Por: Vinicius Martins
Em 1969, estreou na TV Globo a telenovela A Cabana do Pai Tomás. A história baseada no livro homônimo de Harriet Beecher Stowe retratava o conflito entre escravos e latifundiários no sul dos Estados Unidos durante a Guerra de Secessão. Esta foi a última novela da emissora feita a partir de textos estrangeiros. Na trama, Pai Tomás (Sérgio Cardoso) e Cloé (Ruth de Souza) lideraram a luta negra pela liberdade no sistema escravocrata estadunidense.
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Mesmo distante do sucesso e da audiência esperada, a novela trazia duas questões relevantes: a atriz Ruth de Souza como a primeira negra em um papel de destaque na TV brasileira e um artista branco para atuar como negro no posto principal. O protagonista, Pai Tomás, interpretado pelo ator Sérgio Cardoso, era no enredo originalmente escravo afro-americano. Para se passar por negro, o ator pintava o rosto e o corpo de preto, prática chamada de blackface.
O episódio caracterizou-se como a primeira polêmica pública sobre a questão racial na televisão brasileira. O impacto de um artista branco no papel de um personagem negro no Brasil – em que metade da população é afrodescendente – levantou os primeiros questionamentos sobre representatividade na mídia do país. Os protestos liderados pelo ator e escritor Plínio Marcos levaram Pai Tomás a ser o último blackface na história da televisão brasileira.
Longe de ser a discussão racial definitiva na televisão, A Cabana do Pai Tomás deixava nítida a resistência aos negros nos papéis e momentos de destaque. A atriz Ruth de Souza, interprete de Cloé, viu seu nome perder o posto de destaque nos créditos para atrizes brancas do elenco durante a exibição da novela.
Historicamente, o público acostumou-se a ver um baixo número de pretos e pardos atuando nas telenovelas. Normalmente, os papéis representavam estereótipos sociais pré-definidos e posições coadjuvantes na trama. De acordo com o livro Memória da Telenovela Brasileira, de Ismael Fernandes, de 1963 a 1998, cerca de 520 novelas foram ao ar. Apenas 200 delas (ou 38,4%) contavam com atrizes e atores negros.
Atentas a questão, as atrizes e ativistas sociais Renata da Hora e Bel Antunes resolveram criar a página Contra o Racismo nas Telenovelas, no Facebook. “A ideia de criar a página surgiu da falta de representatividade mesmo, eu vendo coisas simples que faltam no cotidiano de uma pessoa negra, sendo assim tive a ideia de criar algum tipo de mobilização na internet para que possa chegar em outras pessoas que se identificam de alguma forma”, conta Renata da Hora.
O desejo das criadoras é ver o povo negro na TV, para além dos estereótipos impostos à pele preta, quase sempre relacionados à hiperssexualização, agressividade, exotismo e criminalidade. A aparente democracia racial brasileira esconde a internalização de ideias geradas sobre os afro-brasileiros a partir das telenovelas – um dos produtos midiáticos de maior penetração no cotidiano nacional.
“O racismo nas telenovelas começa primeiro em colocar o negro em papéis subalternos, porque só servimos para o papel de babá, empregada ou de moradores de periferia e ladrões. Nem todo negro tem essa realidade e nem todo negro gosta de se ver desta forma, contudo, esses papéis nos afetam drasticamente e atrapalham nosso futuro”, aponta Renata.
Esther Hamburger no texto “Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano” pontua a capacidade da televisão em reproduzir representações que perpetuam matizes de desigualdade. Há uma super-representação de brancos em relação aos afrodescendentes, de forma que contribui para a manutenção da discriminação e do preconceito racial.
Os impactos podem ser vistos também na construção da visão sobre o negro e sua identidade no Brasil. Segundo Renata da Hora, a população preta e parda é afetada por esse discurso “porque qualquer outra pessoa que vê vai pensar mesmo que somos empregadas ou até ladrões, só por causa da nossa cor de pele, vivemos a sombra do tempo escravocrata”.
Sobre a resistência às mudanças na televisão, Ricardo Alexino Ferreira, Prof. Dr. da Escola de Comunicação e Artes da USP, diz que essas produções não estão totalmente livres. “As telenovelas estão reféns da opinião de grupos conservadores. Recentemente, a novela “Babilônia”, exibida na Rede Globo, fez muitas concessões. Alterou a cor do logotipo e clareou o fundo para atender os interesses de grupos religiosos; comprometeu-se a não mais colocar cenas de homoafetividade e tem feito várias outras mudanças para atender grupos ultraconservadores”, explica.
O negro na imprensa: da abolição à atualidade
Se os estereótipos são crônicos na tele-dramaturgia brasileira, o mesmo pode ser verificado no discurso jornalistico. No livro Retrato em branco e negro, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz faz um recorte do discurso jornalístico e publicitário sobre os afro-brasileiros na segunda metade do século XIX e início do século XX.
A partir da análise dos jornais A Província de São Paulo (atual Estadão), Correio Paulistano e A Redempção, a autora mostra os estigmas sociais reproduzidos pelos principais jornais paulistanos a respeito dos negros no período abolicionista. Entre eles, o do negro violento ou forte fisicamente, do negro inferiorizado cientificamente, do não-civilizado, animalesco ou desordeiro, do negro viciado e sexualizado ou a suposta inferioridade cultural dos afro-brasileiros.
A despeito dos avanços em relação a imagem da população negra na comunicação, algumas representações antigas ainda são persistentes no discurso midiático, como explica Ricardo Alexino Ferreira, pesquisador da USP na área de Comunicação e estudioso das relações raciais: “o negro ainda é visto como objeto, desumanizado. Por isso, é tão fácil compará-lo aos animais, principalmente aos primatas. Os avanços aconteceram, sem dúvida, mas os estereótipos são persistentes e a partir deles o negro é frequentemente abduzido a uma condição simbólica de escravo”.
Em sua pesquisa de mestrado, “A representação do negro nos jornais no centenário da abolição da escravatura”, Alexino percebeu mudanças na imagem do negro enquanto informação. Antes de 1988, a população negra ficava restrita à editoria de cultura por meio do samba, à editoria de esportes, sobretudo na imagem do futebol, e nas páginas de polícia. Apenas após aprovação da legislação que tipifica racismo como crime inafiançável e imprescritível, é que negras e negros migram para outras editorias.
Muita técnica, pouco preparo
No fim de agosto de 2014, durante partida entre Grêmio e Santos válida pelas oitavas-de-final da Copa do Brasil, Aranha, até então goleiro do Santos, foi alvo de racismo vindo das arquibancadas porto-alegrenses. Na ocasião, as câmeras do canal à cabo ESPN flagraram uma torcedora ofendendo racialmente o arqueiro santista.
O episódio rendeu a eliminação do Grêmio da Copa do Brasil. Irritados, parte dos torcedores gaúchos pressionaram Aranha em sua volta à Porto Alegre menos de um mês depois. Dessa vez, em uma partida da 22ª rodada do Campeonato Brasileiro, o goleiro foi intensamente vaiado pela torcida gremista.
Perguntado por repórteres na saída do jogo por que as vaias teriam sido diferentes naquela ocasião, Aranha devolve o questionamento aos jornalistas, que parecem não entender a situação vivida pelo goleiro:
O caso do ex-goleiro santista reflete o despreparo do jornalismo ao tratar do negro e do racismo de forma objetiva e contextualizada. Para Ricardo Alexino, os profissionais de mídia são apenas técnicos e não conseguem refletir as questões sociais de forma mais profunda.
“Muitos jornalistas também se tornaram técnicos da informação. Não são intelectuais ou intérpretes dos fenômenos, mas apenas técnicos mal preparados. Muitos não conseguem ir além da pirâmide invertida (o que?; quem?; onde?; como? e por que?). São robôs que conseguem apenas preencher essas perguntas”, explica.
O mesmo pode-se identificar ao contrapor a cobertura de um caso racista no Brasil e um caso racista nos Estados Unidos ou em outro país. Os protestos recentes em Fergusson e Baltimore decorrente de assassinatos praticados pela polícia contra negros nos EUA foram amplamente divulgados pelas mídias tradicionais. Por outro lado, apesar dos dados que comprovam a morte de jovens negros diariamente em território brasileiro pela Polícia Militar, os grandes veículos de mídia parecem ignorar a questão. Conforme dados do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos, no estado de São Paulo cerca de 61% das vítimas da Polícia Militar são negras.
Para o professor Ricardo Alexino, a formação profissional dos jornalistas não leva em conta a complexidade étnica e a diversidade do país. “Se você tem profissionais tão limitados não espere muito que eles façam da informação algo dialético ou polissêmico. Ao contrário, atuaram no senso comum e na monossemia. Ao abordarem temas bastante complexos como diversidade e questões étnicas, eles não saberão como fazê-lo”, explica.
Por fim, Alexino também aborda a necessidade da imprensa tradicional em trabalhar dentro de limites ético para cumprir sua função social: “a imprensa brasileira precisa entender melhor o seu papel, aquilo que é a deontologia do Jornalismo. Ou seja, a imprensa brasileira precisa se tornar ética. Ela deve entender quais são os seus limites éticos. Deve entender que interferir na vida nacional para estimular golpes e favorecer grupos econômicos ou partidos conservadores que darão às empresas jornalísticas privilégios é imoral. É uma questão de princípio, que parece estar faltando à imprensa nacional, principalmente aos grupos midiáticos hegemônicos”.
Para saber mais:
Documentário
A Negação do Brasil
Direção: Joel Zito Araújo
Duração: 91 min
O documentário trata do impacto das telenovelas brasileiras na construção da identidade étnica da população negra do Brasil.
Documentário: ‘A Negação do Brasil – O Negro nas Telenovelas Brasileiras’ – RARIDADE from Ronaldo on Vimeo.