Há dez anos, no final de março de 2013, o grupo de oposição Séléka tomou o poder em Bangui, capital da República Centro-Africana (RCA), marcando o início da terceira guerra civil do país.
Desde a sua independência da França em 1960, a nação africana sofre com constantes instabilidades políticas e grande número de refugiados e deslocados internos. Mesmo assim, a crise humanitária é uma das dez menos reportadas no mundo, segundo a ACNUR (Agência da ONU para Refugiados).
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De acordo com a etíope e analista de conflitos Danait Tafere, o conflito na região continua a acontecer porque os países africanos ainda estão sob o domínio colonial.
“A República Centro-Africana é um dos países mais naturalmente abundantes da África com diamantes, ouro e urânio. Consequentemente, é também a zona de conflito mais pobre do mundo. Antes da independência, os franceses já haviam arrendado quantidades consideráveis de terra a empresas privadas”, explicou.
Segundo Danait Tafere, os conflitos não reportados mantêm desigualdades extremas . “Só a indústria diamantífera é de 10 bilhões de dólares. A RCA recebe alguns milhões de dólares em ajuda, enquanto bilhões de matérias-primas estão sendo retiradas sem nenhuma participação nos lucros para os locais ou condições de vida saudáveis”, disse a etíope.
O jornalista Alexandre dos Santos, professor de África no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), comenta também que pouco se fala da crise na RCA, porque é um país que desperta pouco interesse por parcerias comerciais.
“O antigo ocupante colonial promoveu pouquíssimo investimento em infraestruturas no que viria a ser o país. Desde que se tornou independente, em 1960, vem sofrendo com elites corruptas e egoístas que preferem se enriquecer a investir em políticas de coesão nacional e bem-estar”, afirmou.
Segundo o professor de África, o resultado disso são mais de seis décadas de insegurança e conflitos civis que levam à militarização dos diversos grupos étnicos para garantir um mínimo de estabilidade, respeito às suas tradições, representação política e desenvolvimento.
“As populações em diversas regiões se armaram para protegerem suas terras e suas áreas de outras milícias armadas, porque o governo se mostrou incapaz de fazer isso. Ao fazerem isso, essas mesmas populações atraem mercenários e outros tipos de bandidos que acabam controlando essas hierarquias militarizadas e desvirtuando o propósito e a ação original desses grupos”, complementou.
Campo de refugiados em PK3, Bria, RCA | Crédito: Freeman Sipila (VOA)/ Wikimedia Commons
De acordo com um artigo da ‘Série Conflitos Internacionais’, editada pelo Observatório de Conflitos Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a relação com a França, inclusive, é um dos fatores que causaram inconstância política no país.
“Apesar de formalmente cessada a relação colonial, os franceses não deixaram de interferir nas decisões políticas do país, não apenas ocupando cargos governamentais, como também por meio de empresas mineradoras e petrolíferas, e intervenções militares”, afirma o artigo “O conflito na República Centro-Africana: violência pós-eleições de 2020”, do Observatório de Conflitos Internacionais.
De acordo com a ACNUR, a atividade das milícias e a violência generalizada dificultam o acesso humanitário. Segundo as últimas estatísticas do órgão, há atualmente mais de 482.816 deslocados internos e mais de 740.212 refugiados da República Centro-Africana, que vão para países como a República Democrática do Congo, Camarões, Chade e Congo.
Segundo dados do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), 2,9 milhões buscam ajuda humanitária e 79% da população vive abaixo do limiar da pobreza. Ainda segundo a ONU, três em cada cinco crianças vivem com famílias de acolhimento, a grande maioria extremamente pobres.
Histórico dos conflitos
A República Centro-Africana está localizada na África Central e conta com uma população de 5,46 milhões de pessoas. É limitado ao norte pelo Chade, a leste pelo Sudão do Sul, ao sul pela República Democrática do Congo (ex-Zaire) e a República do Congo, e a oeste por Camarões.
Mapa da República Centro-Africana | Crédito: Trinaliv/ Wikimedia Commons
De acordo com o artigo do Observatório de Conflitos Internacionais – escrito por Maria Carolina Cisotto Bozzo, Ana Luiza de Campos Burssed e Maurício Vidoto Farinazzo Filho -, os sucedidos golpes de Estado no país aconteceram nos primeiros anos da história independente da RCA.
Em 1960, David Dacko, à época Ministro do Interior, tomou opoder e tornou-se presidente. Pouco tempo depois, o coronel Jean-Bédel Bokassa depôs Dacko em novo golpe de Estado, em 1965.
“Após a França retirar seu apoio ao governo de Bokassa, Dacko retornou ao cargo de líder do país, com as eleições de 1981. Logo em seguida, foi aplicado um novo golpe pelo General André Kolingba, cujo governo promoveu violenta polarização étnica no país”, diz o artigo.
A partir de então, sobretudo nos anos 1980, ocorreram alianças entre insurgentes centro-africanos e chadianos, tendo em conta a proximidade étnica, cultural, religiosa e geográfica. A aliança levaria à formação do grupo Séléka, de vertente islâmica.
Segundo o artigo, o ápice do conflito ocorreu em 2013, quando o grupo Séléka foi responsável pelo golpe que depôs o General François Bozizé[. Seu governo foi marcado por corrupção, nepotismo e conflitos entre grupos armados.
“A falta de apoio ao próprio líder [Michel Djotodia], culminou na posterior dissolução do Séléka, e seus integrantes passaram a agir por conta própria, saqueando e atingindo grupos majoritariamente cristãos da RCA, que, por sua vez, formaram uma aliança denominada Anti-Balaka, para combaterem os ataques”, explica o artigo.
Diante dos sucessivos conflitos, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) chegou a instalar a Missão das Nações Unidas na República Centro-Africana (MINURCA), em 1998, depois aprovou a Missão Internacional de Apoio à República Centro-Africana (MISCA) em 2013.
Pouco tempo depois, em 2014, a MISCA foi substituída pela aprovação da instalação da Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA).
O objetivo da missão é apaziguar os conflitos, assegurar eleições e o Estado de Direito, garantir a proteção de civis, a integridade territorial, o livre acesso de ajuda humanitária e o desarmamento de milícias armadas.
Entretanto as missões, juntamente com a assinatura de acordos de paz ao longo dos anos, ainda são insuficientes, pois o ataque a civis permanece e há inclusive denúncias de violações a direitos humanos, como violência sexual contra mulheres, envolvendo militares da ONU.
Rebelde no norte da República Centro-Africana | Crédito: hdptcar/ Wikimedia Commons
Ainda segundo a Agência da ONU para Refugiados, em dezembro de 2013, centenas de milhares de pessoas foram forçadas a deixar suas casas à medida que a violência se espalhava na RCA. Havia mortes de civis, saques a casas e aldeias queimadas.
“Perdi tudo: minha casa, minha identidade. Meus filhos dormem no chão”, comentou na ocasião a viúva Zainaba, mãe de quatro pessoas deslocadas em Bangui, capital do país.
No final de 2016, começou a haver uma transição gradual e estabilidade no país, com refugiados e deslocados voltando a suas casas. Mas não demorou para a insegurança voltar à região.
“Muitas pessoas não têm assistência básica, uma vez que esta é uma das situações de emergência menos financiadas em todo o mundo. Alimentos, saúde, abrigo, água e saneamento são preocupações primárias para os refugiados que vivem fora dos locais formais e para as comunidades que os abrigam”, ressalta publicação da ACNUR.
Escalada de violência após as eleições de 2020
De acordo com o artigo de Maria Carolina Cisotto Bozzo, Ana Luiza de Campos Burssed e Maurício Vidoto Farinazzo Filho, as últimas eleições, ocorridas em 2020, reacenderam os conflitos no país e fizeram com que a violência aumentasse. Isso fez com que a nação passasse a enfrentar uma das maiores crises humanitárias do mundo, com cerca de 13% de sua população correndo risco de morrer de fome.
“A principal causa do conflito foi a impossibilidade do ex-presidente François Bozizé de concorrer. Bozizé tentou se candidatar à eleição, porém foi impedido pelo Tribunal Constitucional, que usou como argumentos as sanções e o mandado de prisão emitidos pela ONU contra ele. Isso fez com que grupos rebeldes formassem uma coalizão pró-Bozizé e protestassem em várias partes do país, atacando, inclusive, a capital, Bangui, no começo de 2021”, explicam os autores.
Mesmo com protestos e tensões no período eleitoral, Faustin Archange Touadéra foi reeleito, com apenas um terço dos eleitores tendo comparecido às urnas. Muitos foram impedidos de chegar ao local de votação e o andamento do pleito também foi impossibilitado em várias cidades.
Faustin Archange Touadéra | Crédito: The Kremlin, Moscow/ Wikimedia Commons
Segundo publicação da organização Médico Sem Fronteiras, no início de 2022, a área de Ippy, no centro da RCA, vivenciou novos confrontos entre tropas do governo e grupos de oposição. Moradores de vilarejos rurais precisaram de acolhimento em acampamentos de pessoas deslocadas internamente.
Olga e Jean-Claude viajaram quase 140 quilômetros com seus seis filhos para chegar ao acampamento para deslocados internos de Bogouyo. “Caminhamos por uma semana, com idosos, crianças e pessoas doentes. Alguns morreram ao longo do caminho, e fomos forçados a abandonar seus corpos no mato sem sermos capazes de enterrá-los. As crianças viram tudo. Como eles esquecerão essas imagens?”, disse Olga.
O jornalista Alexandre dos Santos explica que o governo do país, as instituições internacionais e os aliados ocidentais já perderam a credibilidade como mediadores do conflito para solucionar o problema. “O governo é visto como fraco e corrupto. A França precisou retirar seus últimos soldados em dezembro de 2022, porque eles estavam sendo hostilizados pela população”, afirmou.
De acordo com a analista de conflitos Danait Tafere, atualmente há uma forte presença e aproximação da Rússia no país, que tem a proposta de fortalecer o governo e acabar com os conflitos por meio da presença do grupo paramilitar Wagner. Já o grupo opositor liderado pelo general Bozizé é apoiado pelos franceses.
Casa queimada em Alindao, República Centro-Africana | Crédito: Felix Yepassis-Zembrou (VOA)/ Wikimedia Commons
“Alguns habitantes locais sentem que podem ter melhores resultados com a Rússia do que tiveram com a França. Outros dizem que não viram nenhuma mudança que tenha contribuído positivamente para suas vidas”, explicou.
Danait complementa que se vê essas mesmas tendências em várias outras zonas de conflito. “A influência dos EUA no engajamento da Ucrânia para aderir à OTAN realmente perturbou a Rússia e agora eles estão construindo mais e mais relacionamentos na África para assegurar alianças através de votos na ONU”, disse.
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