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Juiz cita Sueli Carneiro e Kabengele Munanga ao condenar segurança por racismo

Segurança que atuava no supermercado Assaí quando o caso aconteceu vai cumprir pena alternativa, com trabalho social em ONGS que abordam o racismo

Texto: Pedro Borges | Edição: Nataly Simões | Fotos: Iara Venanzi e Pedro Sena

Imagem mostra Sueli Carneiro e Kabengele Munanga.

Foto: Fotos: Iara Venanzi e Pedro Sena

25 de agosto de 2023

O juiz Guilherme Lamas condenou à pena de um ano, em regime aberto, o segurança Denner Cirineu do supermercado Assaí por crime de racismo contra Luiz Carlos da Silva, de 58 anos. Na sentença, emitida no dia 17 de agosto, o magistrado citou uma série de intelectuais negros, como Sueli Carneiro, Kabenguele Munanga, entre outros.

Luiz Carlos foi abordado pelos seguranças Denner Cirineu e João Venancio Neto durante uma ida a uma unidade do Assaí, em Limeira, interior de São Paulo, localizada na Praça José Bonifácio. O cliente foi colocado em um canto separado no mercado, sob suspeita de ter furtado algum produto, e constrangido com a ação se despiu e ficou apenas de cueca, para provar que não havia cometido qualquer delito. Testemunhas do fato sinalizaram que viram pessoas se aglomerarem em volta de um “homem seminu” e que ouviram Luiz Carlos gritar que “não era ladrão”. O caso ocorreu em 6 de agosto de 2021, por volta das 18h.

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O magistrado sinalizou para os problemas de medidas com potencial de cercear a liberdade das pessoas e os danos para a sociedade de maneira geral, e condenou Denner Cirineu a um ano de serviço comunitário em associação com trabalho na luta antirracista, ao invés de condenar o segurança com 1 ano de reclusão e pagamento de multa. João Venancio, funcionário contratado de uma empresa terceirizada de segurança, a Comando G8, não foi localizado pela justiça. A empresa foi procurada pela equipe de reportagem e não emitiu comunicado até a publicação deste texto.

Em um trecho da decisão, Guilherme Lamas cita o livro “Dispositivo de Racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser”, de autoria da filósofa Sueli Carneiro. O juiz destacou durante a decisão o trecho “a sustentação do ideário racista depende de sua capacidade de naturalizar a sua concepção sobre o Outro. É imprescindível que esse Outro dominado, vencido, expresse em sua condição concreta aquilo que o ideário racista lhe atribui. É preciso que as palavras e as coisas, a forma e o conteúdo, coincidam para que a ideia possa ser naturalizada. A profecia autorrealizadora – que confirma as expectativas negativas em relação aos negros – é imprescindível para a justificação da desigualdade”.

O professor Kabengele Munanga também é referenciado pelo juiz na sentença. Guilherme Lamas destaca a obra “Negritude: Usos e sentidos”, para rebater o argumento utilizado pela defesa dos réus de que foram oferecidos “cursos” de formação e “treinamento sobre os procedimentos e cuidados com as pessoas” para os funcionários da empresa. No texto, o magistrado afirma que “cabe lembrar que Kabengele Munanga destaca as peculiaridades do racismo no Brasil, entre as quais o silêncio, o não dito, que confunde todos os brasileiros e brasileiras, vítimas e não vítimas [do racismo]”.

Diante da situação de discriminação sofrida por Luiz Carlos da Silva, o juiz reconhece a seletividade racial existente no Brasil e os privilégios colocados para pessoas brancas. “A grande complexidade deste feito reside justamente neste ponto: este signatário, Juiz branco, jamais seria abordado, trajando seu terno e gravata, em um estabelecimento comercial e muito menos seria obrigado a ficar apenas em seus trajes íntimos para provar que não estava furtando”.

Acusação

Luiz Carlos da Silva afirmou, diante do juízo, que já presenciou em outras situações pessoas serem abordadas pelos seguranças do mercado, e que em nenhuma das oportunidades tratava-se de uma pessoa branca. Guilherme Lamas entendeu essa informação como importante, e rebateu os argumentos utilizados pelo Ministério Público, que tentou qualificar a situação como “isolada” e sem conexão com a “política da empresa”. O magistrado, inclusive, sinaliza para o entendimento de que havia uma necessidade de se aprofundar as investigações, para “se o caso, houvesse eventual inclusão de superiores hierárquicos na denúncia”.

O caso envolveu outra particularidade, que foi o fato de Denner Cirineu se autodeclarar como uma pessoa negra, com familiares negros, e incapaz de cometer crime de racismo. O juiz rebateu com uma explicação sobre o mito da democracia racial e sinalizou texto de Dodô Azevedo, publicado na Folha de S. Paulo, em que o autor sinaliza para a impossibilidade de negros serem racistas, mas terem a possibilidade de reproduzirem discursos racistas.

Guilherme Lamas ainda destacou que, se o segurança reproduziu determinada ação, as práticas racistas estão no meio onde vive, inclusive no estabelecimento comercial em que trabalhava.

Denner Cirineu foi desligado da empresa por não cumprir as orientações colocadas pela companhia. O juiz, para determinar a sentença alternativa e a não reclusão do funcionário, também levou em consideração o fato de Cirineu ser responsabilizado de maneira isolada, sem nenhum outro funcionário superior da empresa, ou mesmo o colega de trabalho.

“Atribuir apenas ao réu o racismo, isentando os superiores hierárquicos e partindo do pressuposto de que agiram contra as orientações da empregadora não retroalimentaria o próprio racismo estrutural do sistema criminal, condenando, sozinho, por fato de repercussão nacional, apenas alguém se identifica como “uma pessoa preta, com todos os familiares pretos”?”. Diante disso, ele sinalizou que “talvez seja o caso de buscar alternativas”.

Outro lado

Em nota enviada à Alma Preta, o supermercado Assaí afirmou que “o ocorrido motivou o desligamento do ex-colaborador, ainda em 2021, e, desde então, reforçamos nossas ações por meio de treinamentos e guias orientativos. Mantemos o aprimoramento e as ações de conscientização para temas como racismo estrutural, vieses inconscientes e letramento racial, capacitando as pessoas que trabalham no contato com clientes sobre protocolos de atendimento ao público e comunicação não violenta”.

A rede de supermercados ainda afirmou que “no contrato com todas as empresas prestadoras de serviço em segurança também foi reforçada a nossa posição de não tolerância quanto atitudes discriminatórias, com cláusulas prevendo multa e rescisão contratual em caso de não-cumprimento”.

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  • Pedro Borges

    Pedro Borges é cofundador, editor-chefe da Alma Preta. Formado pela UNESP, Pedro Borges compôs a equipe do Profissão Repórter e é co-autor do livro "AI-5 50 ANOS - Ainda não terminou de acabar", vencedor do Prêmio Jabuti em 2020 na categoria Artes.

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