A África nunca deixou de enviar pessoas ao Brasil. Recentemente, essa relação aumentou com o crescimento de parcerias econômicas e comerciais e nos últimos sete anos a maioria dos imigrantes são negros e latinos, algo distante do imaginado pelas políticas de embranquecimento pensadas para o país na passagem do século XIX ao XX
Texto / Da Redação
Imagem / Tânia Rego/Agência Brasil
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Em 2017, uma nova lei de imigração, que dita sobre direitos e deveres de estrangeiros no Brasil, foi sancionada. Ela substituiu o Estatuto do Estrangeiro que, com mais de três décadas de vida, era apontado como um pedaço da ditadura militar ainda em vigor. Em dezembro, milhares de estrangeiros foram às ruas de São Paulo-SP exigindo a aplicação da lei e ampliação dos direitos dos imigrantes. Entre eles, havia africanos de diversas nações com cartazes que denunciavam o preconceito racial sofrido em terras brasileiras.
A herança de três séculos e meio de escravidão negra no Brasil permanece, e somada à xenofobia, continua atacando negras e negros que tentam nova vida no país. Em 2015, o pesquisador Marcio Farias defendeu com êxito uma dissertação de Mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com o tema do preconceito sofrido por imigrantes africanos na capital paulista. Sua tese se baseia na ideia de que esses imigrantes continuam sofrendo desconfortos devido não só a seus países de origem, como também devido ao racismo estrutural brasileiro
Dados de 2016 da casa Missão Paz, especializada no atendimento ao imigrante na cidade de São Paulo, mostram uma diversidade de países de origem dos imigrantes africanos na capital. São pelo menos 28 países diferentes, a maioria do Congo e de Angola. No total, a organização tem em conta 64 países diferentes em seus dados. Dos 6.929 imigrantes atendidos pela casa, a maioria é de haitianos e bolivianos.
Angola vive um regime político controlado pelo partido da situação há 39 anos, e a proximidade cultural e linguística, além de parcerias estratégicas, atrai imigrantes da classe média do país. Muitos se formam nas universidades brasileiras e depois retornam a seus países. Já o Congo, vive um contexto de guerra. Muitos dos que vem tentar a vida no país são refugiados. Desde 1996, o que alguns consideram a maior guerra do mundo, matou cerca de 6 milhões de pessoas no país da África Central.
O Brasil é um dos países que tem recebido mais imigrantes devido às mudanças políticas que, no mundo todo, vêm restringindo a imigração e criando barreiras físicas e ideológicas àqueles que tentam vida nova em terras estrangeiras.
Mudança de contexto favorece migração sul-sul
As duas primeiras décadas do século XXI mostraram um aumento da migração de pessoas entre países do chamado sul global, que alcança os países não desenvolvidos e em desenvolvimento. Os países cujas economias têm mais expressão nesse contexto, como é o caso do Brasil, se tornaram focos desse novo movimento. Em parte, essa aproximação acontece devido a um aprofundamento da postura dos países desenvolvidos em fechar suas fronteiras aos imigrantes, seja impondo barreiras de entrada, seja insuflando embaraços políticos e culturais.
A Europa tem muitos exemplos disso. Em 2016, a saída do Reino Unido da União Europeia, sinalizou ao mundo parte das intenções de seus cidadãos e políticos conservadores em se afastarem das políticas de abertura adotadas pelas lideranças da União Europeia, como no caso da Alemanha. Alguns países impuseram barreiras físicas como no caso da Hungria, que ergueu muros em suas fronteiras para conter os refugiados sírios. Em outros, como na França, a bandeira contra a entrada de imigrantes ganhou força, e tornou-se um ativo político de massa personificado no partido Frente Nacional, de Marine Le-Pen, que foi derrotada por Emmanuel Macron no segundo turno das eleições presidenciais, ainda em 2017.
Da mesma forma, fora do velho continente, surge a postura adotada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que se elegeu prometendo enfrentar a entrada de imigrantes e inclusive construir um muro entre seu país e o México.
Mapa mostra o crescimento da imigração para o Brasil (Crédito: Alma Preta)
Ao mesmo tempo que os países desenvolvidos demonstram uma postura menos amigável aos imigrantes, as economias emergentes se tornam alternativas. É o caso da África do Sul, por exemplo, que recebe fluxos migratórios de vários países do próprio continente. È também o caso do Brasil, que na última década aproximou-se de países latino-americanos e africanos, atraindo imigrantes desses continentes, além de se tornar uma alternativa diante da crise financeira de 2008.
Segundo dados da Polícia Federal, entre 2006 e 2016, o Brasil registrou um crescimento de 160% do número de imigrantes. Em 2015, foram cerca de 120 mil novos estrangeiros no país. A pesquisa de Marcio Farias, no entanto, afirma que esse número não é exato, pois há também um contingente de pessoas na ilegalidade. Mas o que passam esses refugiados quando chegam ao país que um dia já se orgulhou em se autoproclamar uma democracia racial?
Pesquisa aponta que há preconceito contra imigrantes africanos em São Paulo-SP
A pesquisa de Marcio Farias, “Relatos de imigrantes africanos na cidade de São Paulo sobre preconceito”, defendida como dissertação de Mestrado na PUC São Paulo (PUC-SP) analisou relatos com entrevistas aos africanos, em 2015. A ideia, segundo ele, era entender o cotidiano e as formas de organização dessas pessoas no Brasil, além de identificar o preconceito sofrido por elas. Com um objeto de pesquisa expandido, Marcio hoje cursa um doutorado na mesma universidade, além de ser educador no Museu Afro Brasil.
As entrevistas realizadas pelo pesquisador demonstram a complexa identidade dos africanos imigrantes. Há, por exemplo, um homem vindo do Mali que afirma ter consciência de ser negro no Brasil, mas que em seu país seria considerado branco, segundo ele próprio. Este mesmo homem afirma que não esperava encontrar racismo no Brasil, pois ele via que os jogadores de futebol do país eram negros e bem sucedidos. Ele também diz sentir que as discriminações sofridas são difíceis de determinar se acontecem por ele ser negro ou africano. Para ele, é diferente o tratamento no Brasil de um negro que vem dos Estados Unidos em relação ao tratamento dispensado a um negro africano.
Marcio Farias durante palestra no Aparelha Luzia, em São Paulo-SP – Crédito: Pedro Borges/Alma Preta
Para Marcio, a relação com esses imigrantes deve ser de forma que não crie uma identidade homogênea, visto que sua própria pesquisa apontou que os imigrantes africanos se organizam em grupos de nacionalidades e etnias. Essa riqueza cultural encarada de frente, segundo ele, pode ser um elemento qualificador do movimento negro brasileiro.
“Eu trabalho com a categoria imigrante muito pouco voltada com a condição jurídica desse sujeito. Ainda que fosse uma questão de análise se ele [o imigrante] era refugiado ou já estava legal, essa não era minha grande questão. Minha grande questão era entender as relações cotidianas, se o preconceito incidia e como isso reverberava em uma forma de se organizar”, aponta.
Segundo Marcio, os imigrantes africanos, de forma geral, são colocados em condições precárias de trabalho, independente de sua formação. Mas há também uma minoria de estudantes participantes de programas de parceria sul-sul, como o PEC-G, que cria condições para desenvolvimento mútuo através de convênios universitários.
Além disso, o preconceito que eles sofrem no seu cotidiano não é só de brancos com negros, mas também pela estereotipação de suas identidades. “Havia conflito da luta anti-racista no Brasil, da forma como ela está organizada e algumas das suas bandeiras, com a chegada dos imigrantes, algumas bandeiras da luta anti-racista no Brasil acabam perpetrando violência simbólica e material para com os imigrantes africanos”.
Por um lado, o retorno de uma presença negra estrangeira em massa se mostra como um perigo para forma como o pensamento brasileiro foi formado. Márcio Farias lembra que a reflexão social no país se construiu em torno do ideal da democracia racial, apontando mais em direção a um país miscigenado do que negro. “O imigrante é justamente aquilo que a ideologia burguesa no Brasil tentou recalcar. O Brasil afirma a sua matriz africana cortando o cordão umbilical. O Brasil é aquilo que os modernistas apontavam, olhar para o futuro. E de repente o imigrante africano está aqui novamente”.
Para ele, portanto, essa maioria de estrangeiros, que contraria o projeto de país forjado no século passado, se mostra como uma ameaça para o pensamento dominante no Brasil. “Tentaram cortar, o Brasil é síntese, na ideia da sociologia, do pensamento social brasileiro de Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre é que o Brasil é síntese. Então de repente chega aqui novamente aqui esse africano com quem o Brasil cortou o cordão umbilical. Está aqui, novamente presentificado. Então para a ideologia que conforma a revolução burguesa no Brasil é um perigo. Mais uma ‘onda negra, medo branco’”.
O pesquisador acredita que essa idealização em relação ao imigrante também estaria presente na forma como os movimentos sociais enxergam os africanos. “Por outro lado, o movimento negro lutou contra a democracia racial criando uma ideia de África. E essa ideia faz sentido diante de uma determinada conjuntura, só que por outro lado ela é um entrave, porque ela diz respeito a uma África que talvez não tenha existido. Mas tudo bem, o problema não é essa África não ter existido, ela consistiu do outro lado do Atlântico. Mas nessa atual conjuntura ela cria entraves.”
Marcio acredita que há um certo estereótipo utilizado para se imaginar o continente africano dentro de um contexto de autoafirmação específico que é frustrado quando confrontado com a realidade. “E o imigrante é o sujeito também que não atende as demandas do movimento negro naquilo que o movimento negro entende nos últimos 30, 40 anos de África. É um imigrante que em sua imensa maioria nunca ouviu falar em orixá, é um imigrante que em sua imensa maioria não estabelece a noção política de unidade africana, por isso se organiza em associações a partir de seus países ou da sua etnia de origem”.
Observadas essas diferenças, acredita o pesquisador, esse sujeito pode acrescentar ao debate racial brasileiro. “O imigrante também é um sujeito que tem muito a contribuir na luta anti-racista no Brasil, justamente por conseguir fazer com que o movimento negro tenha mais instrumentos para entender a questão racial no mundo, mais instrumentos para rever algumas apostas e posturas, mais instrumentos para pensar saídas”.
Do branco ao negro: Nova legislação e busca por direitos iguais
Desde idos do século XIX, a intelectualidade brasileira preparava uma ideia de nação que andava de mãos dadas com o processo de embranquecimento do país. Esse projeto ficou evidente com o fim da escravatura na forma como se deu, jogando os negros brasileiros à própria sorte, em meio a um ambiente de preconceitos e hostilidades. Não à toa, o Brasil do século passado preparou um projeto de eliminação do negro e do índio em 100 anos, apresentado por João Baptista de Lacerda, em 1911, no Congresso Universal das Raças, em Londres. Uma das pedras fundamentais do plano era justamente a imigração. Mas não qualquer imigração, a ideia era criar incentivos para que se pudesse trazer o branco europeu, e com ele, para as noções científicas da época, uma moral e capacidade atreladas à raça branca.
Ao lado dessas ideias, a miscigenação seria incentivada como uma qualidade da nação brasileira, que com essa mistura se embranqueceria e eliminaria os males das raças consideradas inferiores pelos cientistas da época.
O projeto fracassou de forma retumbante, e pouco mais de 100 anos depois, a imigração ao Brasil é predominantemente negra e latina. Segundo números do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), nos últimos sete anos, a entrada de estrangeiros no Brasil tem sido de maioria haitiana e boliviana, seguida de diversos países africanos e sul americanos, como Angola, Senegal e Venezuela.
No início de dezembro milhares de imigrantes foram às ruas em São Paulo-SP para a 11º marcha dos imigrantes. Com o tema “pelo fim da invisibilidade dos imigrantes”, a presença de latino-americanos e africanos foi marcante. Cerca de quatro mil pessoas foram às ruas para apontar as dificuldades de ser imigrante no Brasil. Da parte dos africanos, o preconceito racial fora um dos temas do protesto.
Ato em defesa dos imigrantes (Foto: Ana Carolina Brandão/Soy Latino)
O manifesto lido pelos participantes do protesto durante a marcha lembra o endurecimento das leis migratórias em vários lugares do mundo, e a importância do papel desempenhado por países como o Brasil em um contexto de fortalecimento da migração Sul-Sul. Uma das reclamações dos imigrantes é o direito ao voto, vetado para estrangeiros no Brasil.
Até maio de 2017 o Estatuto do Estrangeiro no Brasil seguia diretrizes formuladas ainda na ditadura militar. Nos termos deste estatuto, a visão principal era do estrangeiro como uma ameaça à segurança nacional. A revogação do estatuto, considerado um “entulho da ditadura militar” é uma proposta do senador Aloysio Nunes, atual Ministro das Relações Exteriores do Brasil. A luta pela mudança na legislação é, no entanto, fruto da pressão de organizações da sociedade civil, que há anos exigem a revogação do estatuto em prol de uma legislação atualizada. À época de sua aprovação, a lei nº 13.445/2017 foi comemorada, e apontada como vanguarda em relação ao tratamento com o imigrante.
O texto da nova lei aponta os direitos e deveres de visitantes e imigrantes, além de regular a entrada no país, estabelecer princípios e diretrizes para políticas em relação ao imigrante. Em relação à legislação anterior a nova lei se distingue por garantir ao imigrante condição igualdade entre os brasileiros, inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, além do acesso garantido a serviços públicos como saúde e educação.
Além disso, a lei impede que imigrantes sejam presos por estarem em situação irregular, eliminando sua criminalização neste caso. A medida se estende à anistia aos imigrantes em situação irregular no país.
Da mesma forma o texto passa a assegurar o direito ao acesso à documentação para entrada no mercado de trabalho nacional com direito à previdência social, exercício de cargos, empregos e funções públicas de acordo com os editais. Apenas os editais com exigência de brasileiros natos não respeitam essa regra.
Outra mudança é a diminuição da burocracia para entrada no país com visto humanitário. A nova legislação facilita e amplia o acesso a esse tipo de documento, que antes era aplicado de forma provisória e apenas a sírios e haitianos, deixando outros estrangeiros de fora. A atualização, portanto, garante que pessoas em situação de risco possam entrar no país de forma segura e que possam solicitar refúgio ou proteção humanitária.
Um dos pontos que reforçam a posição do Brasil como opção ao imigrante é o claro repúdio à xenofobia e ao racismo como princípio da política migratória brasileira, garantindo também o direito do imigrante de se manifestar e se sindicalizar.
Aos poucos, afunda ainda mais o projeto político de Lacerda. Com uma intensa imigração não branca no país, resta reconhecer na sociedade brasileira o espaço de dignidade dessas vozes. Episódios de racismo, xenofobia e violência contra essas populações se sucedem, o que preocupa. Apesar de uma aparente inversão do projeto nacional, o contexto político mundial, cerca de um século depois de sua formulação, é de recrudescimento do racismo, o que deve deixar o Brasil em alerta.