Luta antirracista brasileira participa de audiência com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para denunciar pacote de Sergio Moro; Conferência Internacional de Durban, em 2001, foi um dos principais momentos de incidência a nível mundial e gerou uma série de conquistas para o povo negro no país
Texto / Pedro Borges | Imagem / | Edição / Simone Freire
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O movimento negro brasileiro participa de uma audiência com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), nesta quinta-feira (9), em Kingston, na Jamaica. O objetivo é abordar o pacote de medidas que visa mudar a legislação penal e eleitoral do pais, defendido pelo ministro sa Justiça, Sergio Moro. A audiência “Sistema Penal e denúncias de violações dos direitos das pessoas afrodescendentes no Brasil” conta com a presença de representantes do governo brasileiro, do movimento negro e da própria CIDH.
Participam da ação, 14 ativistas do movimento negro brasileiro de diferentes setores da luta antirracista no país: religiões de matriz africana, cursinhos populares, movimentos de favela e periferia, mídia negra, mães cujos filhos foram vítimas da violência de Estado, quilombolas, movimento de mulheres negras, entre outros.
Maria Sylvia, advogada e presidenta do Instituto da Mulher Negra Geledés, acredita ser fundamental levar as violações de direitos humanos sobre a comunidade negra para outras instâncias de poder, para além do âmbito nacional. “Essa agenda é muito importante porque os nossos canais de diálogo interno com o Estado brasileiro estão fechados. O que nos resta agora é o constrangimento internacional. É denunciar para OEA, ONU, União Europeia, para os sistemas de vigilância de direitos humanos existentes no exterior”, afirma.
O encontro em Kingston é resultado de uma carta enviada em 20 de fevereiro de 2019 ao órgão internacional com a assinatura de 30 organizações da luta antirracista com a denúncia de aspectos do pacote de segurança de Sergio Moro. Entre as propostas destacadas estão a ampliação do banco de dados de DNA de presos no país e a possibilidade de inocentar policiais que assassinarem uma pessoa por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
O documento enviado à CIDH também salienta o avanço do conservadorismo no país, desde o golpe dado na ex-presidenta Dilma Rousseff até a vitória de Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência, além da formação de um legislativo conservador.
Passos
A ação em Kingston não é, contudo, a primeira articulação internacional do movimento negro. Um dos importantes momentos de incidência mundial na história foi a Conferência de Durban, na África do Sul, em 2001, que propiciou uma série de conquistas para os afrobrasileiros.
Esta foi a terceira grande conferência sobre racismo a nível mundial e contou com números expressivos. Participaram do encontro 2,3 mil delegados oficiais de 163 países, sendo 16 Chefes de Estado ou de Governo, 58 Ministros de Relações Exteriores e 44 Ministros de outras pastas, quase 4 mil representantes de organizações não-governamentais e 1,1 mil jornalistas. Durante os encontros, também houve a presença de figuras como Angela Davis, Winnie Mandela e Fidel Castro.
Em Durban, o movimento negro brasileiro conseguiu o compromisso de que era necessário construir políticas reparatórias para os povos vítimas do escravismo. Um dos resultados dessa ação foi o fortalecimento do discurso pela adoção de cotas raciais em serviços públicos e universidades no país.
“Reafirmando os princípios dos direitos iguais e da autodeterminação dos povos e lembrando que todos os indivíduos nascem iguais em dignidade e direitos, enfatizando que a igualdade deve ser protegida como questão de prioridade máxima e reconhecendo o dever dos Estados em tomar medidas rápidas, decisivas e apropriadas visando eliminar todas as formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata”, diz a Declaração e Programa de Ação adotados na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.
Hélio Santos, um dos representantes brasileiros em Durban, acredita ser necessário retomar os compromissos garantidos pela luta antirracista com os Estados nacionais em todo o mundo na época. “Durban hoje deve ser retomada com a pauta da dívida histórica. Há uma dívida econômica e moral. Os estados, sobretudo europeus, devem pagar. Também os estados que foram colonizados como Brasil, Cuba, Venezuela, Colômbia. São valores aplicados em políticas públicas específicas. Sem delírios, são trilhões de dólares”, afirma.
A escolha de Durban ocorreu na Assembleia Geral da ONU, em 1997, como fruto da Resolução 52/111, sobre a “Terceira Década de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial”. A África do Sul foi o país escolhido para receber a conferência em razão da derrota do regime do Apartheid, em 1994, e a vitória para presidência da República de Nelson Mandela.
Durban pode ser considerada como a conferência mais importante sobre o tema na história. As duas anteriores, em 1978 e 1983, ocorreram na sede da ONU, em Genebra (Suiça) e não tiveram a mesma participação de representantes da sociedade civil e Estados. Na primeira, houve uma ausência em bloco de delegações ocidentais e na segunda, uma não participação de Estados Unidos, Israel e África do Sul.
Nilma Bentes, do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Par/CEDENPA, autora do texto “Brasil-Durban-Brasil: um marco da luta contra o racismo”, conta que nas duas primeiras conferências, os negros americanos e sul-africanos conseguiram, respectivamente, vitórias significativas e que Durban era o momento brasileiro.
“Em tese, agora seria a vez de o apartheid brasileiro entrar na ordem do dia”, escreveu.
O encontro, que ocorreu entre 31 de agosto e 8 de setembro, teve preparação mais longa para os brasileiros. O movimento negro construiu uma série de reuniões de preparação, apesar do Estado não ter aceitado sediar um encontro preparatório regional, que ocorreu em Santiago, no Chile.
A preparação da delegação brasileira não foi o mesmo de outros países, como dos EUA. Duas semanas antes do evento, instituições de ensino superior brasileiras e americanas realizaram o encontro “Racismo nos Estados Unidos e no Brasil”, na Universidade de Sacramento, na Califórnia (EUA). A delegação brasileira notou certo desconhecimento da agenda por parte dos afro-americanos.
Balanço da Conferência
A Conferência de Durban, segundo Lindgren Alves, diplomata, membra do Comitê para Eliminação da Discriminação Racial, em Genebra, e autora do artigo “A Conferência de Durban contra o Racismo e a responsabilidade de todos”, obteve as vitórias possíveis diante das dificuldades do cenário internacional da época.
Durban trouxe para as audiências a discussão sobre o conflito entre a Palestina e Israel, o que segundo Nilma Bentes foi um dos fatores complicadores para se chegar a um consenso sobre as questões raciais.
Como resultado, a vontade dos países árabes de igualar o sionismo ao racismo foi rejeitada, como foram em 1992, em audiência da ONU marcada pela participação dos EUA e de Israel. Outro revés, para Nilma Bentes, foi a escravidão não ter sido descrita como um “crime contra a humanidade” como queiram os países africanos, o que abriria uma brecha jurídica internacional para a cobrança de dívidas das nações colonialistas.
A Conferência de Durban, contudo, mesmo com todas limitações, ainda representa o documento em âmbito internacional mais avanço na condenação do colonialismo, escravismo e tráfico de seres humanos, segundo Lindgren Alves.
Países da diáspora africana como Brasil obtiveram conquistas importantes em Durban. A necessidade de políticas reparatórias abriu o campo para o avanço do movimento negro no país. “No nosso caso, o processo inteiro que culminou na Conferência proporcionou, acredito, o maior impulso que a luta contra o racismo antinegro no Brasil já teve até agora”, afirmou Bentes.
Apesar da ausência de lideranças políticas nacionais fora do campo antirracista, ela se recorda que as posições progressistas do Estado brasileiro em Durban impressionaram a delegação. “A diplomacia brasileira parecia tão politicamente correta que, como muitos, fiquei acreditando que o Brasil do Itamarati não é o mesmo do Ministério da Educação, ou o da Fazenda ou mesmo o da Presidência da República”, afirmou.
Nilma também recorda com carinho da Marcha Mundial contra o Racismo, organizada pelo Fórum de ONGs. Apesar de não entender as falas apresentadas durante a manifestação, ficou emocionada. “Que coisa magnífica. Participar de uma marcha junto a milhares de pessoas vindas de todos os países, seguindo o ritmo vibrante e as chamadas dos zulus, shosas, dos ativistas do CNA e de dezenas de lideranças ali presentes, foi um dos momentos mais emocionantes vividos naqueles dias em Durban”.
Os participantes de Kingston
Comitiva do Movimento Negro Brasileiro à 172º Período Extraordinário de Sessões, em Kingston, na Jamaica – Maio de 2019
Anielle Franco – Instituto Marielle Franco – RJ
É mestra em Jornalismo e Inglês pela Universidade de Carolina do Norte nos EUA, graduada em letras pela UERJ. Hoje atua como professora, escritora, palestrante, e é a atual diretora do Instituto Marielle Franco.
Boris Calazans – Uneafro – SP
É Advogado e militante da Uneafro Brasil. Participou da formação de agentes da Década Afrodescendente, na ONU.
Danilo Serejo – CONAQ – MA
Advogado e Quilombola de Alcântara (MA).
Douglas Belchior – Uneafro – SP
É professor, formado em história pela PUC-SP, liderança do movimento negro brasileiro, ajudou a construir a Educafro e é fundador da Uneafro-Brasil. É coordenador de articulação de projetos do Fundo Brasil de Direitos Humanos.
Gizele Martins – Fórum Grita Baixada e Mov. de Favelas – RJ
É jornalista e integrante do movimento de favelas no Rio de Janeiro.
Iêda Leal de Souza – Movimento Negro Unificado (MNU) – GO
É Coordenadora nacional do Movimento Negro Unificado (MNU). Graduada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, é especializada em Métodos e Técnicas de Ensino pela Universidade Salgado de Oliveira.
Lia Manso – Criola – RJ
Militante da ONG de mulheres negras, Criola.
Maria Sylvia – Instituto da Mulher Negra Geledés – SP
É advogada e Presidenta de Instituto da Mulher Negra – Geledés.
Nilma Bentes – Marcha de Mulheres Negras – PA
É uma das fundadoras do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), em Belém, e uma das idealizadoras da Marcha das Mulheres Negras.
Pedro Borges – Alma Preta jornalismo – SP
É jornalista formado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e um dos fundadores do portal de mídia negra Alma Preta. Compõe a Rede de Jornalistas das Periferias.
Rute Fiuza – Mães de Maio – BA
É representante do Movimento Mães de Maio no nordeste do Brasil. Mãe de David Fiuzaque, aos 16 anos, desapareceu após abordagem policial em Salvador em 2014.
Sandra Maria da Silva Andrade – CONAQ – MG
É da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ/MG).
Sandra Pereira Braga – Conaq – GO
Coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ/GO).
Winnie Bueno – Matriz Africana – RS
É Iyalorixá do Ile Aiye Orisha Yemanja, bacharel e mestranda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, integrante da Rede de Ciberativistas Negras – Núcleo Rio Grande do Sul.