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Mães e o cárcere: a luta dentro e fora da prisão pelo bem-viver

No Brasil, milhares de famílias carregam as marcas e as humilhações impostas pelo sistema por terem algum parente preso; tortura, constrangimento e desrespeitos mostram que o país mantém viva a rotina do colonialismo e do ódio aos corpos negros

 

Imagem mostra três mulheres em pé em uma rua. O chão não é asfaltado e há uma criança abaixada.

Foto: Imagem: Acervo Pessoal

10 de dezembro de 2021

No Brasil, são mais de 700 mil famílias que vivem cotidianamente as consequências diretas da política de encarceramento em massa. Entre a prisão, acusação, julgamento e a apelação, as mães e mulheres dos encarcerados aprendem como é duro o enfrentamento de um mecanismo que abandonou a Justiça para se concentrar na punição, humilhação e sadismo.

Miriam Duarte, co-fundadora da Amparar, organização de apoio a familiares de presos com sede no Estado de São Paulo e atuante desde a década de 1990, escreveu recentemente um artigo sobre a falta de políticas públicas para garantir uma qualidade melhor de vida para os parentes de pessoas presas.

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“O cárcere acarreta impactos negativos para a vida de milhares de famílias, que sofrem uma série de precariedades e violências decorrentes disso, mas principalmente precisam se responsabilizar pela subsistência de seus parentes e enfrentam grande dificuldade no acesso às políticas públicas básicas fora do cárcere”, disse Miriam, que é mestranda em Políticas Públicas na UFABC (Universidade Federal do ABC).

Mesmo após cumprir a pena, a família e o preso ainda têm que enfrentar as sequelas deixadas pelo sistema carcerário que impactam na sua renda. Um exemplo disso é a “multa penal”, uma pena estabelecida pelo poder judiciário em conjunto com a pena de prisão.

“A família que manteve o sustento da pessoa enquanto ela estava presa precisa assumir esta nova dívida, uma vez que sem pagá-la seu familiar sobrevivente do sistema prisional não poderá tirar título de eleitor, assumir determinados cargos de trabalho e uma série de outras imposições burocráticas que dificultam ainda mais a vida de quem passa pelo cárcere”, conta Míriam.

Não é crime ser parente de preso, no entanto, o Estado pune a todos com igual rigor. A condição de fragilidade emocional das mães gera o adoecimento físico e psíquico. As opções de atendimento na rede de serviços públicos das áreas de saúde e assistência social se perdem em meio à burocracia e falta de atendimento diferenciado para as necessidades dos parentes de presos.

“Os serviços públicos deveriam se articular de forma mais potente nos territórios e, para isso, deveriam dialogar com os movimentos de base que conhecem profundamente estas regiões da cidade”, descreve Miriam. Como organização não-governamental, a Amparar se articula para criar alternativas práticas que, de algum modo, corrijam as falhas provocadas pela ausência e indiferença do estado.

A Amparar promove encontros para práticas de cuidado e acesso mais horizontais e comunitários de apoio psicossocial e jurídico às mães. Além disso, organiza grupos quinzenais para o fortalecimento de vínculos e formação política cooperativa sobre encarceramento em massa, ação política e coletividade.

A organização atua na articulação com movimentos sociais comprometidos com a luta anti-cárcere, para o fortalecimento da campanha pelo desencarceramento. Outra frente de luta importante da Amparar é a parceria com a Rede de Proteção Contra o Genocídio da População Negra, que criou o grupo “Libertas”, formado por estudantes de psicologia e psicólogos.

“O grupo tem se proposto a atender, de modo voluntário, muitos familiares de pessoas presas, as quais são mulheres que já passaram por uma série de violações de direitos sobre seus corpos e que ficam à mercê do adoecimento psicológico”, diz Miriam.

carta 02Créditos: Acervo Pessoal

Amor de mãe

“Eu sonho… eu sonho ele chegando, me chamando…” “Eu falei pra ele, jamais vou te abandonar.” “Quando eu fiquei grávida, todo mundo dizia que era mais um bandido, mais um sem futuro que tava nascendo.” Essas são falas de mães atuantes nos encontros quinzenais da Amparar.

Joana* trabalha como diarista e vende bolos no bairro onde mora, em São Paulo. Ela tem um filho preso, que passou pela Febem (atual Fundação CASA) e hoje se encontra no sistema penitenciário. Parte significativa do seu salário vai para ajudá-lo a se manter, mandando alimentos, produtos de limpeza e de higiene pessoal, que deveriam ser fornecidos pelo próprio Estado na prisão. Ironicamente, chama-se jumbo ou sucata esses kits fornecidos pelas familiares: pesa uma tonelada para a família, mas não vale nada para o Estado.

Para além dos gastos com o jumbo, Joana vivencia várias consequências do cárcere de seu filho, mesmo não tendo cometido crime algum. Familiares como Joana sofrem discriminação da sociedade civil, que vê as familiares, em sua maioria mães e esposas, como “loucas” por não abandonarem seus familiares “criminosos”, gastando seu tempo e dinheiro. As familiares relatam que as cadeias onde “seus presos” estão ficam por vezes 9 horas de distância da cidade das familiares, que viajam incansavelmente para fazer a visita.

As mães narram também a sensação de culpa e de fracasso em relação ao familiar preso, pois não foram capazes de “fazer seu trabalho” nem de manter seu familiar “fora do mundo do crime”. Tamanha a falta de apoio e as preocupações das familiares em relação às condições de vida do preso que muitas relatam a sensação de também estarem presas, identificando em si os sentimentos de “privação” e de “solidão”, que permeiam as rotinas dos presídios.

A prisão, portanto, não afeta apenas aquele que supostamente cometeu o crime, mas toda rede de relações em volta dessa vida, aprofundando vulnerabilidades em várias gerações familiares.

Tortura

Em seminário organizado pela Amparar para discussão sobre encarceramento, o defensor público do Núcleo Especializado em Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo (NESC), Thiago Cury, argumentou que a prisão é uma justificativa moderna para legitimar a retirada de direitos de uma parcela da população.

Segundo Cury, a insistência em um sistema falido, o prisional, se dá porque cumpre a sua missão de controle social, de uma classe sobre a outra. Cury defende que, apesar das diversas mazelas apontadas nas prisões por defensores dos direitos humanos, ela funciona perfeitamente para o que foi desenhada: é peça de um sistema seletivo, que não prende necessariamente pela ocorrência de crimes, mas pelo pertencimento do indivíduo a um certo grupo social e racial.

Pessoas que já viviam sem acesso a serviços quando estavam em liberdade são presas em um depósito de gente e, ao se transmitir a mensagem de que quem está preso é perigoso à sociedade, legitima-se a falta de atenção dada a esse grupo e toda a parcela da população da qual ele faz parte.

Na lei No 9.455, de 7 de abril de 1997, define-se o crime de tortura essencialmente como “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental”. O sistema carcerário aperfeiçoa as práticas de tortura: ela opera pela ausência de serviços básicos e pelas condições degradantes de aprisionamento, causados pela ação ou omissão dos funcionários com o propósito de punição, à margem da lei.

quentinhas 01Créditos: Acervo Pessoal

Quentinhas

De acordo com Alêssandra, uma das vozes do Coletivo Vozes, atuante no Ceará, mãe negra de um sobrevivente do sistema prisional, ser mãe de encarcerado significa abrir mão de muitas coisas. O que mantém o vínculo e sustenta a vida nessas difíceis condições é o amor. “Porque tem que amar, para estar ali naquele local, você catar ônibus, não tem dinheiro nem pra você mesma e você dá preferência em levar alguma coisa pra ele, as viagens longas, os pesos… quantas senhorinhas com aquele peso que nem aguentava com ele e você acabava ajudando a senhorinha, mais o seu peso.”

“Com tudo que está acontecendo, a gente entra com um sorriso, mesmo que o mundo esteja desabando, porque pra eles já é ruim a situação, e você levar mais problema lá dentro acaba sendo pior ainda.”

“Mãe ama independente de qualquer situação que seu filho esteja […] A gente vive em uma sociedade de hipocrisia, me diz quem nunca infringiu uma lei? De hipocrisia, de julgamentos, prevalece a lei do mais forte.”, diz Iolanda*, mãe negra de preso em São Paulo.

Alessandra fazia visitas periódicas a seu filho nos tempos do cárcere. “Ele é um poeta de ônibus, faz poesias. ‘Poeta de lugar nenhum’, é como ele se define. Às vezes ele falava coisa com coisa, às vezes não. Ele perguntava para mim ‘mãe eu tô ficando doido’. E eu sentia uma angústia no peito, via o meu filho definhando. Via o ócio imperar dentro daquele espaço, desde a FEBEM sem ofertas de atividade de cidadania, sem acompanhamento na educação, na saúde… como a LEP prevê. E no sistema carcerário, sem chance.”

“Em uma outra visita, eu pedi pra ele contemplar a vista do pavilhão aberto da cela dele, dava pra ver o horizonte de lá… pedi pra ele olhar pra aquilo, se inspirar, tentar. Ele não podia declamar a poesia, pois os presos diziam que ele era o doido. Ele queria falar a poesia alto, falar coisas humanas, mas o espaço do cárcere te reduz a não ser humano. Falar de poesia, coisas boas, doces, possíveis, do fora, do mundo, da leitura de mundo que ele tinha, de vivências dele, de afeto, ali dentro era loucura. Eu falei pra ele: ‘Pois se você não pode falar, escreva, escreva as suas poesias.’”

Mas a situação dentro do cárcere tinha ficado muito difícil. Os guardas haviam retirado o material que eles tinham, desde as fotografias na parede, cartas das famílias, até as Bíblias e os papéis. “Não lembro se foi ideia minha ou dele, de começar a escrever na tampa da quentinha! E ele começou, as poesias no cárcere começaram ali. Ele começou a se empolgar, começou a ter uma mudança na rotina dentro daquele espaço. O que ele não podia externalizar através da fala, que é o que move ele, ele começou a escrever no papel. Uma produção de mais de 100 tampas de quentinhas, com desenhos…”.

Em uma visita, depois da conversa da quentinha, Alêssandra foi recebida com um sorriso. Sorriso marcado e machucado, mas ainda assim, um sorriso. Para o seu filho era muito importante, quando eles sentavam e assim podia ler as poesias para a mãe. “Eu via tanto afeto trocado ali comigo do que ele sentia… Ele se enchia de humanidade novamente. Aquele olhar opaco, vazio, sem perspectiva que eu vi antes daquele dia, passou a ter um brilho no olhar dele, eu vi meu filho sorrindo.” As mães são uma das poucas bases de apoio e afeto para os presos e, por isso, são parte essencial do que sustenta a existência da humanidade no espaço da prisão.

Alêssandra se articula com outras familiares com o objetivo de chamar atenção para a questão do cárcere. “Para ele era bom ouvir as histórias do mundo [enquanto estava preso], eu trazia para ele vivenciar. Pedia pra ele fechar os olhos e imaginar aquilo acontecendo. Tem um desenho da gente indo pra defensoria. Ele começou a se empolgar ao desenhar seus projetos, o que ele quer fazer aqui fora.”

Quando uma mãe se torna abolicionista penal, ela reivindica a responsabilização do seu filho pelo ato cometido e não a destruição e degradação do seu corpo e sua mente. “Reivindicamos outros caminhos e apontamos soluções que não seja o código penal, desconstruimos essa narrativa e prática do Estado e seu projeto de encarceramento da nossa juventude cearense. Basta, por um mundo sem prisões, sonhamos. Pela vida e liberdade nas nossas periferias, bem como pelo bem viver das mães negras”, conclui Alêssandra.

*Os nomes das mães foram alterados para preservar suas identidades.

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