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Caso Maiorana: estrutura da Justiça do Pará foi mobilizada para privilegiar empresário, avalia advogada

Pesquisadora na área de raça, gênero e geografias carcerárias, a advogada Dina Alves avaliou o processo em entrevista à Alma Preta
Sede do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em Belém.

Foto: Marco Santos/Agência Pará

19 de setembro de 2024

O empresário paraense Giovanni Maiorana atropelou e matou duas jovens e deixou outras duas pessoas feridas, enquanto dirigia em alta velocidade, na madrugada do dia 27 de agosto de 2018, em Belém (PA).

Segundo o depoimento do sargento da Polícia Militar, Raimundo Nonato Ferreira dos Santos, que atendeu a ocorrência, Maiorana apresentava “visíveis sinais de embriaguez”. 

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Apesar de todos os indícios, Maiorana não passou nem mesmo um dia preso, nunca foi denunciado pelo Ministério Público e não foi julgado. Ao invés disso, no final de 2023, foi celebrado o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), que garantiu que o empresário não seria punido pelo crime, mediante o cumprimento de condições.

Pesquisadora na área de raça, gênero e geografias carcerárias, a advogada Dina Alves avaliou o processo em entrevista para a Alma Preta.

Para a jurista, a estrutura da justiça foi mobilizada para assegurar os privilégios de Giovanni Maiorana, figura ilustre de Belém, herdeiro de um dos principais grupos de comunicação da Região Norte, membro de uma das famílias que fazem parte da elite econômica e política local e empresário do ramo de eventos. 

A reportagem procurou o empresário Giovanni Maiorana para se manifestar sobre o caso, mas não houve resposta até a publicação deste texto. O espaço segue aberto.

Confira a entrevista completa:

Alma Preta: Diante dos indícios levantados no processo, qual a leitura que se pode fazer sobre o fato de Giovanni Maiorana não ter denúncia, não ter julgamento e com o processo que pode ser arquivado, depois que ele matou matar duas pessoas enquanto dirigia em alta velocidade e sob suspeita de embriaguez?

Dina Alves: A leitura que se faz é que, quando raramente acionados, os instrumentos legais são utilizados, não para garantir a lei, mas para produzir privilégios de acordo com a raça e a posição social dos indivíduos. 

O autor dos homicídios e das lesões corporais, de natureza grave às vítimas, foi tratado como simples “investigado” e sujeito acima de qualquer suspeita. Ele provocou a morte de duas pessoas e foi beneficiado pelo Acordo de Não-Persecução Penal, com a bênção final do procurador-geral da Justiça, Dr. Cesar Bechara Mattar, o qual determinou que o Ministério Público oferecesse este acordo. 

O MP, apesar de se pronunciar sobre a tipificação penal de crime de homicídio doloso, também manteve-se sem oferecer denúncia, sem buscar testemunhas e sem sequer insistir nas suas declarações. 

[Giovanni Maiorana] não foi preso, teve revogada a retenção da habilitação para dirigir e seus passaportes liberados. O que foi utilizado a seu favor foi a presunção da inocência: a inocência de um sujeito branco, rico com nome e sobrenome de famílias abastadas do Pará. 

Ou seja, quando pessoas brancas e privilegiadas cometem crimes, e crimes contra a vida, a demanda judicial se resolve no campo do direito negocial, em transação penal com suspensão do processo, sem pena, sem prisão, sem punição. Isso revela a justiça ineficiente, insegurança jurídica, incompetência dos operadores da justiça e racismo.

AP: Sobre a postura do juiz Heyder Tavares da Silva Ferreira, que disse, na audiência de custódia, não ter indícios de que Giovanni Maiorana estava bêbado, mesmo depois de PMs falaram em depoimento que os sinais de embriaguez eram visíveis. O juiz poderia ter considerado os depoimentos das testemunhas para converter a prisão em preventiva?

DA: Tanto os depoimentos dos policiais quanto os documentos juntados ao processo foram totalmente desconsiderados para beneficiar o autor dos homicídios, Giovanni Maiorana. 

O simples fato do exame para detectar influência de álcool ser negativo não é suficiente para formar a decisão de juízes em casos como este, sobretudo quando existem outros meios de provas, como as documentais que o MP juntou nos autos, as mídias digitais, os depoimentos de testemunhas que estavam no local e que foram vítimas de lesões corporais e de danos materiais. 

Mais uma vez estamos diante de um caso emblemático em que os benefícios penais são mobilizados em favorecimento das elites brancas e ricas, em detrimento da criminalização e punição antecipada do “suspeito padrão” [o negro], sob o argumento que a palavra dos policiais tem fé pública e nunca é desconsiderada em casos de processos criminais em que a população negra é objeto de persecução penal.

AP: O sofrimento da família das vítimas diante da falta de andamento do caso é presente ao longo de todo processo, com os advogados dos familiares das vítimas apelando para que pelo menos uma denúncia contra Giovanni Maiorana fosse apresentada. Como podemos ler a ação da justiça e do MP, enquanto as famílias esperavam por uma condenação do homem?

DA: Percebo o uso da estrutura jurídica para proteger Giovanni. Seja pela delegacia, a estrutura do Ministério Público e pela Procuradoria-Geral da Justiça. A leitura sobre esta mobilização para formação da culpa deve ser lida como a produção de um Giovanni como vítima da própria atrocidade cometida. 

Se antes os senhores de escravizados e seus familiares eram considerados vítimas das atrocidades por eles cometidas, hoje em dia a categoria vítima é também pensada a partir de uma leitura racial. Enquanto as pessoas negras são vistas como criminosas que precisam provar sua inocência, o branco é uma pessoa inocente que, quando comete um crime desta magnitude, precisa provar sua culpa. 

Aqui, os caminhos inversos sobre quem é a vítima e quem são culpados se estabelecem no abandono judicial às famílias que receberam um “cala a boca” em acordos extrajudiciais, e de outro lado um poder judiciário que garantiu a proteção e o zelo ao nome do homicida, com a devida benção do procurador-geral da Justiça. Isso é a verdadeira revitimização das pessoas que lutam para acessar à justiça.

AP: Qual a sua análise sobre o acordo que garante a extinção da pena do empresário, depois de anos do processo se arrastando sem uma denúncia ou decisão? O caso Giovanni Maiorana se enquadra nos critérios beneficiados pelo Acordo de Não Persecução Penal(ANPP)?

DA: Acordos judiciais são cabíveis em casos de crime de menor potencial ofensivo. Estamos falando de um caso com diversas vítimas, sendo duas vítimas fatais. É sabido por testemunhas e outras provas documentais que o autor estava embriagado e em alta velocidade em via pública e movimentada. Todas as provas indicam que o caso está configurado como homicídio doloso, que deveria ter sido processado e julgado pelo Tribunal do Júri. 

É preciso olharmos este caso sob a lente de como a branquitude opera e mobiliza as estruturas da justiça para promoção dos seus privilégios. A leniência jurídica mobilizada em favor de jovens, brancos, ricos, com endereço fixo e com diploma universitário não se aplica a prática forense de uma justiça antinegra que ecoa contra jovens negros perseguidos pela vigilância policial, que enfrentam maiores obstáculos de acesso à justiça criminal e que têm maiores dificuldades de usufruir o direito de ampla defesa, assegurado pela Constituição Federal de 1988. Para a justiça ser negro é um ser punível, abjeto, para o qual não há escapatória a não ser a prisão.

AP: Qual a visão geral sobre a atuação da justiça nesse caso, que envolve um grande membro da elite política e empresarial do Pará, em detrimento de duas jovens periféricas – uma mãe e grávida e outra uma mulher trans?

DA: A atuação da justiça neste caso é a própria compreensão de como a sociedade brasileira se modernizou a partir de um processo de  produção capitalista e que reproduz, ao longo da história, o imaginário racista e classista que conforma a sociedade e as instituições. 

E é essa reprodução de saberes, práticas e comportamentos que oferecem as  bases circunstanciais necessárias para que desigualdades e privilégios sejam reproduzidos, simbólica e materialmente. É olhar para a distribuição desigual de justiça  e perceber que isso é uma prática racista! 

Quem são as vítimas desse atropelamento? Pessoas da classe trabalhadora, taxistas, famílias de bairros periféricos, avós que agora vão ter que arcar com a responsabilidade de sustentar seu netinho órfão com apenas R$1,5 mil mensais, pessoas que perderam seu único instrumento de trabalho – o carro. 

A mísera pensão de R$1,5 mil atribuída a um dos filhos de uma das vítimas é valor de lanche de Giovanni. Pergunta se Giovanni sustenta o filho dele com R$ 1,5 mil? Então, esses são os dois lados desta situação estruturalmente antagônica.

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  • Fernando Assunção

    Atua como repórter no Alma Preta Jornalismo e escreve sobre meio ambiente, cultura, violações a direitos humanos e comunidades tradicionais. Já atua em redações jornalísticas há mais de três anos e integrou a comunicação de festivais como Psica, Exú e Afromap.

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