Poeta, escritor, dramaturgo, curador, artista plástico, professor universitário, pan-africanista e parlamentar, Abdias Nascimento (1914-2011) teve uma longa trajetória trilhada no ativismo e na luta contra o racismo. No ano que marca a primeira década de sua morte, Inhotim e IPEAFRO (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros) o homenageiam com uma ação de longa duração, a ser realizada entre 4 de dezembro de 2021 até dezembro de 2023.
O Instituto Inhotim, localizado em Brumadinho, no estado de Minas Gerais, sedia o Museu de Arte Negra (MAN), projeto idealizado pelo Teatro Experimental do Negro sob a liderança de Abdias Nascimento no início dos anos 1950. A iniciativa traduz o desejo de Abdias Nascimento de desafiar os conceitos vigentes sobre a arte moderna, revelando sua relação com a estética africana. Além disso, procura apoiar e promover a produção de artistas negros de todo o mundo e enfrentar o racismo em suas dimensões estética e institucional.
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A exposição será dividida em quatro atos, cada um com duração de cerca de cinco meses, desdobrados a partir de indagações postas à coleção do Museu de Arte Negra. O primeiro, exibido a partir de 4 de dezembro, traz o diálogo entre a obra de Abdias, Tunga e o acervo do MAN em um espaço que remete às origens do Inhotim: a Galeria Mata, situada próximo à Galeria True Rouge, uma das primeiras da instituição e que expõe de forma permanente a instalação de título homônimo de Tunga.
Primeiro ato – “Tunga, Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra”
Em entrevista para o jornal Correio da Manhã, em 1968, Tunga, então com 15 anos, afirmava que a arte negra exercia grande influência em sua obra. “Para mim, a arte negra foi a primeira a romper os grilhões das saturadas imagens renascentistas”, disse o jovem que, na época, já doava trabalhos à coleção Museu de Arte Negra.
Tunga, um dos artistas mais emblemáticos da coleção do Inhotim, cresceu convivendo com Abdias. Ele era filho de Gerardo Mello Mourão, poeta que, na década de 1930, fez parte da “Santa Hermandad Orquídea” ao lado de Abdias Nascimento e outros escritores. O grupo funcionava como uma espécie de aliança poética que buscava a construção de uma poesia verdadeiramente americana e foi campo fértil para a amizade duradoura entre as famílias de Abdias e Gerardo.
Foi Gerardo, inclusive, que indicou Abdias Nascimento pela primeira vez ao prêmio Nobel da Paz, em 1978. Abdias seria indicado novamente, em 2004, pela sociedade civil e autoridades brasileiras. A indicação oficial veio em 2009.
A curadoria feita a quatro mãos – Inhotim e IPEAFRO – reuniu para este primeiro ato pinturas, desenhos, fotografias e instalações que evidenciam o diálogo e a conexão artística entre Tunga e Abdias.
Entre as obras apresentadas estão o quadro pintado por Tunga em 1967, aos 15 anos, para o acervo do MAN; Invocação Noturna ao Poeta Gerardo Mello Mourão: Oxóssi (1972), pintura que Abdias fez em homenagem ao amigo Gerardo e à memória dos poetas da Santa Hermandad Orquídea; e a instalação Toro Condensed; Toro Expanded (1983 – 2012), na qual Tunga traz a ideia de movimento contínuo e alude a metáforas de desenvolvimento, como o ciclo da vida, que faz parte da mitologia afro-brasileira.
“Amigos de longa data, Tunga e Abdias abrem espaço para o Museu de Arte Negra, e para os próximos atos desse projeto. Cosmogonias, tradição e ancestralidade conduzem os caminhos neste encontro de mundos”, diz Douglas de Freitas, curador do Inhotim.
Leia também: Museu de Arte Negra, de Abdias Nascimento, lança plataforma virtual
Museu de Arte Negra
Desde os anos 1940, Abdias Nascimento e seus companheiros lançavam as bases para a fundação do Museu de Arte Negra (MAN) a partir do Teatro Experimental do Negro (TEN). Com a proposta de valorização social do negro e da cultura afro-brasileira por meio da arte e da educação, o TEN buscava delinear um novo estilo estético e dramatúrgico.
Foi o TEN que, em 1950, no Rio de Janeiro, organizou o 1º Congresso do Negro Brasileiro, em que se discutiu a “estética da negritude” e modos de visibilização e valorização da produção de artistas negros e daqueles que lidavam com a representação da cultura negra em seus trabalhos. Nesse sentido, a plenária do Congresso aprovou uma resolução sobre a necessidade de um museu de arte negra. O TEN assumiu o projeto, e assim nasceu o MAN.
“Naquela altura, ainda influenciada pela primeira onda modernista, que reafirmava o mito dos ‘benefícios da miscigenação’ das três raças (branca, indígena e negra) para a formação da sociedade brasileira, a representação do negro nos museus tradicionais aparecia em segundo plano e, em sua maioria, mediada pelo olhar do branco. Assim, era preciso romper com esse sistema representacional e tornar visível ao mundo a riqueza da cultura negra para o campo da Arte”, explica Deri Andrade, curador assistente do Inhotim e pesquisador à frente do Projeto Afro – plataforma afro-brasileira de mapeamento e difusão de artistas negros.
A coleção Museu de Arte Negra ganhou forma sendo composta por pinturas, desenhos, gravuras, fotografias, esculturas, dentre outras, numa pluralidade de suportes e técnicas. “Da curadoria dessa coleção e da convivência com o artista Sebastião Januário em um pequeno apartamento no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, surgiu a ‘aventura pictórica’ de Abdias Nascimento (assim ele se referiu à sua própria produção artística)”, afirma Julio Menezes Silva, coordenador do projeto Museu de Arte Negra do IPEAFRO no ambiente virtual.
Em 1955, o projeto MAN promoveu um concurso de artes plásticas e uma exposição sobre o tema do Cristo Negro. A exposição inaugural da coleção Museu de Arte Negra foi realizada em 6 de maio de 1968, no Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro. Os organizadores aproveitaram, para isso, a comemoração dos 80 anos da abolição da escravatura, ocorrida em 1888. Entretanto, eles tinham plena consciência de que as estruturas que sustentavam o regime escravista de violação de direitos e da dignidade humana se mantinham sob a forma do racismo. Sem medidas reparatórias como acesso ao emprego, à cultura e à educação, a abolição resultou na exclusão social, econômica, política e cultural da população negra recém-libertada.
De modo a contestar essas ausências, a criação do TEN e do MAN por Abdias Nascimento foi uma forma de dar visibilidade à cultura negra e sua importância para a formação nacional. Após a abertura da exposição, Abdias Nascimento ganhou uma bolsa de intercâmbio cultural para os Estados Unidos. Era a fase mais dura da ditadura civil-militar. Com a promulgação do Ato Institucional – 5, em dezembro de 1968, Abdias, alvo de vários Inquéritos Policiais-Militares, se viu impedido de retornar ao país.
“Esse infortúnio foi um obstáculo para o retorno de Abdias ao Brasil. Limitou as atividades do Museu de Arte Negra, mas não as do artista, que continuou produzindo e coletando obras durante o seu exílio”, comenta Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias Nascimento e co-fundadora do IPEAFRO. “Assim, atualmente uma profusão de artistas nacionais e internacionais integram o acervo do MAN-IPEAFRO, contribuindo para o enriquecimento das narrativas curatoriais sobre a produção artística negra”, finaliza.
Serviço:
Museu de Arte Negra – Primeiro ato: Abdias Nascimento e Tunga
Abertura: sábado, 4 de dezembro de 2021
Local: Galeria Mata | Instituto Inhotim, Brumadinho, Minas Gerais