Comunidades quilombolas dos municípios de Bujaru e de Concórdia, no Pará, fizeram uma carta aberta em denúncia à destruição dos igarapés da região, que, de acordo com os relatos, vêm sendo impactados pela monocultura do dendê.
Segundo a situação exposta em carta aberta publicada, a empresa Brasil BioFuels (BBF) tem plantações de dendê e usa veneno na monocultura, o que contamina os igarapés da região e prejudica a biodiversidade da qual as comunidades dependem.
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A BBF adquiriu em novembro de 2020 a empresa Biopalma, subsidiária da mineradora Vale e que também esteve por trás da Biovale, empresa criada a partir de uma joint venture (consórcio) com a mineradora para a extração do óleo de palma de dendê, matéria-prima para a produção de biodiesel.
De acordo com a carta, independente do nome da empresa responsável pela dendeicultura da região, há muitos relatos de devastação e envenenamento nos vales dos rios Bujaru, Capim, Acará, Acará-Mirim e Moju com seus respectivos braços ou igarapés, ao longo do tempo – o que já foi denunciado várias vezes. O texto já foi assinado por associações quilombolas, fóruns, professores, pelo Movimento Negro Unificado (MNU) e trabalhadores rurais.
Peixes mortos em igarapé no município de Concórdia, no Pará | Crédito: Acervo pessoal de Aurélio
Aurélio Borges, coordenador administrativo da Malungu (Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará) ressalta que há cerca de 600 comunidades quilombolas no estado, cercadas por grandes empreendimentos e monoculturas como a do dendê, que geram conflitos e vulnerabilidades na região.
“Nessa questão do monocultivo do dendê, há a produção da tibórnia (rejeito da produção de dendê que é reutilizado em forma de fertilizante) para poder jogar na produção do dendê. Esse produto chega aos igarapés. Isso faz com que haja mortalidade de peixes e, certamente, também contaminação da água para todas comunidades, prejudicadas por estarem nos leitos desses igarapés”, explica o coordenador administrativo da Malungu.
O estado do Pará é considerado o maior produtor de dendê do país e passou a receber investimentos mais vultosos para a dendeicultura a partir dos lançamentos das iniciativas federais do Zoneamento Agroecológico do Dendê e do Programa de Produção de Palma de Óleo, em 2010, conforme relatório Expansão do Dendê na Amazônia Brasileira.
Impactos observados pelos quilombolas
Conforme informações expostas na carta aberta, a região do rio Bujaru abriga os municípios com o mesmo nome do rio (Bujaru) e Concórdia do Pará. Impactos causados no vale desses cursos d’água, de seus braços e igarapés, afetam diversas comunidades rurais, quilombolas e negras que vivem em suas margens. Exemplos disso são as comunidades de Jutaí, Galho Cravo, Arapiranga, Timboteua Cravo, comunidade do KM 35-Cravo, comunidade da Foz do Cravo, Dona, Leão da Ilha, Curuperé, Curuperézinho, São Judas e Campo Verde.
Segundo Carlos*, liderança da região atingida, os impactos sobre o meio ambiente começaram a ser notados em meados de 2008, com o início das atividades da dendeicultura na região. A empresa responsável pelo dendezal começou uma compra de territórios e desmatou terras nascentes dos igarapés, importantes para sua preservação, sem responsabilidade social com as comunidades e meio ambiente do entorno.
“Então o nosso igarapé começa a sofrer, com um impacto visível nele. No mesmo ano de 2008, a empresa está despejando toneladas de veneno dentro do dendezal e as chuvas acabam por trazer esses venenos para dentro do nosso igarapé. Os nossos remanescentes de quilombo que se utilizavam de igarapé para tudo, como tomar banho, preparar comida e se divertir, começam a sentir doenças dermatológicas constantes”, relata Carlos.
Ainda de acordo com a liderança, por conta da contaminação, as pessoas acabam sendo obrigadas a deixar de utilizar o igarapé e também perceberam que a vegetação foi cobrindo o espaço que era o curso d’água, que está secando.
“O igarapé Cravo em especial ainda não morreu, mas há inúmeros vídeos recentes de muitos peixes mortos ao longo dele, porém o igarapé Arapiranga teve a sua morte decretada este ano”, também relata a liderança.
De acordo com a carta aberta, a situação já foi denunciada novamente ao Ministério Público pela Associação dos Remanescentes de Quilombo do Cravo (ARQUIC), mas a empresa BBF nega que isso esteja acontecendo, embora os relatos das comunidades digam o oposto, com peixes morrendo e as comunidades não podendo mais usar os igarapés.
“Nós não estamos querendo colocar a empresa para fora daqui. Nós sabemos também a importância que essa empresa tem, que trouxe trabalho e tem muita gente empregada, mas a gente quer que seja respeitado as nascentes dos nosso igarapés, porque não queremos que eles morram”, relata Regina*, outra liderança da região.
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Racismo ambiental
Igarapé Cravo | Crédito: Acervo pessoal
As lideranças das comunidades quilombolas também pontuam que a morte e o envenenamento dos igarapés e rios da região atingem toda a existência de inúmeras comunidades negras rurais e tradicionais amazônicas, podendo ser considerada também uma forma de racismo ambiental.
“Muitas das vezes, em uma região como a nossa, são pouquíssimas pessoas letradas, pouquíssimas pessoas que tem conhecimento sobre direito ambiental e sobre os inúmeros direitos sociais. Por conta do nosso território ser pobre e semianalfabeto, é muito mais fácil ser acessado, ser destruído e ser comprado como ocorreu em 2007, na compra de terrenos de pessoas pobres e semianalfabetas”, comenta Carlos.
“Sem os igarapés não existe vida. Nós só vamos existir se preservarem as nascentes dos nossos igarapés, se pararem de jogar o rejeito que mata os peixes, porque se o rejeito mata os peixes, vai matar também os igarapés. Secando os igarapés, vai secar também o lençol freático”, também pontua a liderança Regina.
Posicionamento da empresa Brasil BioFuels
Em resposta ao questionamento da Alma Preta Jornalismo sobre o conteúdo denunciado na carta aberta dos quilombolas do Pará, a empresa nega que suas atividades causem o envenenamento de cursos d’água, bem como dos territórios em que vivem as comunidades da região do rio Bujaru.
Pontuam também que “ao contrário do que acusa o documento, o cultivo da palma, principal atividade da BBF, é realizado de acordo com a legislação ambiental vigente e seguindo Zoneamento do Programa de Produção Sustentável de Palma de Óleo, cujo objetivo é recuperar áreas degradadas até 2007, através de diretrizes de proteção ao meio ambiente, conservação da biodiversidade e a utilização racional dos recursos naturais, além do respeito à função social da propriedade”.
A empresa ressalta que usa somente produtos permitidos por lei e não utiliza agrotóxicos em regiões próximas às terras indígenas e quilombolas, seguindo práticas internacionais para o manejo sustentável da palma.
Além disso, a BBF explica que realiza monitoramento no entorno das áreas de atuação e nunca detectou valores de substância química em concentrações que não sejam seguras à saúde pública. nem acima do definido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Confira abaixo, o restante do posicionamento da empresa:
As atividades da BBF geram impacto positivo nas comunidades, gerando postos de trabalho, renda e desenvolvimento para a população local de forma sustentável e respeitando o meio ambiente. Atuamos na região Norte do País desde 2008, investindo em um modelo integrado: do cultivo sustentável de palma são colhidos os frutos, cujo beneficiamento dá origem ao óleo vegetal utilizado na produção de biodiesel – combustível renovável e de baixo impacto ambiental que alimenta as usinas termelétricas para geração de energia na região amazônica, substituindo combustíveis fósseis altamente poluentes como o diesel S500 por energia renovável produzida e disponibilizada pela BBF.
A empresa ressalta que sua atividade é responsável por mais de 5 mil empregos diretos no Estado do Pará, e incentiva o Projeto de Agricultura Familiar com aproximadamente 300 famílias na região.
Por fim, a BBF é uma empresa comprometida com o bem-estar das comunidades em que atua e tem grande preocupação em manter e até expandir suas áreas, para que possa continuar gerando empregos, renda e desenvolvimento para a população local de forma sustentável e respeitando o meio ambiente.
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*Carlos e Regina são nomes fictícios adotados para preservar as pessoas.