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FGV é processada e acusada de racismo por ex-funcionária

Única negra no cargo que ocupava, profissional foi contratada como gerente, especificamente para vaga dedicada à diversidade; testemunhas afirmam que a mulher era constantemente hostilizada, constrangida e desautorizada na frente de outras pessoas
Imagem mostra a placa da sede da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em Brumadinho (MG)

Foto: Reprodução/Rurian Valentino/Aedas

13 de novembro de 2023

“Eu não me sentia gerente. Eu me sentia como se fosse a empregada doméstica de todos os demais ali. Ser contratada para uma vaga destinada à diversidade racial, ser capacitada para o cargo e não conseguir exercê-lo – por conta do racismo velado das pessoas – mexeu muito com a minha cabeça”. É o que conta Luana Maira, ex-gerente de relacionamento e de campo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em Belo Horizonte (MG). 

Contratada em janeiro de 2022 para uma vaga destinada ao programa de políticas afirmativas e diversidade da FGV, a mulher negra era gerente de relacionamento (e, posteriormente, de campo) do Programa de Transferência de Renda às pessoas atingidas pelo rompimento das Barragens da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Ela era responsável por coordenar 13 supervisores, que tinham sob sua responsabilidade uma equipe de, em média, quatro agentes de cadastro.

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O trabalho da equipe de campo, que se deslocava para os locais atingidos pelo rompimento das barragens, tinha como finalidade cadastrar as pessoas que seriam beneficiárias do programa. Embora os supervisores tivessem jornada de trabalho de 12×36,  Luana tinha uma jornada de trabalho contratual de 8 horas diárias, mas que era estendida cotidianamente em razão da grande quantidade de trabalho.

“Eu ultrapassei o meu horário de trabalho de maneira recorrente até aos finais de semana, pois os outros gerentes trabalhavam em duplas, com ajuda. Eu tinha que fazer tudo sozinha, não tinha acesso às plataformas de organização e parecia que era invisível, exceto durante as reuniões, momento em que eu era extremamente constrangida”, relembra Luana. 

Uma das supervisoras, que acompanhava de perto o ritmo de trabalho do projeto em que – teoricamente – Luana deveria liderar, aponta que a vítima também era excluída dos espaços de decisão da FGV. 

“Em alguma medida não deixavam ela participar de processos seletivos. Com o passar do tempo, foram tirando ela [Luana] desse lugar de participar dos processos seletivos, dessa tomada de decisão, assim, de quem entra e de quem sai também”, diz Samara*.

“Me recordo bem que o espaço de fala era negado para Luana, inclusive, desconstruíam algumas ideias que ela tinha construído”, completa Samara.

Violações

O advogado de Luana Maira, Matheus Karl, disse para a Alma Preta que a situação de Luana piorou no decorrer dos meses, a ponto de a funcionária adoecer mentalmente. Mas não era apenas a carga horária exaustiva ou a falta de espaço nos momentos decisivos que prejudicavam sua saúde mental: constrangimentos, invisibilidade, racismo e hostilidade dos demais gerentes e coordenadores contribuiam para que ela ficasse cada vez pior. 

“O que acontecia era uma série de momentos repletos de racismo velado que, pouco a pouco, deixavam a Luana doente. Ela ocupava um cargo de liderança, mas as pessoas ao redor não forneciam nenhuma condição para que ela executasse o trabalho”, detalha.

No processo trabalhista, movido por Luana contra a Fundação Getúlio Vargas, são listadas diversas dessas violações. Um exemplo – confirmado por três testemunhas à reportagem – é que Luana era constantemente chamada atenção na frente de todos os gerentes e supervisores. Isso acontecia somente com ela, os demais possuíam um tratamento diferenciado, e quando havia alguma questão que precisava ser demandada, acontecia de forma privativa e não pública.

“Os erros das outras pessoas, dos outros gerentes, eram totalmente justificáveis. Enquanto qualquer equívoco que eu cometesse era imperdoável. Trabalhar sozinha, por tantas horas, não ser nem incluída no grupo de trabalho ou ter um parceiro e ainda ser hostilizada na frente dos outros me deixou doente. Foi quando fui afastada pelo médico pela primeira vez”, lamenta Luana.

Outro ponto destacado pelo advogado que contribuiu para o adoecimento de Luana é que frequentemente ela era desautorizada pelos coordenadores na frente dos demais gerentes e supervisores. 

“Com composição racial majoritariamente branca, a equipe de profissionais da FGV que compunham o grupo que Luana fazia parte não sabiam lidar ou sequer tinham costume de ver mulheres negras ocupando o mesmo cargo que eles. Então, ela dava uma ordem, que era automaticamente desautorizada por outras pessoas”, salienta o jurista. 

Saúde mental da vítima foi prejudicada

Devido a todas essas situações, Luana Maira foi afastada das atividades de trabalho pelo médico psiquiatra primeiramente por 15 dias, mas não antes de relatar o que estava acontecendo ao departamento de Recursos Humanos, especificamente à gerente de RH de Belo Horizonte, chamada Paula Gerbaudo. 

“Todavia, nenhuma providência foi tomada. Então, Luana enviou um e-mail para o RH de São Paulo relatando os abusos cometidos por seus coordenadores e, mais uma vez, foi completamente ignorada”, descreve o advogado Matheus Karl.

Segundo Luana, quando retornou do seu primeiro afastamento, conversou novamente com os responsáveis pelo projeto em Brumadinho. No entanto, após esta conversa, ela foi excluída das reuniões semanais às quais ocorriam os constrangimentos, sendo ignorada pelos coordenadores que não atendiam suas ligações e já não a orientavam quanto ao seu trabalho. 

“Neste momento, Luana foi incluída no canal oficial de comunicação da empresa, da qual ela não fazia parte, mas a partir daí a postura dos coordenadores mudou de forma mais hostil. Passaram a boicotar o trabalho dela diretamente com as pessoas que ela supervisionava”, diz o processo trabalhista. 

Luana Maira afirma que isso fez com que o seu trabalho não rendesse, não fosse visto, pois não conseguia exercer o seu cargo com plenitude, o que culminou em mais um agravamento de sua saúde mental.

“O pior de tudo é que mesmo eu relatando que sofria racismo, que era tratada de forma diferente, decidiram então criar um comitê antirracista, mas queriam que eu presidisse, que eu resolvesse uma coisa que eu já estava sendo vítima”, pondera a ex-gerente da Fundação Getúlio Vargas.

No dia 23 de novembro de 2022, Luana recebeu um atestado médico para afastamento por 30 dias. Após ser encaminhada para perícia no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em razão do seu quadro grave de adoecimento, foi afastada por mais 60 dias. “Eu desenvolvi uma grave depressão e crises de pânico”, relata a vítima.  

O relatório do psiquiatra que afastou Luana diz o seguinte: “Ao longo do processo foi identificado o impacto das relações no trabalho associado ao comprometimento referente à sua saúde mental, vida pessoal e produtividade no trabalho. As queixas frequentes mostram o quanto os fatores que englobam as relações hierárquicas no trabalho interferem direta e indiretamente as condições de vida da paciente”. 

No entanto, mesmo com o laudo psiquiátrico enviado à FGV, tão logo retornou de um período de 60 dias de afastamento pelo INSS, Luana Maira foi dispensada pela Fundação em 8 de fevereiro de 2023. 

“Como o motivo do afastamento previdenciário de Luana era doença profissional/do trabalho, uma vez que foi adquirida em razão dos eventos discriminatórios do qual foi vítima, era impositiva a equiparação ao acidente de trabalho, o que concedia à ela estabilidade provisória, o que não ocorreu”, destaca o advogado da ex-funcionária.

Testemunhas relatam perseguição contra Luana

A Alma Preta conversou com três pessoas que trabalharam com Luana na FGV. Uma delas, Luísa*, avalia que ser uma pessoa negra em uma posição de liderança nunca é fácil, mas que sua experiência de trabalho com Luana foi muito positiva.

“Tinha ela como uma referência. Ela possuía bastante  experiência para executar o cargo. As vezes que estivemos juntas em campo me sentia mais segura e apenas seguia suas orientações, pois ela sabia o que estava fazendo.  Sua forma de conduzir os processos e dialogar com as comunidades fazia toda diferença”, destaca. 

“Lamentavelmente, os êxitos não eram reconhecidos pelos superiores. Pelo contrário, o que percebia era uma cobrança excessiva quando alguma coisa dava errada, mesmo que não fosse sua responsabilidade ou que não fossem dadas as condições suficientes para desempenhar o trabalho”, completa. 

Luísa conta que a situação era bastante incômoda e ver tudo aquilo acontecer passou a ser muito constrangedor, inclusive para ela, que também é uma mulher negra

“As reuniões coletivas passaram a me trazer sempre muita ansiedade. Sei que não tínhamos o mesmo trabalho e portanto não poderia ser cobrado da mesma forma, porém o trato comigo era evidentemente diferente”, descreve.

A também ex-funcionária da FGV conta que chegou a reportar a situação aos coordenadores, aos quais Luana já havia se queixado, mas não obteve resposta. 

“Relatei como me sentia ao ver esse tratamento visivelmente diferenciado, como isso me gerava uma sensação ruim de injustiça e de ansiedade, mas a alegação era de que não havia nada de errado e sempre havia um argumento para justificar o tipo de tratamento dado a ela”, relembra. 

Outra testemunha, Cláudia*, acredita que há um despreparo de toda a instituição para lidar com pessoas negras em cargos de liderança. Para ela, o caso da Luana não reflete apenas o posicionamento racista de pessoas isoladas, e sim, institucional.

“Houve reuniões que todos os gerentes foram apresentados para nós, supervisores, menos a Luana. Ela não era citada ou ouvida. Quando ocorria algum erro, mesmo que não fosse a partir da Luana, pelas costas dela diziam que ela era a culpada. Eles se incomodavam com a Luana, havia claramente uma perseguição contra ela”, relembra Cláudia.

‘Não basta reservar vagas para pessoas negras, é necessário ser antirracista’

De acordo com a psicóloga clínica Jamilly Almeida Alves, especializada em Psicologia do Trabalho,  quando uma pessoa adoece devido às atividades laborais é fundamental buscar a raiz deste problema dentro da instituição. Para ela, mesmo que o adoecimento mental seja causado por exaustão, é imprescindível investigar se há, por exemplo, microagressões racistas.

“Uma pessoa negra adoece. Será que ela não era submetida a mais estresse do que funcionários brancos? Será que ela não era obrigada a fazer mais, o que resulta em seu cansaço extremo? São muitas camadas que precisam ser observadas, pois hoje em dia há muita política de diversidade, mas ainda pouco preparo das instituições para lidar com pessoas que já estão tão expostas socialmente”, avalia a profissional de saúde.

“Não basta reservar vagas para pessoas negras, é necessário ter um posicionamento antirracista em toda organização. Se isso não ocorrer, o risco de adoecimento mental, causado pelo racismo velado principalmente, é muito grande”, completa. 

A reportagem procurou a Fundação Getúlio Vargas para se posicionar sobre o processo movido por Luana Maira. O Departamento Jurídico da FGV respondeu que as alegações da ex-funcionária “não condizem com a realidade” e disse repudiar discriminações.

“Prezada Senhora, a questão está sub judice, não cabendo a FGV qualquer comentário extra autos, já que demonstrará, no foro próprio, que as alegações da autora não condizem com a realidade e buscará as reparações cabíveis em relação às mesmas. A Fundação Getúlio Vargas sempre primou pelo tratamento igualitário de seus empregados e repudia qualquer tipo de discriminação.”

*Samara, Luísa e Claúdia são nomes fictícios. As testemunhas entrevistadas para essa reportagem optaram por não se identificarem por medo de represálias.

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  • Caroline Nunes

    Jornalista, pós-graduada em Linguística, com MBA em Comunicação e Marketing. Candomblecista, membro da diretoria de ONG que protege mulheres caiçaras, escreve sobre violência de gênero, religiões de matriz africana e comportamento.

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