Mais de 20 comunidades quilombolas e ribeirinhas dos municípios do Acará e do Bujaru, localizados no nordeste do Pará, se organizam contra a proposta de instalação de aterros sanitários na região, conhecida como Baixo Acará. Existem projetos de construção de três infraestruturas para receber 1,5 mil toneladas de rejeitos de cidades da Região Metropolitana de Belém, em áreas limítrofes às comunidades, com riscos de prejuízos ao modo de vida tradicional e contaminação de rios e matas.
Nos dias 30 de novembro e 1º de dezembro, lideranças das mais de 20 comunidades, além da Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Quilombolas Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), se reuniram junto a equipes da Defensoria Pública do Estado do Pará, Ministério Público, Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), secretarias municipais de Turismo e Meio Ambiente do Acará e a Universidade Federal do Pará para debater o tema.
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A Alma Preta Jornalismo acompanhou o encontro, que ocorreu na sede da Associação de Moradores Agricultores Remanescentes de Quilombo Menino Jesus, localizada às margens da rodovia PA-483, no município do Acará.
Na oportunidade, técnicos da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade informaram que o Estado do Pará analisa pedidos para a construção de três aterros sanitários, sendo dois da empresa Terraplena e um da Revita, que já adquiriram fazendas na região. Em nota à reportagem, a secretaria confirmou que os pedidos de licenciamento para instalação dos aterros estão em análise.
Dentre esses, um dos terrenos está situado próximo ao km 17 da rodovia, no município de Bujaru, na fronteira com o Acará, às margens do Rio Guamá. O outro, no km 32 da PA-483, em Acará, fica à beira de nascentes que desaguam nos rios Guamá e Acará. Os dois terrenos foram visitados pela comitiva. A localização onde é pleiteado o terceiro aterro não foi confirmada.
Mediada pela Defensoria Pública, a reunião teve como objetivo constatar os impactos já gerados pelos empreendimentos que as empresas pretendem instalar na região.
“Nossa preocupação é que as comunidades já se encontram em área de impacto socioambiental e que os empreendimentos estão sendo licenciados sem considerar os impactos sinérgicos e cumulativos. Depois dessa inspeção, a defensoria espera que todos os licenciamentos municipais e estaduais sejam considerados em sua totalidade e medidas sejam adotadas pelos órgãos ambientais, sem a necessidade de ação judicial”, afirma a defensora pública agrária, Andréia Barreto.
Empreendimentos ameaçam ecossistema local
As lideranças comunitárias se posicionam totalmente contra às propostas de instalação dos aterros sanitários. O agricultor Getúlio Jales, morador da comunidade ribeirinha São Brás, da Vila do Taperaçu, situada às margens do Rio Guamá, que faz fronteira com um dos terrenos pleiteados para o aterro. A comunidade subsiste a partir da produção do açaí, comercializado para toda a Grande Belém. Segundo ele, os impactos da chegada do empreendimento vão da econonimia local até os riscos à saúde dos moradores, com prejuízos a todo o ecossistema local.
“São vários impactos. O primeiro é o econômico, porque o nosso açaí vai ficar mal visto e conhecido como o ‘açaí que vem do lixão’. Depois tem a questão da saúde e ambiental, porque os gases emitidos pelos aterros prejudicam os seres humanos, os animais e a própria produção. Além da questão do nosso modo de vida, porque a gente vive do rio. O Rio Guamá serve inclusive como fonte de água para banhar, lavar roupa e consumo, porque não temos água encanada na comunidade”, explica o líder comunitário.
De acordo com o morador, a área próxima ao rio, prevista para o empreendimento, ainda é berço de diversas espécies de peixes populares na região. “Nessa área existem vários berçários de peixes, que vêm do Rio Guamá e sobem os igarapés e braços de rio para desovar. Esses peixes também servem de alimento para a comunidade. Por tudo isso, a comunidade é 100% contrária à instalação desses aterros sanitários”, protesta Getúlio, que também é um dos coordenadores do movimento “Fora Lixão”.
Comunidades tradicionais não são consultadas sobre empreendimentos
Presidente da Associação Quilombola Menino Jesus, Fábio Coelho destaca que estudos desenvolvidos pela própria empresa Revita mostram que a área pleiteada em Bujaru abrange pelo menos cinco nascentes de rios, mantidas intactas até então, que podem ser destruídas pela obra.
O quilombola denuncia, ainda, a falta de transparência e de consulta às comunidades, prevista pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) como condição para a construção de empreendimentos nas proximidades de territórios tradicionais.
“Procuramos proteger o nosso povo pelas legislações que amparam as comunidades, como a Convenção 169, que garante a escuta das comunidades antes de qualquer empreendimento ser instalado. Estamos tratando junto aos órgãos públicos, a exemplo da Defensoria, Ministério Público e entes do Estado, a fim de assegurar nossos direitos até mesmo para garantir a nossa sobrevivência”, diz Coelho.
Membro da coordenação-executiva de articulação da Malungu, Hilário Moraes, que atua no georreferenciamento das comunidades, também chama atenção para a necessidade da consulta prévia, livre e informada aos quilombolas e ribeirinhos.
“Nem as empresas, nem o governo, ninguém teve o cuidado de consultar as comunidades que estão no entorno das áreas onde serão construídos os aterros. A nossa preocupação é, sobretudo, por causa da forma atropelada como estão conduzindo os processos”, detalha.
O defensor público agrário Rodrigo Miranda classifica o projeto de instalação de aterros sanitários na região sem consulta às comunidades diretamente afetadas como uma “aberração”.
“Pelo caráter técnico eu já digo que esse projeto é uma aberração. Um dos primeiros processos que deveriam ser adotados pelos entes interessados é conversar com a comunidade, tentar encontrar uma alternativa junto aos povos. Mas se você nem começou aquilo que é o preliminar, como é que você já está chegando para o final?”, questiona.
Titulação fortalece mobilização contra proposta
Em 20 de novembro deste ano, Dia da Consciência Negra, 15 comunidades quilombolas de todo o Pará receberam a titulação dos territórios. Na região do Acará, apenas o quilombo Jabaquara foi titulado. A presidente da associação de moradores do Jabaquara, Vera Oliveira, diz que a titulação fortalece a luta contra os riscos decorrentes da possível instalação dos aterros sanitários.
“Para a comunidade Jabaquara foi um grande ganho que nós tivemos com a titulação, justamente por causa da ameaça desses aterros sanitários. A nossa comunidade é centenária, foi aqui que eu me criei, assim como meus pais e avós, e a gente corre risco se essa proposta se concretizar. Dessa forma, a titulação é uma garantia, mais uma ‘arma’ que a gente tem em mãos para poder lutar contra essa implantação”, defende a quilombola.
A comunidade do Jabaquara vive dos plantios de castanha do Pará, açaí e mandioca. O quilombo fica há cerca de três quilômetros de um dos terrenos pleiteados para os aterros.
“O nosso receio é principalmente quanto à saúde, porque com a proximidade dos aterros, nós ficamos vulneráveis ao odor, insetos e poluição do ar, além dos riscos de cair dejetos no rio Guamá, em área próximo ao Igarapé Jacarequara, que banha todos as comunidades da região”, ressalta Vera.
Especialistas confirmam poluição
Professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Pará, Breno Imbiriba é estudioso da temática do aterro sanitário. O especialista comandou uma pesquisa nas áreas próximas ao Aterro de Marituba, que constatou, a partir da análise do empreendimento em funcionamento na Grande Belém, com medidores e simulações, que a incidência de gases tóxicos é maior em um raio de 1,5 km do local do aterro. Segundo ele, porém, as reclamações dos moradores acerca do odor que vem da área continuam em uma distância total de 5 km.
O professor fez uma análise do cenário da região do Acará a partir da experiência de Marituba. “Aqui, as comunidades estão há apenas 500 metros da área pleiteada para o aterro. Com o caso de Marituba, a gente já percebe que, no raio de 1,5 km, a questão do odor e dos gases é bem forte, muito mais na direção do vento predominante, mas também em direções opostas. Em um raio de 500 metros, eu digo que vai haver um impacto que vai deixar os moradores desconfortáveis e com vontade de se mudar”.
“Também tem que ser visto o que vai acontecer com o chorume, que é a verdadeira fonte de poluição no aterro de Marituba. E, como aqui chove muito, isso é um problema muito sério. O que vai acontecer com esse chorume? Isso precisa ser levado em conta”, completa o especialista.
Impasse sobre o lixo no Pará continua
A aflição dos quilombolas e ribeirinhos do Acará ocorre em meio à assiduidade da discussão sobre a destinação do lixo na Região Metropolitana de Belém. Isso porque em 30 de novembro, às vésperas da data-limite para fechamento do Aterro Sanitário de Marituba, a Justiça Estadual do Pará determinou a prorrogação do funcionamento do espaço por mais 15 meses, até fevereiro de 2025. Neste período, o Estado e os municípios de Belém e Ananindeua devem elaborar e apresentar um plano conjunto de transição para a coleta de resíduos na Região Metropolitana da capital.
Por outro lado, o Aterro de Marituba é rejeitado por especialistas, em razão dos impactos que causa ao meio ambiente e à saúde da população local desde 2015. Pesquisa da UFPA aponta que os níveis de gás sulfídrico emitidos pelo empreendimento são 30 vezes maiores nos arredores do aterro. Esse gás é capaz de gerar odores e irritação nos olhos e pele.
Além disso, foram detectados dez vezes mais metano do que se encontra normalmente na atmosfera, o que demonstra uma ausência de consideração dos impactos de gases de efeito estufa no licenciamento ambiental e monitoramento do local.
A reportagem solicitou posicionamento das empresas Terraplena e da Revita, que pleiteiam os empreendimentos nas regiões onde vivem as comunidades tradicionais. Até a publicação deste texto, não houve resposta. O espaço segue aberto.