Pesquisar
Close this search box.

Funai quebra histórico militarista e tem sua primeira presidenta indígena em 55 anos

Joenia Wapichana prometeu atuar com autonomia e para os povos indígenas; conheça mais sobre a Funai e suas atribuições

Foto: Reprodução/Redes Sociais

5 de janeiro de 2023

Pela primeira vez desde sua criação, em 1967 – durante a Ditadura Militar –, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) será presidida por uma mulher indígena: a advogada Joenia Wapichana. Natural de Boa Vista, estado de Roraima, a mais nova presidenta da Funai acumula uma longa trajetória de defesa dos povos originários. Ela foi a primeira mulher indígena a exercer a advocacia no país e também a primeira deputada federal indígena do Brasil.

Em suas redes sociais, Joenia afirmou que “é um momento histórico para os povos indígenas do Brasil, que depois de tanta afronta, retrocesso e tendo o único órgão indigenista, totalmente sucateado, desmantelado, hoje, retoma a Funai. Uma Funai que é nossa”. A advogada ainda destacou que ao aceitar o convite do presidente Lula (PT), deixou claro que pretende atuar com autonomia, sempre ouvindo os indígenas antes de tomar decisões.

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

Outro destaque é que a Funai deixa o Ministério da Justiça e Segurança Pública e passa a compor a estrutura do inédito Ministério dos Povos Indígenas, liderado pela deputada federal Sônia Guajajara (PSOL). Na pasta recém criada, o órgão passou a ser denominado Fundação Nacional dos Povos Indígenas – antes era Fundação Nacional do Índio. A mudança foi feita por meio da Medida Provisória 1.154, publicada nesta segunda (2).

Para Paulo Tupiniquim, coordenador geral da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), a escolha de uma mulher indígena para comandar a Funai representa um avanço importante, que marca o fim de uma era militarista à frente da fundação.

“Estamos saindo da era da militarização dos órgãos responsáveis pela política indigenista e ganhando reconhecimento em um governo de fato democrático. Vale ressaltar que o cargo exige muita responsabilidade, pois temos uma diversidade de povos no país, que estão espalhados pelos quatro cantos, e todos precisam ser enxergados com igualdade e não olhar apenas uma região”, pondera.

A criação da Funai no contexto da ditadura militar

Embora projetada para superar os antigos impasses do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a Funai acabou por reproduzi-los. Sua criação foi inserida no plano mais abrangente da ditadura militar (1964-1985), que pretendia reformar a estrutura administrativa do Estado e promover a expansão político-econômica para o interior do país, sobretudo, para a região amazônica.

As políticas indigenistas foram integralmente subordinadas aos planos de defesa nacional, construção de estradas e hidrelétricas, expansão de fazendas e extração de minérios. Sua atuação foi mantida em plena afinidade com os aparelhos responsáveis por implementar essas políticas: Conselho de Segurança Nacional (CSN), Plano de Integração Nacional (PIN), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

Logo, a ação da Funai durante a ditadura foi fortemente marcada pela perspectiva assimilacionista. Por um lado, pretendia-se agregar os indígenas em torno de pontos de atração, como batalhões de fronteira, aeroportos, colônias, postos indígenas e missões religiosas. Por outro, o foco era isolá-los e afastá-los das áreas de interesse estratégico.

Para realizar este projeto, os militares aprofundaram o monopólio tutelar: centralizaram os projetos de assistência, saúde, educação, alimentação e habitação, obrigaram lideranças e indígenas para obter consentimento, e limitaram o acesso de pesquisadores, organizações de apoio e setores da Igreja às áreas indígenas.

“A Funai tem que trabalhar com a realidade indigena”

Até 1991, a Funai se manteve vinculada ao extinto Ministério do Interior, que sempre exerceu grande ingerência sobre suas ações. Os presidentes nomeados entre as décadas de 1970 e 1980 eram, em grande maioria, militares ou políticos de carreira pouco ou nada comprometidos, e até mesmo contrários aos interesses indígenas.

“A Funai seguiu o perfil militarista por um certo tempo, e deixou de seguir este perfil. Porém, na era Bolsonaro, voltou de novo a adotar o perfil militarista. Agora temos quatro anos para apagar isso da memória e da história, e trabalhar para que o órgão não venha novamente ser esse covil de militares”, salienta Paulo Tupiniquim.

Segundo o coordenador geral da APOINME, “a Funai tem que trabalhar com a realidade indigena”.

“A constituição Federal de 1988 nos libertou do regime de tutela e nos deu autonomia para atuar em diversos campos, além de nos condicionar a nos capacitar para assumir qualquer espaço, portanto, a Funai tem que assumir o seu papel de fato que é demarcar e proteger os território indígenas e não ser contra os mesmos”, pontua.

Novas demandas e expectativas

Em 2002, a ratificação pelo governo brasileiro da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre “Sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes” (1989) aprofundou a sustentação jurídica às demandas de povos antes tomados por aculturados e integrados, que atualmente reivindicam, em diversas regiões do Brasil, seus direitos indígenas diferenciados. Cada vez mais numerosas, estas reivindicações trazem novos desafios à atuação da Funai, responsável pela demarcação das Terras Indígenas no país.

Na virada do milênio, os conhecimentos indígenas e tradicionais passaram a ganhar destaque na agenda nacional e internacional. As discussões se concentraram na criação e aprimoramento de mecanismos legais que impediam que estas populações fossem expropriadas de seu rico patrimônio intelectual, produzido ao longo de gerações.

Em fins de 2009, o governo Lula anunciou, por meio de decreto presidencial (nº 7.056, 28/12), um amplo plano de reestruturação da Funai, que pretendia oferecer maior capacidade de atuação onde vivem os povos indígenas. No entanto, com o governo Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e, por fim, Bolsonaro, as ações de benefício aos povos indígenas e administração da Funai foram desmontadas.

Paulo Tupiniquim afirma que durante a gestão de Jair Bolsonaro, o diálogo a respeito das pautas indígenas era péssimo, mas que com a nova presidência da Funai sendo ocupada por Joenia Wapichana há esperança de reconstrução, apesar das dificuldades orçamentárias.

“Acreditamos em quem está à frente da Funai agora. Esperamos que as 13 terras que foram encaminhadas para equipe de transição sejam demarcadas nos próximos 100 dias de governo, e que outras terras também possam ser demarcadas no decorrer dos quatro anos, pois a demanda territorial, sobretudo, no nordeste brasileiro, ainda é gritante e tem sido motivo de vários assassinatos e criminalização de lideranças. Esperamos que o órgão possa avançar nessa política”, destaca.

O coordenador da APOINME salienta ainda que a demarcação de terras por si só também não é o suficiente para a segurança indígena no Brasil, e que e esse processo necessita de ações completas, como demarcação, homologação, registro e desintrusão.

“Não adianta demarcar e deixar a terra cheia de posseiros, tem que ser pensado também em políticas de desenvolvimento sustentável, ou seja, dar condições para que nós possamos fazer a terra produzir, aí sim vamos mostrar que não somos entraves para o desenvolvimento do país, nunca fomos, mas podemos contribuir e muito para a produção de alimentos e combater a fome, que ainda assola milhões de pessoas”, finaliza.

Leia também: “O respeito aos indígenas no Brasil sempre foi imposição de instituições internacionais”, destaca ativista’

  • Caroline Nunes

    Jornalista, pós-graduada em Linguística, com MBA em Comunicação e Marketing. Candomblecista, membro da diretoria de ONG que protege mulheres caiçaras, escreve sobre violência de gênero, religiões de matriz africana e comportamento.

Leia Mais

Destaques

AudioVisual

Podcast

Cotidiano