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Afinal, os negros escravizavam outros negros?

Várias problemáticas estão inseridas nesse discurso, dentre elas, a deslegitimação das estruturas de poder político e social dos povos pretos, que não se viam como iguais, mas foram classificados assim pelo colonizador

Ilustração: Dora Lia/ Alma Preta Jornalismo

Foto: Ilustração: Dora Lia/ Alma Preta Jornalismo

7 de março de 2023

Em muitas ocasiões, o senso comum e o racismo estrutural são fatores que disseminam a desinformação sobre a história afro-diaspórica. Isso ocorre principalmente quando o assunto em pauta é o período de escravização, sofrido pelo povo preto por tantos anos.

O ex-presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, em uma entrevista para o programa Roda Viva em 2018, afirmou que negros escravizavam outros negros, e essa afirmação não parte somente dele: muitas publicações que abordam a temática trazem o questionamento à tona em comentários de rodapé, feitos pelos mais diversos cidadãos brasileiros.

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Mas será mesmo que os negros escravizavam outros negros?

Na verdade, não é bem assim. Segundo o historiador Guilherme Oliveira, mestrando em História Social da África, educador, pesquisador de relações de poder nas sociedades da África Central no século XVII e membro do coletivo Historiadorxs Negrxs, afirmar que negros escravizavam outros negros carrega diversas problemáticas instrínsecas.

De acordo com o especialista, há uma desumanização das experiências africanas, o que acaba por generalizar sociedades, títulos políticos e hierarquias sociais da diversidade da África, fato que já não ocorre em um contexto eurocêntrico.

“Por exemplo: na Primeira e Segunda Guerra Mundial, a gente aprende que os alemães lutaram contra franceses e ingleses. A gente não aprende que os brancos mataram outros brancos”, salienta.

“Agora, quando nós falamos das experiências históricas africanas, a gente fica nesse discurso raso de que os negros mataram negros, os negros escravizaram outros negros. Não se fala que existiam relações de poder e disputas políticas de domínio sobre pessoas e sobre territórios”, completa.

Além disso, Guilherme avalia que o povo preto africano não se identificava como iguais na época, devido à diversidade cultural, religiosa e política dos povos. Ou seja: essas pessoas, por mais que habitassem o mesmo continente, não se enxergavam em uma mesma posição de poder.

“Existia sim uma relação de dominação entre aqueles que detinham o poder político e autoridade política e militar, e aqueles que não tinham nenhum tipo de autoridade. É uma hieraquia social que perpassa a ideia de que negros escravizavam outros negros, eram povos que tinham autoridade em exercer poder nas pessoas que estavam abaixo dessa hierarquia social”, explica o historiador.

“Então não existe negros escravizando negros, negros matando negros. São grupos político-sociais distintos, que fazem redes de dominação e poder, e se estabelecem a partir dessas hierarquias, tal qual a branquitude tanto fez”, ressalta.

A conversa se espalhou – e foi até Palmares

Segundo Guilherme Oliveira, a história de que negros escravizaram outros negros se perpetuou na sociedade a partir de um processo da diáspora, que desumanizou e criminalizou as identidades africanas no período da retirada de milhões de pessoas de suas respectivas pátrias.

“Vieram para as Américas povos de diferentes identidades, idiomas e regiões. E essas pessoas não foram mais vistas como pessoas pela diáspora: eram vistas como coisas, como peças e mercadorias. Como africanos, apenas”, enfatiza.

Mesmo com esse processo de sequestro invadindo os povos pretos de maneira violenta, vieram para o Brasil – e para outros países – pessoas de alta posição de poder, reis, líderes religiosos, etc, o que não era interessante para o colonizador saber. O resultado, portanto, foi a generalização dessas pessoas como somente coisas, o que deu margem para o senso comum dizer o que quisesse a respeito delas.

“Essa experiência acaba ao longo do tempo criando essa ideia de que os negros escravizavam outros negros, por que na África era todo mundo ‘um bando de negro, pelado, incivilizado, sem cultura’, e que passavam a vender eles mesmos. Aí vem a ideia de ‘não vamos falar de escravidão’, advinda da República, que contribui para a retirada da humanidade dessas pessoas”, contextualiza.

Guilherme pontua que essa conversa é prejudicial por três motivos principais: o primeiro é o impedimento de enxergar a história e a cultura africana e afrobrasileira com uma complexidade maior, com profundidade.

“Haviam escravizados de Serra Leoa, da Nigéria, do Benin. Mas todos são colocados apenas como os negros africanos, desconsiderando suas particularidades e complexidades aqui na diáspora”, diz.

O segundo ponto do quanto é prejudicial dizer que negros escravizavam outros negros é a deslegitimação das figuras símbólicas negras, importantes para a história afrobrasileira, como Zumbi de Palmares, acusado de subjugar seus irmãos.

“Nós temos monumentos, ruas, estátuas, e diversas coisas que exaltam as figuras brancas. Aí quando temos um representante negro com relevância, ele é invalidado por esse discurso raso”, ressalta.

O terceiro e último ponto prejudicial, destacado por Guilherme Oliveira, é a reparação histórica. Segundo ele, as pessoas brancas, conservadoras e mal intencionadas se utilizam desse discurso de que os negros escravizaram outros negros para culpabilizar os povos pretos pela escravidão.

“Logo, eles afirmam que não há legitimidade na comunidade negra para exigir cotas raciais ou qualquer outra política pública de reparação histórica. É um argumento covarde, que não tem nenhuma base histórica para tentar deslegitimar as lutas e as pautas do movimento negro”, completa.

O mestre mandou, o povo obedece

“A nossa sociedade é marcada por modelos coloniais, o que faz com que ela tenda a reproduzir e naturalizar o discurso do colonizador como o correto. Logo, dizer que negros escravizavam outros negros é uma forma de repetir o discurso do colonizador até os dias atuais”, diz o professor e historiador da Estácio São Paulo, Rodrigo Rainha.

Como exemplo disso, o docente explica que todas as falas do colonizador passam a ser enxergadas como a verdade absoluta na sociedade, seja o padrão estético de beleza, a maneira diferente que corpos negros e brancos são tratados, e os privilégios adquiridos por cada grupo social no Brasil.

“Então, quando você cria essas modelagens desse passado de naturalização da diminuição do outro à condição de objeto, a naturalização da exploração desse trabalho, criando uma posse desses corpos e trabalhando a ideia de negação dessas identidades como algo bizarro, estranho, essa autonomia só pode ser recuperada a partir de muitos movimentos identitários, que sempre existiram”, avalia Rodrigo Rainha.

Para o professor, existiam sim estratégias de dominação, que é a disputa de grupos, algo bastante diferente do que era a escravização de povos pretos. Assim, para ele, o impacto na sociedade é principalmente notado como os negros são enxergados até hoje, como as falas de “a negra que até é bonita ou o preto que até é inteligente”.

E a educação, onde fica?

O professor Rodrigo Rainha enfatiza que todas em todas as açõe sociais – o que inclui a educação – não basta não ser racista, é imperativo ser antirracista. Logo, a ideia de construir modelos de educação, em que seja possível efetivamente estabelecer que nenhum discurso racista deve ser normalizado, faz-se imediatamente necessária.

“Ainda que não exista raça como um construto biológico, ela existe sim enquanto movimento étnico de reconhecimento, e deve restabelecer uma ideia de letramento afrocentrado, rediscutir as atrocidades feitas historicamente contra as mulheres negras e como isso ainda marca a nossa sociedade”, pontua.

“Lidar com essas questões só pode funcionar de maneira viva com representatividade. Combater fortemente o racismo. Ser antirracista de maneira clara. Ter projetos e modelos nas escolas, garantir uma ampla representação docente de homens e mulheres negras, porque isso sim faz a diferença”, salienta o educador.

E essa diferença – citada por Rodrigo Rainha–, foi sentida na pele de Matheus Carvalho, estudante do 5º ano do ensino fundamental da rede pública de ensino. O estudante de 11 anos recorreu a um professor negro quando se deparou com o discurso de um outro docente, que afirmou veementemente que negros escravizaram outros negros.

“Eu estava na sala, e aí um moleque perguntou como o pessoal da África, que é tão grande, foi dominado. Aí o professor falou que isso só aconteceu por que os negros foram ‘moles’, se deixaram escravizar, e também escravizaram seus irmãos de cor. Eu fiquei muito bravo porque não foi isso que a minha mãe me ensinou e saí da sala”, comenta o jovem.

Mãe, filho e professor contra o racismo

Segundo Maria Alice Carvalho, mãe de Matheus e recepcionista, no dia em que ele ouviu de um docente que os negros escravizavam outros negros, o aluno chegou muito abalado da escola. Preocupada com o que havia acontecido, Maria chamou o filho para conversar e descobriu a desinformação que estava sendo transmitida aos alunos do 5º ano.

“Eu fiquei indignada porque eu tento ensinar consciência racial para ele, coisa que eu não tive dos meus pais. São 40 pessoas em formação em uma sala de aula, para vir um professor branco dizer que os negros foram culpados por essa violência sem par que aconteceu com o povo preto. Ele foi irresponsável demais e eu fui atrás dessa história, pois é necessário ensinar o que é certo”, desabafa a mãe de Matheus.

O jovem relata que pediu à sua mãe um dia antes dela ir até a direção da escola. O plano de Matheus era conversar com seu professor de Projeto de Vida, para entender o que foi a escravidão e por que o que o outro professor havia dito estava errado.

“O João [Almeida] é o único professor negro que eu tenho, então eu pedi pra ele me explicar por que não podemos dizer que negros escravizavam outros negros, por que eu não soube dizer pro outro professor que ele estava errado. Eu sabia que era errado, mas não consegui me expressar, entende?”, diz o garoto.

“Aí ele me explicou tudo e disse que era direito meu e da minha mãe ir até a diretora contar o que o outro professor fez. Falou que nós poderíamos contar com ele também e que essa conversa que ele falou na sala na verdade foi muito racista. Foi então que eu deixei minha mãe ir na escola”, relembra Matheus.

O fato, que ocorreu nas primeiras semanas de aulas deste ano, foi levado à direção por Maria Alice. Na conversa com a diretora, Matheus estava presente e explicou à gestora as razões pelas quais ficou ofendido com a fala do professor de história. Segundo a mãe de Matheus, no início a diretora hesitou se realmente foi um caso de racismo.

“Quando o Matheus começou a falar, ela levou na brincadeira. Mas aí ele contou tudo que o professor João explicou e ela mandou chamar ele. Ficamos os três contra ela, e ela precisou tomar providências”, conta Maria.

O professor autor do comentário racista, quando questionado pela diretora, pediu desculpas pelo ocorrido e decidiu se retirar da escola. Maria Alice disse que nas redes sociais, o docente ainda fez um post falando que agora tudo é racismo, mas que ele “pedia desculpas a quem se sentiu ofendido”.

“Eu não vou expor esse professor ou processar por que ele teve a decência de se retirar. Mas que sirva de lição para ele. O que me orgulha é saber que meu filho tem uma boa referência na escola, que é o professor João, e que ele tem buscado aprender e a questionar a história real do povo dele, nosso povo, o povo preto”, pondera a recepcionista.

Como mudar?

O historiador Guilherme Oliveira destaca que, contudo, é difícil e complexo desconstruir esse imaginário social de que negros escravizavam outros negros, mas que um caminho a longo prazo para isso é investir cada vez mais em história e cultura africana e afrobrasileira em sala de aula, para que as crianças e adolescentes possam crescer já blindadas desse senso comum.

“Cada vez mais nós precisamos de professores capacitados, materiais didáticos, que possam levar para as salas de aula as experiências reais dos povos africanos, de maneira que essa perspectiva que negros escravizaram outros negros possa ser desconstruída. A educação é a principal ferramenta para isso”, salienta o especialista.

Guilherme avalia ainda que a possibilidade de explicar historicamente o que foi a escravidão sem desligitimar figuras importantes, como foi Zumbi dos Palmares, por exemplo, é falar sobre relações de poder, organizações políticas e sociais no contexto africano.

Já o historiador Rodrigo Rainha afirma que os processos do racismo estrutural só podem ser vencidos a partir da perspectiva da consciência racial e social, e com a percepção genuína do que representa ser negro hoje e como ele era visto na época colonial e escravagista.

“Essas ideias devem estar em diálogo, para que haja perspectiva de mudança. É fundamental reforçar aspectos para mostrar que a desigualdade não pode ser normalizada. É ressifgnificar a presença do negro sem o ‘desde que’. Temos que falar de representatividade, de inclusão, direitos e possibilidades efetivas”, finaliza.

Leia também: ‘A psicologia não tem se preocupado suficientemente com o racismo’

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  • Caroline Nunes

    Jornalista, pós-graduada em Linguística, com MBA em Comunicação e Marketing. Candomblecista, membro da diretoria de ONG que protege mulheres caiçaras, escreve sobre violência de gênero, religiões de matriz africana e comportamento.

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