Pesquisar
Close this search box.

Cordialle, antiga Vector, empresa responsável por agredir Beto, se autopromove como antirracista

Vector, atual Cordialle, era a contratante dos seguranças que espancaram Beto Freitas até a morte; Defensoria Pública afirma que pediu esclarecimentos para a empresa
Imagem mostra Beto, um homem negro de pele clara e que usa um boné azul. Ele foi agredido até a morte por seguranças da Cordialle, antiga Vector.

Foto: Foto: Acervo Pessoal

14 de agosto de 2023

Por: Gil Luiz Mendes e Pedro Borges

A Cordialle, antiga Vector, empresa de segurança envolvida na morte de João Alberto Freitas, participou, no dia 21 de junho, do Fórum de Prevenção de Perdas 2023 da Abrappe (Associação Brasileira de Prevenção de Perdas) e fez o uso do seu pouco tempo para contar das práticas antirracistas adotadas pela empresa. Na programação oficial, estava previsto que a empresa teria apenas entre as 17h30 e 17h32 para falar.

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

Leandro Santos, diretor de diversidade e inclusão da Cordialle, só pegou o microfone para falar em nome da companhia às 21h40, no final, em meio a um coquetel oferecido pela organizadora do evento para apresentar os patrocinadores ao público do evento. “Nós trabalhamos com a imersão do processo do funcionário, qualificando a abordagem, tornando o processo impessoal e motivando a defesa do patrimônio, assim como também a defesa do abordado”, declarou durante sua fala que durou 42 segundos.

O público, contudo, não sabe que as campanhas fazem parte do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado pela antiga Vector, atual Cordialle, com a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, em 4 de novembro de 2021. A Cordialle não cita João Alberto Freitas em nenhum dos materiais, em nenhum posicionamento da empresa, ou mesmo o TAC.

No Termo de Ajustamento de Conduta firmado com a Defensoria Pública, a Vector, atual Cordialle, se comprometeu a construir campanhas contra o racismo e organizar palestras em encontros da área de segurança privada para tratar do assunto, sem utilizar isso como campanha de marketing.

“Em nenhuma hipótese poderá a COMPROMISSÁRIA pessoa jurídica apresentar, durante o período de fala aqui referido, qualquer dado, informação, projeto, proposta ou propaganda próprios de sua empresa, não sendo admitida qualquer espécie de autopromoção direta ou indireta do seu nome, seus produtos, desempenho e/ou atividades, devendo limitar-se a enfatizar a necessidade e a importância de se combater o racismo estrutural e a discriminação em todas as suas modalidades”, diz o texto.

Em folders, vídeos institucionais e podcasts internos, a empresa mostra o antirracismo como estratégia para angariar novos clientes. Durante os episódios do podcast chamado Conexão Cordialle, gravados em novembro de 2022, o diretor executivo Fábio Lino afirmou que durante a feira da Abrappe, associação de prevenção de perdas, contatos com clientes foram feitos por conta da campanha.

“Colocamos, então, um banner constando essa questão aí do combate ao racismo estrutural. E o cliente então passou, um cliente de uma grande marca, passou e falou assim: ‘nossa, eu já tive problema com isso em nossa empresa’. E então marcamos uma reunião, fechamos com o cliente, vamos implantar um posto, diga-se de passagem, nível Brasil, a partir do dia primeiro de novembro, graças a Deus”, contou empolgado.

A Cordialle nega qualquer autopromoção e afirma que toda “narrativa” foi feita em “prol da causa no combate ao racismo estrutural”. A empresa ainda afirma que “não há dispositivo no TAC que estabeleça narrativas de fatos ocorridos anteriormente ou dados de envolvidos. Com efeito, não há que se falar em descumprimento do TAC sob o fundamento de autopromoção”.

A companhia também nega que tenha se utilizado de apenas um minuto de fala durante o encontro da Abrappe e reafirma o compromisso de cumprimento do acordo. “Destacamos que nossa empresa permanece a disposição e comprometida com seu papel social no emprego de medidas no combate do racismo estrutural, diversidade de gênero e causas de proteção animal”.

Em nota sobre a possível autopromoção da Cordialle, a Defensoria Pública afirmou entender “que seria pertinente e adequado que a empresa fosse previamente oficiada para que preste informações sobre os conteúdos citados na pergunta e, após isso, em sendo o caso, sejam adotadas eventuais providências, caso necessário. Neste norte, a Defensoria Pública informa que oficiará à empresa para que preste os devidos esclarecimentos”. De acordo com apuração da equipe de reportagem, a Defensoria já pediu esclarecimentos para a Cordialle.

A Defensoria Pública do Rio Grande do Sul tem acompanhado, junto à Educafro e ao Centro Santo Dias de Direitos Humanos, a implementação do TAC. A Defensoria apresentou para a Alma Preta um documento com a implementação do que foi acordado no TAC, sem qualquer questionamento sobre possível autopromoção da Cordialle ou Vector. De acordo com o órgão, a empresa de segurança tem respeitado os períodos de reciclagem com intervalo máximo de seis meses para dialogar sobre racismo e direitos humanos com os funcionários da companhia.

A rotina de autopromoção

Poucas semanas antes do evento da Abrappe, a Cordialle participou da Exposec, Feira Internacional de Segurança, realizada na zona sul de São Paulo. No espaço reservado para aproximadamente 70 pessoas, apenas 19 ocupam as cadeiras que estavam disponibilizadas em um dos espaços de palestra e, destas, apenas cinco eram negras, incluindo o palestrante daquele encontro. Passava das 18h do dia 13 de junho de 2023, uma segunda-feira gelada e chuvosa, quando Leandro Santos se apresentou à plateia como diretor de diversidade e inclusão do Grupo Cordialle.

Em seu stand no evento, a Cordialle se colocou como uma companhia preocupada com a diversidade, com uma consultoria antirracista e o desejo de mudar o mercado da segurança no Brasil.

“Nós temos um termo chamado impessoalidade da segurança, onde o Grupo Cordialle vem trazendo isso para os seus agentes, que é tornar um processo impessoal, isso seja para segurança privada ou pública. Tornar impessoal o processo é fazer com que o procedimento esteja estabelecido e não somente uma ação, seja ela fundada por uma suspeita subjetiva do agente”, afirma Leandro dos Santos.

As participações no evento da Associação de Prevenção de Perdas (Abrappe) e na Feira Internacional de Segurança (EXPOSEC) fazem parte do TAC. O acordo exige a participação de uma pessoa negra, de indicação da Defensoria, ou da Educafro, ou do Centro Santo Dias de Direitos Humanos, e a Cordialle deve abordar o tema da segurança privada e do racismo, sem se autopromover.

O documento também determina que estas participações em eventos seja acompanhada por algum membro do comitê formado pela Defensoria, ou da Educafro, ou do Centro Santo Dias de Direitos Humanos. Durante o encontro da EXPOSEC, Leandro dos Santos dividiu a fala com a defensora pública de São Paulo, Vanessa Vieira, que representou o órgão público do Rio Grande do Sul. Na Abrappe, apenas Leandro dos Santos falou e o momento não teve nenhum tipo de fiscalização pelos signatários do TAC.

O trato também exige a exibição ininterrupta de vídeos de combates ao racismo em monitores em seu stand. Nos dois eventos em que o Alma Preta esteve esses requisitos não foram cumpridos.

A Educafro e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos, organizações da sociedade civil que assinam o TAC, demonstraram desejo de questionar a Cordialle sobre as campanhas de marketing da companhia.

“O fato é que ela não pode realizar atos definidos no acordo e apresentá-los como sendo uma atividade de responsabilidade social da empresa. Fomos muito claros ao exigir que essa limitação constasse do acordo. Vamos questionar a Cordialle no processo acerca dessa conduta”, afirmou a Educafro.

O Centro Santo Dias de Direitos Humanos afirmou não ter conhecimento das campanhas de marketing da Cordialle e explica que os materiais não foram submetidos para aprovação da entidade. “Checando no TAC a exigência se dá para material utilizado nos eventos obrigatórios, no entanto existem obrigações que deveriam já ter sido implementadas que ajudariam nesta compreensão de que tudo se dá em função do TAC e do episódio da morte de João Alberto. A empresa será instada a deixar isto bem claro”.

Empresa se apresenta como antirracista

Nas redes sociais da Cordialle, há uma publicação fixa, com um vídeo de uma atriz negra que apresenta a empresa. Ela afirma que a Cordialle “atua pela vida” e com “empatia pelo próximo”, e que a empresa adotou mudanças para enfrentar o “racismo estrutural” e reafirmar o compromisso por uma cidade “diversa”.

O valor de R$ 1.792 milhão fechado pela TAC, com ações de acolhimento de famílias negras, com recursos para creches e pessoas na graduação, são anunciados sem qualquer referência ao Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com a Defensoria Pública. Não há também qualquer menção ao nome de João Alberto Freitas.

Em um dos folders da empresa, na capa há uma mulher negra e o recado “Conscientização e combate ao racismo estrutural”, com o logo da companhia. Na parte interna do folder, existem explicações sobre a diferença entre racismo e injúria racial, o que fazer quando for vítima de racismo, como identificar o racismo e o que fazer quando presenciar um ato.

Há, inclusive, trecho de um discurso do Nelson Mandela, com o recado de que “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se poder aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”. Novamente, nenhuma memória a João Alberto Freitas.

A companhia tem sinalizado as mudanças como grandes inovações da empresa no mercado, caso da consultoria de diversidade para palestras e alteração organizacional da Cordialle. “É a primeira empresa que está contratando uma empresa especialista em diversidade, inclusão social, trazendo pra dentro de casa”, ressalta Aldecir Geusemin, sócio e diretor executivo da empresa, durante o Conexão Cordialle.

A empresa contratada para prestar consultoria foi a Griot, gerenciada por Leandro dos Santos. Durante entrevista ao Conexão Cordialle, Leandro dos Santos contou estar no mercado da segurança privada há 20 anos, com projetos de segurança para Infraero e para a área de condomínios. Ele chegou a ter experiências com estudos sobre inclusão racial e na capacitação de pessoas para entrar no mercado.

“A Cordialle inclusive é pioneira, porque eu conheço todas as outras empresas, e ninguém trata [o racismo} na raiz. Criam um selo, mas e aí? E aqueles 15 mil funcionários lá embaixo? O desafio é muito grande. A gente não pode pensar que é só uma palestra ou só um encontro que vai resolver. Como o desafio é grande, nós criamos o departamento para realmente tratarmos o tema na alma”, enfatizou Leandro Santos em entrevista logo após a sua palestra na Exposec.

Leandro diz que viu a Cordialle como uma oportunidade de negócios e a partir do serviço prestado, outros foram alcançados. “Pensando nisso, eu falei, bom a Cordialle é uma empresa que de repente a gente pode fazer um trabalho mais específico, abriu também um campo importante para que a gente fizesse modelos de trabalho de negócios e de repente ele virou uma oportunidade que hoje tá atingindo outras empresas. Dela vieram outros clientes, varejo, hospitais”.

O podcast Conexão Cordialle

A Cordialle lançou dois episódios do podcast Conexão Cordialle, uma estratégia utilizada para anunciar todas as ações feitas pela companhia. Nos dois episódios participam o apresentador Jorge Lordello e os diretores executivos Fábio Lino e Aldecir Geusemin.

Geusemin, que se apresenta como Gaúcho, afirma que o podcast serve para mostrar que “as empresas de segurança não são todas iguais”. Ele diz que existe um cuidado para a contratação dos profissionais por parte da empresa. “Além da gente fazer uma seleção bem-feita, a gente tem um acompanhamento”.

Os profissionais contratados pela Vector e responsáveis pelo espancamento de João Alberto Freitas não eram regularizados. Um deles, Giovane da Silva, era policial militar e trabalhava pela primeira vez como segurança do Carrefour naquele dia, 19 de novembro de 2020, para cumprir a lacuna de outro vigia, e Magno Borges, um funcionário com Carteira Nacional de Vigilante (CNV), mas sem um registro oficial para Polícia Federal de que prestava tal serviço para a Vector.

Geusemin ainda descreve a Cordialle como uma empresa modelo, diferente das demais, que prejudicam a imagem das empresas de segurança. “Se você pega uma empresa que quer fazer diferente que nem a gente, aí você pega uma empresa que tá se prostituindo no mercado, não tem como você concorrer. Não existe mágica”.

O segundo episódio foi apresentado no dia 18 de novembro de 2022 e teve como tema a Consciência Negra. Para o episódio foi convidado o Leandro dos Santos, da Griot Consultoria, que trabalha com diversidade dentro do mercado empresarial e oferece serviços para a Cordialle.

“O grupo Cordialle é pioneiro nesse setor em relação a segurança porque ele entendeu essa melhoria no mercado e essa demanda que por sinal é maioria esmagadora necessita desse trabalho então a gente tem uma continuidade de processo onde de forma muito viva a gente acompanha os gestores e colaboradores no dia a dia pra realmente transmitir a questão de impessoalidade na segurança”, diz Leandro a respeito do trabalho da Cordialle.

Em nenhum momento do episódio, que aborda violência na área de segurança privada, há uma recordação do caso de Beto Freitas. O ouvinte, desavisado, acha que se trata de uma empresa que entendeu a importância de se combater o racismo a partir da boa vontade, e não da obrigação legal de um acordo.

Leia Mais

Destaques

AudioVisual

Podcast

Cotidiano