PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Um ano sem Mãe Bernadete: quilombolas mantêm vivo legado e buscam justiça

A 7ª edição do Festival de Arte e Cultura Quilombola reuniu ativistas em prol da memória de lideranças fundamentais para Pitanga dos Palmares, na Bahia
Quilombolas cobram justiça por Mãe Bernadete e seu filho Binho do Quilombo, assassinados em 2023 e 2017, respectivamente.

Foto: Gabriel Santana/Alma Preta

20 de agosto de 2024

As marcas violentas expostas nas paredes da casa de Mãe Bernadete não deixam o esquecimento tomar conta daqueles que anseiam por justiça no Quilombo Pitanga dos Palmares, território ancestral próximo ao município de Simões Filho, zona rural do estado da Bahia. Ali morava Maria Bernadete Pacífico, assassinada em 17 de agosto de 2023 por defender a preservação e a identidade cultural de seus semelhantes quilombolas. Seis anos antes, a vida de seu filho Flávio Gabriel Pacífico dos Santos também foi tirada.

A mãe e o filho continuam a ser conhecidos pela população de Pitanga dos Palmares como Mãe Bernadete e Binho do Quilombo. “Se engana quem acredita que eles estão mortos de alma. O legado deles seguirá eterno e presente no coração de todos nós”, afirma Jurandir Wellington Pacífico, filho e irmão das vítimas.

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

E foi justamente a partir da ideia de que “o legado continua” que Jurandir, em parceria com a comunidade local e a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), organizou o 7º Festival de Arte e Cultura Quilombola – Fé, Cultura e Resistência.  Este foi um ato simbólico e político em homenagem à militância e memória de duas lideranças fundamentais para a comunidade quilombola e, por isso, ocorreu no quintal e na casa pertencentes à Mãe Bernadete.

Museu Mãe Bernadete

O evento foi marcado por rodas de conversa, oficinas de artesanato e gastronomia locais, apresentações musicais e rodas de capoeira. Dentre as atividades empreendidas ao longo dos dias 16, 17 e 18 de agosto, a inauguração oficial do Museu Bernadete, no penúltimo dia, contou com a presença da ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves.

“A Mãe Bernadete tem um impacto muito forte. Ela é uma liderança nacional, não vou dizer era, porque ela continua sendo uma referência de luta pela questão dos territórios quilombolas, garantia dos territórios, e uma liderança forte enquanto mulher, defendendo os direitos das mulheres estarem nesses espaços”, afirmou.

A ministra também destacou a importância do festival para manter viva a luta que Mãe Bernadete traçou em defesa do território.

“Eu acho que o festival é um momento que, ao mesmo tempo que celebra a memória, mantém viva a esperança, a luta, a questão daquilo que é o legado dela, da não desistência, que tudo vai continuar, não vai parar. Aquilo que era a pauta dela, a reivindicação prioritária dela, que é o direito aos territórios, principalmente a esse quilombo, seguirá adiante e isso é importantíssimo”, completou.

  • Museu em homenagem à Mãe Bernadete é inaugurado no quilombo onde a liderança quilombola vivia, na Bahia. Foto: Gabriel Santana/Alma Preta
  • Museu em homenagem à Mãe Bernadete é inaugurado no quilombo onde a liderança quilombola vivia, na Bahia. Foto: Gabriel Santana/Alma Preta
  • Museu em homenagem à Mãe Bernadete é inaugurado no quilombo onde a liderança quilombola vivia, na Bahia.

Crimes sem resolução

Quando soube do assassinato de seu filho Binho, aos 36 anos, em 2017, Mãe Bernadete não mediu esforços para reivindicar à Justiça as respostas que precisava para descobrir quem seriam os executores e os mandantes do crime.

A perseverança por direitos coletivos, sobretudo pela defesa da atuação e permanência das 300 famílias que ocupam a região de Pitanga dos Palmares, estimada em 854 hectares reconhecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), fez de Mãe Bernadete um alvo a ser perseguido por diferentes grupos criminosos interessados na área por “uma série motivos”, como evidenciou o promotor Rogério Queiroz, coordenador de Direitos Humanos no Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA).

“Nós temos uma série de razões que têm deflagrado conflitos nos territórios de comunidades tradicionais: o avanço do agronegócio, de instalações eólicas e fazendas de energia solar e, consequentemente, das linhas de transmissão destas fazendas, o interesse do setor imobiliário em territórios que são valorizados pelo turismo ou até mesmo empreendimentos litorâneos e, acima de tudo, o avanço do crime organizado sob o território de comunidades quilombolas”, apontou Queiroz.

Ao longo dos dois primeiros dias do festival, Jurandir Pacífico, que também é presidente do Fórum Brasileiro de Defensoras e Defensoras de Direitos Humanos, expôs à reportagem o fato da geolocalização dos territórios quilombolas de Pitanga ser privilegiada pela riqueza de recursos naturais. Ele ressaltou que a área demarcada de maneira oficial é menor daquela que é reconhecida pela comunidade.

“É notório saber que não temos mais área para ninguém construir. Não temos mais área para explorar. E em Pitanga de Palmares a gente tem pouco mais de 5 mil hectares de área territorial. Você pode ver aqui uma floresta e uma fauna vasta. Então isso aqui é cobiçado diariamente. E minha mãe preservava esse lugar. Estamos a cinco minutos do Polo Petroquímico de Camaçari e a 20 minutos da refinaria Landulpho Alves. Esta é uma área privilegiada”, explicou.

Mesmo diante de tantos motivos, que estão conectados à questão central fundiária, na visão de Jurandir apenas identificar os executores dos assassinatos não é suficiente. Para ele, ainda resta saber quando os inquéritos da Polícia Federal irão mapear quem são os mandantes dos dois homicídios que atingiram sua família.

“O sistema quer esse território. E aí executou o Binho em 2017. Em 2023, infelizmente, perdi minha mãe. E até os dias de hoje, eu quero a verdade. Quem mandou matar Binho do Quilombo? Quem mandou matar a mãe Bernadette? Porque a família ainda não tem essa resposta”, questionou.

O quilombo Pitanga dos Palmares fica em área rual próximo à cidade de Simões Filho, na Bahia. (Gabriel Santana/Alma Preta)
O quilombo Pitanga dos Palmares fica em área rual próximo à cidade de Simões Filho, na Bahia. (Gabriel Santana/Alma Preta)

As cicatrizes continuam expostas

O sorriso de Wellington dos Santos, filho de Binho e neto mais velho de Mãe Bernadete, na roda de samba em memória à avó, na última sexta-feira (16),  exibia a felicidade de quem está, como ele mesmo diz, “passando adiante o legado defensor ao povo do quilombo”. 

Além de levar o violão nos braços nos momentos de confraternização do quilombo, ele também carrega consigo a dor da saudade, assim como as cicatrizes de quem teve dois entes próximos assassinados.

Wellington tinha 22 anos à época do tiroteio que vitimou a matriarca de sua família. Ele estava presente na ocasião, na mesma casa que sediou o Festival no último final de semana. Ele contou que os criminosos o trancaram no quarto e pediram os celulares de todos que estavam na residência.

“Quando fecharam a porta, foi o momento em que escutei os disparos. Naquela hora, pensei que iria morrer e aceitei meu destino, sem pensar em mais nada. Passado um tempo, percebi que os assassinos tinham ido embora e tomei coragem para abrir a porta. Tive medo de que algo trágico também tivesse acontecido com os mais novos (minha irmã e primo) e foi quando me deparei com uma cena lamentável, de minha avó morta no sofá da sala”, recordou.

O rapaz revelou que as marcas de bala na parede são cicatrizes que a família fez questão de não esconder. “Passado um tempo deste acontecimento terrível, a gente pintou as paredes da sala, que eram rosas, mas as marcas de bala continuam para quem quiser ver e quiser ir atrás da cena. Elas são cicatrizes de uma cena que, para nós, foi uma cena de terror”, acrescentou.

Apesar disso, as principais memórias que Wellington guarda da avó Bernadete estão ligadas aos ensinamentos valiosos que ela lhe ensinou sobre a ancestralidade, tópico explorado durante os três dias de homenagem à identidade da líder quilombola.

“O maior legado que ela deixa é o legado de ancestralidade. Acho que a ancestralidade é tão rica, tão valiosa, que eu acredito que o ser humano pode mudar vários aspectos da sua vida, mas a sua ancestralidade sempre permanecerá a mesma. É por isso que a gente tem que honrar o nome daqueles que vieram antes de nós. Quando tudo isso passar, eu vou seguir meus estudos para honrar o que meu pai e minha avó sempre fizeram: lutar por políticas públicas para esta comunidade.”

Esperançar é necessário

Para os filhos de Oxumaré, as mudanças são constantes e fazem parte da identidade natural destes seres. Por esta razão, o coração destas entidades, a exemplo do que continua sendo parte do espírito de Mãe Bernadete, tende a ser combativo e acolhedor. 

Na perspectiva da articuladora política da CONAQ Selma Dealdina Mbaye, uma das organizadoras do Festival, a luta dos quilombolas é, também, para não deixar que os assassinatos das lideranças quilombolas e suas motivações sejam esquecidos.

“Quem matou os quilombolas neste país continuam impunes com a certeza de que não irá acontecer nada. Isso não pode acontecer. Nós não vamos associar a morte de Mãe Bernadete ao tráfico, porque ela aconteceu devido à terra. O tráfico não pode levar os créditos de uma luta que ela travou quando denunciava o desmatamento, a não titulação das terras e quando ela cobrava pela morte de Binho. A CONAQ não vai aceitar essa resposta. É preciso que o sangue derramado por terra neste país seja respeitado e não vão desonrar o legado de Bernadete”, apontou.

A versão dada como oficial pela Polícia Civil do Estado da Bahia é a de que Mãe Bernadete foi morta a mando  de chefes do tráfico de drogas. Três homens presos por envolvimento no assasinato irão à júri popular. Já o suspeito de matar Binho do Quilombo foi preso pela Polícia Federal em julho de 2024, sete anos após o crime.

  • A ativista Selma Dealdina durante atividade do 7ª edição do Festival de Arte e Cultura Quilombola. (Gabriel Santana/Alma Preta)
  • Atividade da 7ª edição do Festival de Arte e Cultura Quilombola. (Gabriel Santana/Alma Preta)

Apoie jornalismo preto e livre!

O funcionamento da nossa redação e a produção de conteúdos dependem do apoio de pessoas que acreditam no nosso trabalho. Boa parte da nossa renda é da arrecadação mensal de financiamento coletivo.

Todo o dinheiro que entra é importante e nos ajuda a manter o pagamento da equipe e dos colaboradores em dia, a financiar os deslocamentos para as coberturas, a adquirir novos equipamentos e a sonhar com projetos maiores para um trabalho cada vez melhor.

O resultado final é um jornalismo preto, livre e de qualidade.

  • Gabriel Santana

    Jornalista formado pela Unesp de Bauru, apaixonado por narrativas reais que defendam interesses populares. Traduzo esta paixão através dos meus textos e tento colocar emoção em locais que passam despercebidos no cotidiano.

Leia Mais

PUBLICIDADE

Destaques

AudioVisual

Podcast

papo-preto-logo

Cotidiano