Mães de crianças com deficiência intelectual e transtorno do espectro autista denunciaram para a Alma Preta violações de direitos na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Professor Argeu Silveira Bueno, localizada em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Os relatos envolvem, por exemplo, falta de profissionais de apoio escolar suficiente para atender os alunos e o uso de fraldas inadequadas.
Claudia Santos denunciou pela primeira vez a escola em março por ter colocado uma fralda geriátrica em seu filho de seis anos, que tem Síndrome de Down e é uma criança não-verbal. Segundo a mãe, o filho já é uma criança desfraldada e precisa de acompanhamento para fazer as necessidades fisiológicas.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Ela conta que a situação ocorreu por falta de Auxiliar de Desenvolvimento de Educação Básica (ABED) disponível para atender as crianças com deficiência na escola.
Outra situação também teria ocorrido entre abril e maio, quando Claudia procurou a escola para questionar o motivo do filho ter chegado em casa sem um dente, com o rosto arranhado e com a boca e língua cortadas.
De acordo com a mãe, a escola alegou que a criança se machucou por causa de uma queda. Claudia também diz ter sido hostilizada pela diretoria da escola por questionar os ferimentos do filho e a falta de profissionais de apoio escolar.
“Eles são crianças capazes mas para isso precisam de apoio, de ajuda, e é uma coisa que nem todo mundo tem e quando a gente vai questionar por que ele está vindo sangrando, machucado, cortado, riscado, a gente ainda está ‘pedindo muito’ e não estamos. Só pedimos o básico, é um direito”, relata.
Segundo Claudia, tudo o que aconteceu foi reportado de forma presencial e/ou por e-mail para a Secretaria Municipal de Educação de Carapicuíba, para a Ouvidoria de Carapicuíba e ao Conselho Tutelar de Carapicuíba, no entanto nenhuma providência foi tomada até o momento.
“As pessoas acham que inclusão é só matricular na escola e colocar do jeito que dá pra colocar. Se tiver alguém pra cuidar, tem, se não tiver, fica do jeito que está, mas não é isso que eu busco. O que eu busco é realmente aquilo que está na lei, no caso, garantido para ele [o filho]”, pontua.
‘Caso isolado’
A ativista Alyne Gonçalvez, integrante do instituto “Mães de Luta”, acompanhou o caso do filho de Claudia pelo Instituto InvisibiliDOWN e fez uma denúncia junto à Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), que cobrou explicações da Secretaria Municipal de Educação.
Segundo Alyne, a secretaria respondeu que se tratava de um caso isolado. “Eles falaram que Carapicuíba era um exemplo de inclusão e que era um episódio isolado, mas nós recebemos relatos de outras mães, inclusive com fotos, na mesma situação”, afirma a ativista.
À reportagem, a Comissão da OAB-SP informou que a Secretaria Municipal de Educação afirmou que os funcionários da escola negaram a situação exposta por Claudia. Para a Comissão, a pasta também disse que a criança “não tinha laudo médico solicitando um assistente terapêutico individualizado, mas que a escola fornecia este profissional para ele e outras crianças em conjunto, mas não de forma exclusiva”.
Ainda de acordo com Alyne, Cláudia passou a ser hostilizada depois da denúncia. “A postura da escola foi colocar cinco funcionários dizendo que Cláudia era uma mãe problema, que qualquer escola que seu filho pudesse estudar todos já iriam identificar quem era ele e Cláudia, sendo assim, insinuando que Cláudia continuaria nesse lugar insalubre, de ninguém dar atenção para a criança”, detalha.
Sobre o uso da fralda geriátrica, a Prefeitura de Carapicuíba disse que tomou ciência da denúncia após uma matéria publicada no G1 e que a Secretaria da Educação não tinha sido procurada anteriormente. Ainda de acordo com a administração municipal, foi solicitada abertura de Procedimento Administrativo para apurar os fatos.
A prefeitura afirmou ainda que em março a Secretaria Municipal de Educação entrou em contato com Cláudia por telefone “tendo colocado a sua disposição toda estrutura municipal para auxílio” e que, de acordo com os profissionais que atuam com a criança, uma fralda pequena foi encontrada na mochila do aluno “motivo pelo qual a escola a fim de oferecer melhor conforto ao aluno, colocou a fralda maior, mas que em nenhum momento teria sido amarrada no corpo do aluno”.
A gestão municipal também alegou que os profissionais da educação municipal recebem, anualmente, cursos de capacitação sobre inclusão dos alunos com deficiência e que o município realizou a troca de sala do aluno que “passará a ser atendido por outros profissionais, a psicóloga da unidade escolar também está a disposição para atendimento inicial e eventuais encaminhamentos que se façam necessários”.
Falta de Auxiliares de Desenvolvimento de Educação Básica
Eronildes Ferreira, mãe de outra criança aluna da mesma escola, conta que no ano passado sua filha de sete anos chegou em casa com a roupa íntima suja de fezes. Segundo a mãe, a situação ocorreu mais de uma vez e a criança também não contava com acompanhamento pedagógico, chegando a ficar 17 dias sem nenhuma atividade escolar.
Segundo essa mãe, a escola alegou falta de Auxiliares de Desenvolvimento de Educação Básica (ADEBs). “Um dia, eu cheguei de repente para ver o que minha filha estava fazendo e ela estava ‘largada’ na sala sem fazer nada. Como eles alegam para mim que não tem ADEB sendo que ela estava na salinha das ADEBs sem fazer nada?”, questiona.
Eronildes relata que chegou a acompanhar a filha durante um mês em sala de aula, mas teve que se ausentar por causa do trabalho. A mãe denuncia que não há auxiliares suficientes para as crianças com deficiência matriculadas na instituição de ensino e que a ausência de profissionais gera impactos no desenvolvimento pedagógico dos alunos.
“Minha filha é capaz de ser alfabetizada, mas precisa realmente de uma auxiliar na sala para ajudar. São muitas crianças para uma professora só”, desabafa.
As ocorrências também foram registradas por e-mail para a Secretaria Municipal de Educação em outubro de 2022. Após pedidos, a pasta teria enviado mais três auxiliares para a escola, que ficou com um total de cinco profissionais de apoio escolar. No entanto, Eronildes diz que o número de profissionais ainda não é proporcional à quantidade de crianças com deficiência matriculadas na escola.
À Alma Preta, a Prefeitura de Carapicuíba disse que a EMEF Professor Argeu Silveira Bueno possui no período da manhã sete profissionais de apoio e mais três extras e, no período da tarde, nove profissionais. Ao todo, a escola atende 40 alunos.
Ainda de acordo com os relatos das mães ouvidas pela reportagem, um dos motivos para a superlotação de crianças com deficiência nas escolas municipais seria a falta de auxiliares na rede estadual de ensino em Carapicuíba.
A Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (Seduc-SP), por sua vez, afirmou que alunos elegíveis para a educação inclusiva possuem vaga garantida nas redes de ensino do Estado e recebem suporte de profissionais para atender as assistências de locomoção, higiene, alimentação e demais demandas identificadas na avaliação inicial.
A pasta também alegou que conta com Atendimento Educacional Especializado no contraturno e que “oferece todos os serviços e apoios determinados pela Política de Educação Especial do Estado de São Paulo”.
Em setembro, o Governo do Estado de São Paulo publicou uma resolução voltada para a prevenção à evasão e busca ativa de alunos da rede estadual de ensino, acionada obrigatoriamente a partir de três faltas consecutivas não justificadas.
“A resolução estabelece o acompanhamento individualizado, com a atualização cadastral bimestral dos alunos, o acompanhamento diário da frequência pela unidade escolar e Diretoria de Ensino, o contato e a notificação dos pais ou responsáveis”, cita um trecho da nota.
Os direitos da criança com deficiência
A Lei Brasileira de Inclusão, sancionada em 2015, visa assegurar e promover condições de igualdade, direitos e liberdades fundamentais para as pessoas com deficiência com o objetivo de promover inclusão social e cidadania.
Segundo o capítulo IV, que trata sobre o direito à educação, o poder público deve assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar medidas de inclusão, como a oferta de profissionais de apoio escolar.
No entanto, o que se observa é que muitas vezes os pais/mães/responsáveis cumprem o papel de “cuidadores” dentro da escola, conforme analisa a ativista Luciana Viegas, comunicadora no perfil “Uma mãe Preta Autista Falando” e fundadora do movimento Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI).
“O Estado tem uma certa relutância de lidar com a educação inclusiva porque falta investimento nessa política pública, falta contratação de profissionais. As empresas são terceirizadas e aí a gente tem também uma precarização desse cuidado”, destaca.
A Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB-SP destaca que o apoio no ambiente escolar deve ser fornecido para qualquer criança com deficiência “independente do grau ou do pedido médico, visto que as neurodiversas possuem, dentro de sua singularidade, necessidades em todos os aspectos da vida, inclusive no âmbito escolar para que possam receber uma educação de qualidade.”
Em abril de 2018, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa aprovou no Senado um Projeto de Lei que determina que o profissional de apoio escolar atenda o máximo de três alunos com deficiência na instituição de ensino “a fim de auxiliar na superação de barreiras e no atendimento de suas necessidades pessoais e pedagógicas, e de profissionais ou serviços de promoção da inclusão em caráter geral”.
O texto aprovado também menciona que o estudante ou a família poderão contratar um profissional de apoio escolar de sua própria escolha com a responsabilidade integral pela remuneração, sem qualquer tipo de encargo para a instituição de ensino, que terá a responsabilidade de articular o trabalho desse profissional ao projeto político-pedagógico da escola.
Professor individual para criança com deficiência?
Luciana explica que o motivo do profissional não ser exclusivo para cada criança se dá por contrariar as diretrizes da inclusão escolar, uma vez que exclui a criança com deficiência do processo de participação com outros alunos que também estão em processo de aprendizagem. Para ela, por outro lado, a falta de investimento público nesta área demonstra uma escolha política.
“A falta de entendimento sobre o direito da própria criança com deficiência e essa ausência do Estado tem uma escolha política. Entender isso é importante porque dentro da educação inclusiva parece que todo mundo é bonzinho, que todo mundo faz tudo com muito amor e na real não é amor, a gente está falando de direito básico”, ressalta.
Para a especialista, um dos caminhos para pressionar uma maior atenção para a pauta da inclusão nas escolas é a criação de mecanismos de denúncia, além de ações coletivas por meio de movimentos sociais. “Os pais se aliarem nessa luta na educação inclusiva e fazer pressão é fundamental, de forma coletiva, para que a gente consiga avançar dentro desse debate porque senão fica a gente defendendo a escola pública regular com norte de educação inclusiva, que não está acolhendo, e os familiares defendendo escola especializada porque acreditam que ela vai dar o melhor tratamento, mas dentro de uma lógica mercadológica”.
* A Ouvidoria e o Conselho Tutelar dos Direitos da Criança e do Adolescente de Carapicuíba também foram procurados pela reportagem, mas não se manifestaram até a publicação deste texto.