São algumas as nossas inquietações enquanto jovens negros e negras estudantes de Direito, a começar pelo choque e o conflito de nos enxergar em um espaço que diariamente nos empurra para fora: as colunas gregas, a escadaria imponente, os andares repletos de retratos de antepassados da elite sulista do país, de origem escravocrata. Os colegas, brancos. Os professores, também. As paredes gritam que não pertencemos ali. E de fato, diante do que somos ensinados sobre a forma com que o Direito tem sido construído e sustentado, nós sequer insistimos em pertencer. Ao contrário, multiplicadas as nossas insatisfações, queremos enfrentar.
Para tanto, temos nos organizado, compartilhado, estudado, buscado nos aprofundar naquilo que o pensamento ocidentalizado forçosamente tenta apagar: o conhecimento dos nossos ancestrais. Fugindo das matrizes curriculares majoritariamente referenciadas por e pelas suas raízes brancas e masculinas, encontramos refúgio na epistemologia negra, não só no sentido academicista, de acesso e leitura de teorias em torno da pauta racial, mas principiologicamente, valorizando a oralidade e a circularidade de um saber coletivo. E, com isso, temos encontrado cada vez mais aliados e aliadas, que, nos espaços que ocupam, e dos quais são igualmente defenestrados, também querem enfrentar a estrutura racista.
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No âmbito do Direito, questionamo-nos se há caminhos disponíveis para tanto. Na verdade, as pessoas negras detêm todas as razões do mundo para não enxergar nesse mecanismo a figura da justiça. Por meio dele, somos alcançados apenas pelas mãos da polícia, e, como bem sabemos, elas vêm para atirar. As regras do jogo jurídico só valem em nosso desfavor. Estamos em um país onde a democracia só existe para o branco, restando historicamente para o preto a lei única do extermínio. E tudo isso sob os olhos da Constituição Federal, de caráter social, perante a qual todos são supostamente iguais, onde o racismo é crime. Crime de racismo… no fim das contas, nós sabemos a quem serve a política criminal e qual raça no Brasil é representada entre as pessoas privadas de liberdade e da vida.
É importante apontar que estamos cientes de que boa parte de nós, negras e negros ingressantes no ensino público superior, alcançamos esse espaço por meio do Direito, ou melhor, das políticas afirmativas introjetadas nele. Medidas estas que foram implementadas depois de muita luta ancestral, e que não podem deixar de ser observadas quando se trata de pensar o Direito, não porque fazem dele uma estrutura igualitária, mas porque tensionam e demonstram que, estrategicamente, estamos diante de uma ferramenta de articulação e denúncia. A defesa das cotas raciais para acesso ao ensino superior e a cargos de serviço público, por exemplo, segue urgente, mesmo diante da vigência de legislações sobre o tema e da notória eficácia da política – afinal, não é segredo que a nossa presença é incômoda.
A partir dessas reflexões, deparamo-nos com a pesquisa realizada pelo Grupo de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União, em parceria com a Comissão de Direitos Humanos e da Cidadania da Assembleia Legislativa do Paraná, de fevereiro de 2021, intitulada “Relatório sobre o tratamento dos Crimes Raciais no Estado do Paraná”, que investiga desde o acolhimento da vítima, passando pelo registro e alcançando o processamento dos casos referentes a discriminação racial. Com ela, constatamos que, mesmo diante da tipificação do crime de injúria racial, do advento da Lei Caó, nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e da Constituição Federal, que constitui a prática de racismo como crime inafiançável e imprescritível, não há lei que nos proteja.
Somente no período de três anos, de 2016 a 2019, foram registradas 5330 ocorrências de crimes raciais no Estado do Paraná, mas apenas 334 ações criminais encontram-se em trâmite e somente 16 culminaram na condenação do autor do delito. Em números percentuais, significa que 0,3% das ocorrências de crimes raciais registradas resultaram em condenação. Em relação ao atendimento à vítima, o relatório demonstra o total desinteresse e descaso institucional na tratativa de crimes raciais, sob o lema de que somos todos iguais. O desestímulo por parte das autoridades competentes, somado à elevada desinformação da população negra sobre seus direitos – ocasionada pela falta de atenção do estado na divulgação de redes de apoio – sustenta e projeta a estrutura racista com facilidade.
Para nós, residentes do estado sulista e viventes da realidade da população negra paranaense, os resultados alcançados já eram esperados. É fato, e os dados bem evidenciam, que o Direito não quer nos proteger, muito menos no Paraná, território que celebra a presença de imigrantes europeus na mesma medida em que apaga as populações negras e indígenas da sua identidade histórica.
Além disso, estamos falando diretamente dos crimes raciais, de ofensa a nível individual – ao menos é o que sugere a legislação, ainda que cada vez que uma pessoa negra é violentada, todas as demais se sintam igualmente atacadas. Estamos diante da crua operabilidade do privilégio branco. A pessoa negra precisa ser escoltada por seguranças toda vez que vai às compras, sofre abordagens policiais em toda esquina por ter seu comportamento sempre lido como suspeito (em Curitiba/PR, no último mês, o vereador Renato Freitas foi preso à luz do dia por ouvir música em praça pública, e quando perguntou a razão ao policial, obteve um sonoro “não sei” como resposta). A branca, por sua vez, nem gritando seu ódio contra a população negra será levada a uma delegacia, e essa pesquisa bem registra isso.
Ocorre que, como nos propusemos a abordar, a reflexão sobre o Direito não se limita ao âmbito individual. Trata-se de uma estrutura racista que beneficia a população branca, pois para ela foi consolidada. Olhando no todo, ele reforça em todas as áreas suas garras de dominação: no direito tributário, nós somos os que proporcionalmente pagamos mais impostos no país; no direito civil, função social da propriedade é mito, e nós somos maioria da população em situação de rua; no direito de família, nossas religiões de matriz africana tem sido execradas em favor da tradicional família branca brasileira; no direito ambiental, nossos territórios quilombolas tem sido violados e negados. A lista continua.
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Nesse contexto, torna-se irrelevante perguntar se pode o Direito proteger a nós, negras e negros, na medida em que estamos diante de uma estrutura que não objetiva nos contemplar, mas nos oprimir. A questão passa a ser onde estamos e onde queremos chegar. Partindo da compreensão sobre o que o Direito significa para nós, traçamos um movimento disruptivo em forma de constrangimento aos privilégios da branquitude e à estrutura que os sustenta. É sobre a nossa presença nesses espaços, aos quais não pertencemos, mas ocupamos e enfrentamos, tal como fizeram nossos ancestrais. É sobre um caminho de coletivo auto-cuidado, acolhimento e união da negritude nesses lugares. Se não pode o Direito nos proteger, aquilombaremo-nos para defender e lutar por outros espaços. Nas palavras de Emicida, Tudo que nóis tem é nóis.
O R.A.P. – Resistência Ativa Preta, grupo de produção de conhecimento negro da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, foi criado em 2019 a partir das inquietudes de estudantes negros e negras, sequiosos por justiça. Desde sua origem, o grupo se pauta no enfrentamento ao racismo dentro e fora da academia, consolidando pontes entre a juventude negra que compõe a Universidade Pública e os movimentos sociais de todo o Brasil. Atualmente, está na linha de frente das demandas dos e das estudantes pela implementação de cotas raciais nos cursos de pós-graduação da UFPR, além de promover encontros quinzenais para estudos voltados à teoria crítica racial.