Sueli Carneiro, em “Dispositivo de Racialidade: A Construção do Outro como Não Ser como Fundamento do Ser”, oferece uma análise indispensável para compreender como a lógica de exclusão racial estrutura as relações de poder na sociedade brasileira.
Ela revela que a manutenção das desigualdades se dá por meio de um dispositivo de racialidade sustentado por um contrato racial que organiza e naturaliza a subalternização da população negra.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Esse mecanismo vai além do econômico, determinando os papéis sociais e posicionando os negros como “não-ser” para legitimar os privilégios do “ser”.
Esse dispositivo é sustentado pelo epistemicídio — a exclusão sistemática de negros da produção e reconhecimento de saberes. Ele opera por meio da negação do acesso à educação de qualidade, da deslegitimação do negro como criador de conhecimento, da imposição de uma indigência cultural e material, e da desvalorização da capacidade cognitiva da população negra.
Porém, resistir a esse processo exige resgatar as trajetórias de intelectuais negros como Abdias do Nascimento, Milton Santos, Clóvis Moura e Lélia Gonzalez, que romperam com a exclusão epistemológica e construíram saberes emancipatórios, desafiando as bases do contrato racial.
Esse legado nos leva a refletir sobre o cenário político atual, onde militantes negros e periféricos enfrentam exclusões semelhantes dentro de partidos e movimentos sociais. Apesar do discurso de inclusão, muitos partidos negligenciam o fortalecimento do trabalho de base nas periferias.
As reuniões, centralizadas no Plano Piloto, ignoram a realidade dos militantes que vivem nas quebradas, forçando-os a longas jornadas em transporte público.
Recentemente, grupos que nunca pisaram na periferia começaram a aparecer em busca de cooptação de movimentos e pessoas, mas reagem negativamente quando reuniões são marcadas em regiões como Ceilândia.
Essa postura evidencia o desprezo pelas vivências periféricas e reflete o eurocentrismo que Grada Kilomba analisa: esses espaços são arenas de violência simbólica, onde negros são posicionados como “outros”, enquanto a elite branca, frequentemente de classe média, assume o papel de especialista nas questões raciais, sem incluir ativamente os sujeitos dessas questões.
Além disso, a inclusão de negros em posições de liderança nos partidos ocorre de forma tokenista, priorizando figuras públicas já conhecidas e desvalorizando militantes negros com ampla experiência nos movimentos sociais.
A realidade é que muitas direções partidárias permanecem brancas e alheias às demandas da periferia, relegando os militantes negros à sobrecarga física e mental, sem reconhecimento ou suporte, enquanto militantes brancos ascendem com facilidade.
Sueli Carneiro nos ensina que a luta contra o dispositivo de racialidade não deve ser confundida com alianças à direita, mas também nos convoca a questionar as práticas da esquerda.
O fracasso dos partidos em representar efetivamente a negritude e a periferia exige a construção de alternativas. Coletivos como Pelas Vidas Negras DF mostram que o vínculo entre militantes deve ser baseado em experiências compartilhadas e objetivos comuns, e não na lógica de disputa partidária.
Portanto, a luta por justiça racial e emancipação plena passa pela construção de espaços que valorizem as vivências negras e periféricas. É essencial perguntar: quantas pessoas da periferia ocupam cargos de liderança? Quantos negros, indígenas e mulheres negras estão representados nas direções? Se as estruturas partidárias não refletem a diversidade do Brasil, dificilmente serão capazes de implementar políticas reais de reparação.
Buscar organização com quem compartilha essas vivências e lutas é essencial para romper com o dispositivo de racialidade e construir uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária.
Essa é a tarefa coletiva que deve guiar tanto a militância periférica quanto a Maloka Socialista: desafiar a lógica colonial, afirmar o protagonismo negro e reconstruir as bases do poder e do saber.