Às vésperas da celebração do cinquentenário da sua Independência, Moçambique vive um ambiente crescente de tensão política sem precedentes na sua jovem história como nação, provocado pela divulgação dos resultados eleições gerais de 9 de outubro. Altamente contestado pela oposição e por diversos setores da sociedade, o pleito deu vitória ao partido Frelimo, que governa o país desde a independência de Portugal, conquistada no ano de 1975.
Na base da contestação, estão inúmeras denúncias dos mais variados tipos de irregularidades a favor do partido no poder que, alegadamente, instrumentalizaria as instituições do estado envolvidas no processo eleitoral para a sua manutenção no poder. Na verdade, este tipo de contestação não constitui novidade, uma vez que, desde 1994, quando foram realizadas as primeiras eleições livres e multipartidárias, sempre houve este tipo de alegação, inclusive corroborada por estudos e relatórios públicos.
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A diferença é que, desta vez, a percepção alargada de fraude eleitoral gerou uma grande onda de manifestações populares como nunca se viu no país, respondidas com forte repressão estatal marcadas por graves violações dos direitos humanos.
Duas semanas após a votação, em 24 de outubro, os órgãos eleitorais deram a vitória a Daniel Chapo, candidato do partido Frelimo, com 70,67% dos votos, contra 20,32% para Venâncio Mondlane, o principal candidato de oposição, apoiado pelo partido Podemos, recentemente criado. Para além da prévia desconfiança generalizada quanto aos resultados anunciados, um episódio trágico ocorrido dias antes gerou grande sentimento de indignação popular: o assassinato brutal de Elvino Dias e Paulo Guambe, dois destacados ativistas do partido Podemos.
Foi sob este pano de fundo de indignação popular que Mondlane – através da sua liderança carismática e de popularidade crescente – convocou os seus seguidores e a sociedade em geral a manifestarem-se pelas ruas do país exigindo a “reposição da verdade eleitoral”.
Manifestações e repressão policial desproporcional
Como estratégia, tais manifestações decorreram em diferentes fases que incluíam paralisação da atividade econômica, do movimento de portos e fronteiras, e sobretudo marchas, buzinaços, panelaços e interrupção do trânsito nas principais avenidas dos grandes centros urbanos.
Se por um lado, tais manifestações notabilizaram-se por uma boa adesão de grande parte da população em todo o território nacional, igualmente notória foi a repressão policial desproporcional, que procurou dispersá-las com uso indiscriminado de gás lacrimogênio, balas de borracha e balas reais, deixando um saldo de cerca de cinquenta mortes e centenas de feridos graves.
Como justificativa, as autoridades de segurança, bem como membros do partido no poder, classificaram as manifestações como formas de “vandalismo” e “terrorismo”, ignorando os vários episódios de abuso de poder e violação de direitos humanos registrados. Tais reações contribuíram para o aumento da percepção popular de instrumentalização das instituições do Estado a favor da Frelimo, acabando por agravar ainda mais a crise política vivida no país.
Para além da questão estritamente eleitoral, a compreensão deste fenômeno social e do seu caráter de novidade exige uma maior contextualização da história recente de Moçambique, reveladora de desafios extensivos a outros países do continente, que passam por crises idênticas. Como dito antes, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) governa o país desde 1975, tendo consolidado a sua hegemonia fundamentalmente sob o argumento de ter liderado o processo de luta e vitória contra o colonialismo português.
Desde então, assumiu-se como o legítimo representante e força dirigente do “povo moçambicano”, alicerçado pelo regime de partido único de inspiração marxista-leninista, aliado ao bloco socialista no âmbito da Guerra Fria. Entretanto, em meados da década de 1980, a grave crise econômica em que o país se encontrava ditou a sua adesão às políticas de reajustamento estrutural impostas pelo Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, que exigiam a abertura para a economia de mercado como contrapartida. Foi neste contexto que, no ano de 1989, no seu V Congresso, o partido abandonou oficialmente a ideologia socialista, na esteira do desmantelamento do bloco socialista a nível global, com a Queda do Muro de Berlim.
Do ponto de vista político-institucional, o fim do regime de partido único deu-se como pré-requisito dos Acordos de Paz de Roma, em 1992, que puseram fim a dezesseis anos de uma guerra interna de desestabilização do regime. Além da realização de eleições multipartidárias, a despartidarização do Estado era um dos principais pilares da proposta de reconstrução pacífica do país. Entretanto, este último aspecto nunca foi efetivamente cumprido na sua integralidade, constituindo-se como uma das causas estruturais de diversas problemáticas da vida pública em Moçambique, como por exemplo, um obstáculo crônico à realização de eleições verdadeiramente livres, justas e transparentes.
Efetivamente, desde as primeiras eleições gerais de 1994 aos dias de hoje, todos os pleitos em sido marcados por níveis crescentes de desconfiança quanto à sua credibilidade, com o passar do tempo.
Como agravante, a sociedade moçambicana tem vivenciado uma grave piora das suas condições de vida, especialmente nos últimos dez anos, durante os dois mandatos do atual presidente, Filipe Nyusi. De acordo com dados divulgados recentemente pelo próprio governo, os índices de pobreza aumentaram em 87%, atingindo cerca de 65% da população, em 2022.
Para se ter uma dimensão global, basta referir que, segundo a classificação das Nações Unidas, Moçambique ocupa o 181º lugar (entre 189 países), na escala do Índice do Desenvolvimento Humano (IDH). Somado a esses dados por si só preocupantes, há ainda um fator complicador de ordem demográfica: cerca de 80% da população tem menos de 35 anos de, com metade abaixo dos 16 anos, de acordo com dados da UNFPA.
Muito além do cenário eleitoral
E é justamente esta juventude empobrecida e sem perspectivas de futuro que constitui a grande massa de manifestantes, cujas reivindicações, como podemos ver, vão para muito além da controvérsia eleitoral. Trata-se de uma geração que não foi exposta à narrativa nacionalista fundadora do país, à chamada retórica da “Luta Armada de Libertação Nacional”, que é a base do discurso ideológico disseminado pela Frelimo no processo de construção da sua legitimidade. Assim como em outras partes do mundo, trata-se de uma juventude que se conecta e se mobiliza através da Internet, particularmente das redes sociais.
Não por acaso, é o canal preferencial de comunicação do movimento de contestação liderado por Venâncio Mondlane, especialmente por via do Facebook e do YouTube, a partir de “onde” convoca e organiza as manifestações.
Diante de todo este quadro, Moçambique vive atualmente num ambiente de incerteza provocado pela falta de credibilidade não apenas dos órgãos eleitorais, mas das instituições públicas de uma maneira geral. Ainda mais caraterística deste impasse tem sido a reação do governo que, além de criminalizar as manifestações populares, tem usado o argumento da chamada “mão externa”, para sugerir que estas estejam sendo promovidas para atender interesses estrangeiros, através da desestabilização do país.
Há ainda, no debate público, quem sugira que tais manifestações corresponderiam a uma espécie de “revolução colorida”, à maneira da Primavera Árabe, no início da década de 2010. Embora tal hipótese seja plausível, não há evidências robustas da sua ocorrência, e mesmo que fosse correta, não dá conta de explicar toda a complexidade do processo e as suas causas fundamentais, que devem ser encontradas a partir de uma perspectiva local, moçambicana, africana.
É justamente nesta perspectiva que a atual crise política moçambicana reflete aspetos contemporâneos gerais no cenário político continental. Igualmente, em outros países, vive-se uma crise de legitimidade dos movimentos de libertação que, se por um lado, cumpriram a grande tarefa histórica da independência, por outro, tornaram-se forças políticas hegemônicas cada vez mais desconectadas dos anseios da sociedade, e em grande medida, dedicados apenas à sua própria reprodução e manutenção no poder. É o caso, por exemplo, do MPLA (Angola), do ANC (África do Sul), Chama Cha Mapinduzi (Tanzânia) e da ZANU-PF (Zimbábwe), para citar apenas os aliados mais próximos da Frelimo e que, não por acaso, imediatamente reconheceram a anunciada vitória eleitoral dos seus “camaradas”.
Já do ponto de vista da sociedade moçambicana propriamente, e independentemente da questão eleitoral, as manifestações dos últimos meses trouxeram um padrão de mobilização política sem precedentes na história. Pela primeira vez, a população do país ocupou o espaço público – de forma simultânea e em diversos pontos do país – para protestar não apenas contra o que se considera ser uma megafraude eleitoral, mas fundamentalmente, contra todo um regime político visto como o principal responsável pelas mazelas do país, incluindo o atual quadro de instabilidade.
Enfim, é neste ambiente de impasse e profunda incerteza que devem decorrer os próximos movimentos das partes envolvidas, em meio à articulação de estratégias de diálogo, debates públicos, manifestações populares e, possivelmente, mais episódios de violência. Seja como for, é consenso que, diante destes acontecimentos, o país nunca mais será o mesmo. Na melhor das hipóteses, estamos perante uma janela de oportunidade capaz de produzir – quem sabe? – um novo pacto social, como foram anteriormente a própria independência, em 1975, e os Acordos de Paz de Roma, em 1992.
Em tempo: neste momento, Mondlane encontra-se fora do território nacional, alegadamente por razões de segurança. Embora anunciados em 24 de outubro, os resultados eleitorais ainda carecem de validação por parte do Conselho Constitucional, prevista para meados de Dezembro. Enquanto isso, o ambiente de tensão e incerteza tende a crescer no país.