Considerado por muitos o “dia da abolição da escravatura”, para nós, povos de Umbanda, o 13 de maio é, sobretudo, uma data de denúncia e resistência. É o lembrete doloroso de que a abolição não passou de uma invenção formal, jamais efetivada em sua plenitude. Uma promessa feita sobre as costas já marcadas do povo negro, que continuou enfrentando opressões estruturais, sociais e religiosas até os dias atuais.
Nas religiões afro-brasileiras, especialmente na Umbanda, o 13 de maio carrega a tradição da celebração dos Pretos e Pretas Velhos. Entidades da mais profunda marca da ancestralidade negra dos terreiros, personificam a sabedoria, a memória e a resistência de quem sobreviveu à diáspora forçada e à escravização. Carregam o tempo, não como simples cronologia, mas como caminho de fortalecimento coletivo, curando, ensinando e reconectando o povo de terreiro às raízes de um território-mãe ainda presente em cantos, rezas, folhas e fundamentos.
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Mas não se engane: a afroespiritualidade dos ancestrais da Umbanda não nasceu nos tumbeiros, nem nas senzalas. Pretos e Pretas Velhas têm história muito antes da colonização. Em vida foram sábios, curandeiros, líderes e guardiões de suas comunidades. Detinham o saber sobre as plantas, os ciclos da terra, os rituais e as relações comunitárias. Sua importância reside na capacidade de preservar e transmitir, de geração em geração, a memória coletiva e os saberes ancestrais. São eles que sustentaram e continuam sustentando a vida e a dignidade de seus povos, mesmo em meio à diáspora e ao contínuo projeto de apagamento colonial.
Em virtude de tais potências, Pretos e Pretas Velhas se tornam alvo de uma das expressões mais insidiosas do racismo: o racismo religioso. Enquanto entidades negras por excelência, passaram a ser objeto de um processo sistemático de desracialização, tanto no interior da Umbanda quanto em sua percepção externa. Não são raras as tentativas de reduzir sua identidade ao discurso de que se tratam de “espíritos evoluídos que transcenderam a cor”, ou ainda os questionamentos sobre a necessidade de manifestarem-se com traços fenotípicos negros.
Soma-se a isso a construção de fantasias que restringem os Pretos Velhos a figuras meramente escravizadas, que teriam superado a tortura e a opressão exclusivamente pelo amor, trazendo consigo apenas o estigma da humildade. Ou, ainda, a narrativa perversa da suposta democracia racial, que romantiza a capacidade dessas entidades de conviverem “naturalmente” com o racismo, ignorando a violência estrutural e a profundidade de sua resistência histórica. Tais discursos desconsideram, de forma reducionista e colonial, que a negritude não se limita a uma condição epidérmica, mas constitui uma construção histórica, cultural e política indissociável da trajetória dessas entidades e de seus povos.
Tais narrativas estão longe de ser despretensiosas ou neutras. Representam a face simbólica e política do apagamento racial. Ao se tentar tornar o Preto Velho uma entidade “neutra”, “sem cor”, despolitiza-se a Umbanda, desarticula-se sua função como espiritualidade negra de resistência e rompe-se a conexão da entidade espiritual com a memória coletiva da diáspora africana no Brasil. Neutralizar o Preto Velho é, conscientemente ou não, perpetuar o projeto colonial que busca embranquecer e silenciar corpos e culturas negras.
No entanto, os Pretos e Pretas Velhas seguem. Seguem riscando pontos, acendendo velas, orientando na gira e benzendo os mais diversos corpos que adentram o terreiro. São mais do que guias espirituais: são testemunhas vivas de que, apesar de séculos de violência colonial e institucional, as tradições, os saberes e a espiritualidade negra não foram vencidos, embora permaneçam sob frequentes ameaças no campo da raça e da religiosidade.
Cada palavra sussurrada no terreiro, cada ponto cantado, cada ensinamento que brota dessas entidades reafirma que a cultura do povo negro não foi e não será apagada. Eles nos ensinam que o tempo é também território de resistência. Como senhores e senhoras da memória, nos conduzem pela arte de resistir sendo, resistir vivendo, resistir ensinando e cuidando.
Por isso, para nós, o 13 de maio não é (e nunca foi) o dia da liberdade. É o dia da lembrança amarga de uma abolição inacabada. Mas também é, sobretudo, o dia da reafirmação de que os tambores quentes ainda tocam, os pontos ainda são cantados e de que a força da comunidade ancestral negra permanece viva nos terreiros de Umbanda.
Viva as almas!
Saravá os Pretos e Pretas Velhas!