Em especial pelo esforço social de minimizar e relativizar o racismo estrutural. Quando a violência envolve uma empresa ou grupo capitalista, acontece um outro fenômeno de afastamento da discussão sobre racismo. É a “chamada gestão de crise”.
As assessorias de comunicação do mundo corporativo criam estratégia para preservação da imagem dos seus clientes em situações adversas. A relação com a imprensa e com a sociedade são tarefas-chaves na gestão de crise. Um exemplo é o caso do jovem Pedro Gonzaga, de 19 anos, assassinado por estrangulamento por um segurança, no dia 14 de fevereiro, dentro de um supermercado na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro (RJ), diante de sua mãe, que gritava que o filho estava sendo morto.
“A nota da assessoria de imprensa é uma receita de bolo. A a gestão de crise também tem sua receita, mas analisamos aspectos peculiares sobre cada crise. O assassinato do Pedro é um caso de gestão de crise dentro da assessoria de comunicação. A resposta da empresa condiz com isso. É desumana, mas é essa a linha”, disse Thais Bernardes, assessora de imprensa há seis anos e que já trabalhou para políticos e shoppings centers.
A nota do grupo supermercadista onde Pedro Gonzaga foi morto, divulgada para a imprensa, tinha quatro parágrafos. Um deles com apenas duas frases. No comunicado, a empresa diz que não aceita excessos, violência e repudia o racismo. Conclui dizendo que se solidariza com os familiares neste ‘momento de dor e tristeza’.
“A função da assessoria, assim como a de um advogado, é proteger o seu cliente. Então parte-se do princípio que sempre será a versão do cliente. Mesmo que a empresa concorde com a desumanidade do caso, ela nunca vai poder admitir isso porque estaria admitindo a culpa. O padrão então é sempre ‘lamentar e se colocar à disposição’. Foi assim, em Mariana e Brumadinho [territórios devastados após o rompimento de barragens de empresas de mineração], por exemplo, é um padrão de gestão de crise. Como é que eu minimizo o impacto na imagem do meu cliente?”, disse Thaís, que também é idealizadora do portal Notícia Preta.
O setor de supermercados no Brasil apresentou um crescimento “chinês” nos últimos anos com faturamento acima de R$ 350 bilhões. Em 2017, o setor cresceu 4,3% sobre o ano anterior. Já em 2016, quando o faturamento foi de R$ 338 bilhões, o crescimento sobre 2015 foi de 7,1%. Os dados do lucro de 2018 devem ser divulgados em março ou abril, mas o setor deve abocanhar o equivalente a 5,5% do PIB (Produto Interno Bruto).
Mesmo sob a ameaça de boicote da comunidade negra, que representa 54% da população brasileira, e, por consequência representa uma parcela significativa dos clientes dos supermercados, a associação do setor também se apoia nas estratégias de gestão de crise para comentar o racismo estrutural nas redes de supermercados. A nota da associação tem duas frases. “ A (***) repudia qualquer ato de violência e racismo dentro e fora das lojas. Estamos acompanhando o caso atentamente, e aguardando o resultado das investigações”, é a íntegra do comunicado.
Segundo o jurista e filósofo Silvio Almeida, doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo São Francisco, o racismo estrutural está presente, como agente normalizador, em três dimensões: na economia, na política e na subjetividade.
“O racismo é uma forma de racionalidade. É uma fórmula de normalização, de compreensão das relações. O racismo não só constitui as ações conscientes, mas constitui também aquela porção que a gente chama de inconsciente. São esses três pontos [economia, política e subjetividade] em que eu tenho o constrangimento, os indivíduos são constrangidos e que faz parte da própria dinâmica em que eles vivem cotidianamente”, disse.
Em 2018, Silvio Almeida lançou o livro ‘O que é racismo estrutural”, pela editora Letramento, dentro da série ‘feminismo plurais’. “O racismo é estrutural e estruturante das relações sociais e das relações dos sujeitos porque não há entre as pessoas, mesmo aquelas que não aceitam este tipo de violência, qualquer tipo de ação efetiva para se voltar contra isso, ou seja, nós, de alguma maneira naturalizamos a violência contra pessoas negras. A sociedade naturaliza a violência contra pessoas negras”, afirma.