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Um inédito e pequeno passo para a decolonização de Belo Horizonte

Etiene Martins, jornalista, militante do movimento negro e doutoranda e mestre em Comunicação e Cultura, analisa a importância de reverenciar figuras negras em uma sociedade que nos ensina a admirar somente a branquitude. A comunicadora é idealizadora de um projeto que vai inaugurar estátuas de Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus na capital de Minas Gerais
Imagem mostra Etiene Martins, uma mulher negra e de vestido colorido.

Foto: Acervo pessoal

10 de junho de 2024

Por: Etiene Martins

Essa foto foi tirada bem em frente ao Teatro Francisco Nunes, dentro do parque municipal no centro de Belo Horizonte, o local que escolhi para ser o endereço das duas primeiras estátuas de pessoas negras da cidade. Para essa homenagem escolhi as mineiras Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus. Quem conhece essas duas mulheres sabe que essa homenagem é muito pouca para a grandiosidade de ambas, para quem não conhece é melhor correr porque tem muito o que aprender.

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Nesse processo de idealização e construção das estátuas fiquei pensando no quanto somos treinados e treinadas dia sim outro também para idolatrar, amar e admirar pessoas brancas sem distinção incluindo todas que seguem nos violentando desde o período escravocrata em que nossos ascendentes foram sequestrados e tragos à força para cá.

Esse treinamento no meu caso se deu quase que concomitante ao processo de alfabetização. Foi na escola que aprendi que meus antepassados eram escravos. Isso mesmo, a escola me ensinou que sou descendente de escravos, não de africanos. Lá também aprendi que deveria ser grata à princesa Isabel que teoricamente libertou o meu povo e só por isso sou livre. Não contextualizaram em nenhum momento o fato de que antes de nos libertar, ela e todos que pareciam com ela nos escravizaram.

Mas muito se engana quem acredita que esse treinamento se dava apenas no ambiente escolar. Também utilizavam de estratégias lúdicas no meu momento de lazer ao inserirem no meu cotidiano bonecas brancas. Ao brincar eu cuidava, oferecia carinho e atenção a uma réplica de um bebê branco, muito possivelmente um treinamento para que eu fosse uma versão moderna da mãe preta ou com que no tempo certo eu ambicionasse ter um filho ou uma filha com aqueles traços. Fazer da própria vida uma obra estilo redenção de cã. Com o passar dos anos vieram outras influências que visavam me convencer que a beleza, a inteligência, o sucesso são atributos inerentes somente aos  brancos.

Esse amor incondicional pela branquitude também visa nos convencer a negar, nos envergonhar e consequentemente rejeitar nossa negritude. Eu ainda hoje faço questão de observar a cara de desconfiança das pessoas quando eu digo que sou descendente de africanos. Olha que vivemos em um país que os descendentes de europeus encaram longos processos para conquistar suas cidadanias. Para eles, são símbolos de status serem descendentes de portugueses, espanhóis, italianos, poloneses. Eles ostentam sua ascendência europeia, mas vai a gente demonstrar orgulho de ser cria lá do continente africano. Eles encaram como uma afronta gravíssima. Nos chamam de identitários e afirmam que somos todos brasileiros e que isso é querer dividir o Brasil.  Afinal o treinamento é para que o nosso objetivo seja querer ser branco e nunca, jamais em tempo algum amar nossa negritude.

Tudo isso constrói um senso comum de inferioridade coletiva e que negros e negras que fogem a essa dita regra são exceções. Eu só consegui perceber isso quando aprendi a decolonizar o meu olhar. E entender que a branquitude nos condiciona a uma cegueira inexorável. Foi um olhar carinhoso pelo meu pai, minha mãe, avó, meus tios e tias que me deu essa compreensão. São todos lindos, inteligentes, batalhadores e portanto não condiz em nada com esse estereótipo de pessoas negras produzido e perpetuado ao longo dos anos.

Quando tive a oportunidade de sair da minha bolha familiar, tive a oportunidade de conhecer outras pessoas negras tão lindas quanto as da minha família e que exploraram outras profissões desafiando a ordem que hierarquiza as relações e nos coloca no degrau da subalternidade. Vi que querem que acreditemos erroneamente que são exceções para podar na raiz a possibilidade de acreditarmos que é possível mudar esse sistema colonial.

Quando eu penso em um projeto que decoloniza a minha cidade me parece tão ousado que me pergunto: será que é muita prepotência acreditar e trabalhar para que esse sistema mude? Mas por onde começar? O que eu posso contribuir?

Aos poucos fui me dando conta que amar a negritude é um projeto decolonial. Só podemos amar aquilo que conhecemos porque amar é verbo, é uma construção. Quanto mais eu pesquiso, estudo, me interesso pela negritude mais eu amo. Mais eu descubro referências fantásticas das mais diversas áreas.

Idealizar e propor as estátuas de Lélia e Carolina é a minha contribuição para um pequeno e inédito passo para decolonizar a cidade que eu nasci. É colocar em evidência duas intelectuais pretas fantásticas para que nossas crianças e adolescentes possam usufruir de uma cidade em que não só brancos e brancas sejam dignos de memória e homenagens como até então as estátuas presentes na capital mineira demonstram.

A inauguração das estátuas está agendada para o dia 30 de junho deste ano de 2024 e eu só consigo pensar naquela frase: “se palmares não existe mais, faremos palmares de novo”.

Etiene Martins é jornalista, militante do movimento negro. Doutoranda e mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e mestranda em relações Étnico-raciais pelo CEFET-RJ.

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