Reconhecida internacionalmente e uma das maiores expoentes do pensamento feminista negro, a educadora, escritora, teórica e ativista bell hooks buscava em suas palavras e estudos (sobre gênero, raça, classe, amor e espiritualidade) se aproximar das mais diversas pessoas e transformá-las em algum nível.
Aos 69 anos e com mais de 40 livros, traduzidos em 15 diferentes idiomas, e inúmeros artigos publicados, a autora faleceu na última quarta-feira (15), no estado de Kentucky, nos Estados Unidos. A família da escritora publicou nas redes sociais que ela faleceu rodeada pelos familiares e amigos. A causa da morte não foi divulgada.
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“É como se nós tivéssemos perdido uma pessoa muito próxima, mesmo sem que a gente a tivesse conhecido, só pela maneira como ela se aproxima de nós”, ressalta a historiadora e psicanalista Mariléa de Almeida, também escritora do prefácio do livro ‘Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra’ (Editora Elefante) da bell hooks.
A teórica nasceu em 1952 em Hopkinsville, uma cidade pequena segregada no estado de Kentucky, sul dos Estados Unidos, e foi batizada como Gloria Jean Watkins. Ela adota o pseudônimo bell hooks como homenagem a sua bisavó paterna, Bell Blair Hooks, conhecida na família por conta de sua coragem de dizer a verdade. Por escolha política, a escritora decidiu utilizar os nomes em minúsculo como forma de valorizarem mais suas ideias do que sua identidade. Foi formada em literatura inglesa na Universidade de Stanford, fez mestrado na Universidade de Wisconsin e doutorado na Universidade da Califórnia.
Suas principais contribuições
bell hooks teve uma contribuição intelectual e teórica grande em estudos dirigidos às discussões sobre relações raciais, gênero, classe, também pontuando a questão histórica, a arte, a educação e a mídia de massa. Segundo Mariléa de Almeida, o texto da teórica tem camadas de erudição, que vai dialogar com a história, a antropologia, a psicologia, a teoria literária e com a literatura.
“Ela é uma autora que tem um jeito de escrever que é simples, mas não é simplório. É complexo, sem ser elitista. Ela vai trazendo as informações como se fosse uma conversa. Essa forma de escrever dela é política. É um desejo de que o texto dela seja acessível para quem está no presídio, mas para quem também está em Yale e Harvard”, pontua a historiadora.
Segundo a jornalista, professora e pós-doutora em ciências da comunicação Rosane Borges, também escritora do prefácio do livro ‘Olhares negros: raça e representação’, a principal contribuição da pensadora foi apontar que racismo, feminismo, além da questão das mulheres negras e do feminismo negro, não eram assuntos acessórios e identitários, mas que estruturam e estão no epicentro da desigualdade mundial.
“Não é a toa que ela se dizia anticapitalista, antipatriarcal, antirracista. Ela sempre falava em capitalismo e nunca transigiu de um debate que enfrentasse essa estrutura. Um diferencial é que ela adota o amor como categoria política e como força de mediação. Quando ela pensa o amor como força de mediação, ela tem toda uma metodologia e uma técnica discursiva que é amorosa, não porque é derretida, mas porque parte de um entendimento de que a construção de vínculo com o outro é fundamental para se acabar com o racismo, o seximo e enfrentar o capitalismo que destroi vínculos.”, ressalta Rosane.
De acordo com Mariléa, o que bell hooks colocava em todos os seus livros também era radicalmente contra as estruturas imperialistas patriarcais capitalistas. “Além disso, as contribuições da bell hooks para o feminismo são várias, mas eu destacaria não abrir mão de uma linguagem que inclua as pessoas e não ser seduzida pelo feminismo acadêmico. Era uma militante que acreditava que o feminismo não era uma teoria para ficar enclausurada na universidade, mas que tinha de ser discutido em praça pública”, destaca.
A historiadora também pontua que, mesmo quando hooks está tratando sobre temas íntimos, como amor, espiritualidade e autoestima, ela se propõe a fazer críticas à sociedade capitalista, imperialista, supremacista branca e patriarcal, que é baseada no hedonismo e na competição.
“Ela é uma autora que não é condescendente. A luta política, a transformação do mundo com a bell hooks não se dá dissociada da transformação de nós mesmas. Ela não está apenas apontando o dedo nas contradições das estruturas e do sistema, mas está também dizendo o quanto que nós também corremos o tempo todo o risco de sermos capturadas por essa supremacia branca, imperialista e patriarcal”, completa.
De acordo com Bruna Rocha, jornalista, pesquisadora e idealizadora da plataforma Semiótica Antirracista, a discussão que a bell hooks trouxe sobre o amor, sobre a necesidade de um olhar mais estratégico para a subjetividade e a afetividade da população negra, especialmente das mulheres negras, é uma contribuição singular para os movimentos negros contemporâneos.
“É uma contribuição intelectual e política de muita coragem, de muita sensibilidade e de muita generosidade, pois existia e existe, por um lado, um embrutecimento dos corpos negros por parte do racismo e, por outro lado, a incorporação de uma lógica majoritariamente branca de organização política onde historicamente a dimensão da subjetividade, da vida privada foi negligenciada e colocada como uma questão menor. É o feminismo negro, com contribuições valiosas como a da bell hooks, que vai dizer que interseccionalizar essas questões é fundamental para pensar toda a estrutura em sua complexidade”, pontua.
Escrita que cura, autorrecupera e transforma
Mariléa, Rosane e Bruna também tiveram suas vidas tocadas pelas palavras de bell hooks | Crédito: Arquivo pessoal
Segundo a professora Rosane Borges, os escritos, a teoria e a obra da bell hooks afetam todo mundo, porque, ao mesmo tempo que ela traz elementos duros, difíceis, pesados, ela também trata isso de uma maneira amorosa. Além disso, cada pessoa que lê a autora é tocada por ela de maneira singular e específica.
“A bell hooks é pessimista na análise e otimista na ação, então ela alcança a dimensão da subjetividade humana, das pessoas negras e das mulheres negras, porque ela sabe muito falar a partir de afetos que foram forçosamente criados e produzidos por conta da escravidão. Ela nos leva a girar a chave e trabalhar política não do ponto de vista do ressentimento, do rancor, mas do ponto de vista do acolhimento e do amor”, destaca.
A pesquisadora Bruna Rocha diz que possui uma relação particular com duas obras da autora, uma que atravessa seu campo de pesquisa e outra que a toca do ponto de vista pessoal e político.
“ ‘Olhares negros’ faz uma crítica ampla à reprodução de estereótipos de mulheres e homens negros, inclusive em materiais, filmes e na produção da cultura popular negra. É uma obra que eu uso nos cursos da plataforma Semiótica Antirracista e que a gente traz também para tensionar e para contribuir com os estudos e análises do discurso. Do ponto de vista pessoal, sem dúvida alguma, o texto ‘Vivendo de amor’ é um marco na minha vida e na vida de todo mundo que leu. É um texto profundamente corajoso, muito direto, carregado de vida e de emoções”, pontua.
De acordo com Mariléa de Almeida, ler, escrever e teorizar para bell hooks pode ser um gesto de cura e de autorrecuperação. A autora, inclusive, começa a sua escrita teórica como forma de se autorrecuperar e para dar conta das próprias dores.
“Ao fazer esse processo de autorrecuperação, nós nos vemos não mais pelo jeito e olhar do opressor. É uma virada de chave para dizer que é preciso coragem pra se tornar aquilo que se deseja ser. Essa coragem exige olhar para as dores e mexer nas feridas para que, quando eu denuncie, isso não seja apenas fruto de um ressentimento e sentir igual, mas para que isso seja fruto de uma reelaboração. A bell hooks me autorizou a fazer o caminho do torna-me Mariléa de Almeida”, finaliza.
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