Número de profissionais negros se sobressai na mostra competitiva de curtas, uma das principais do evento
Texto: Amanda Lira e Gabriel Araújo / Imagem: Leo Lara / Universo Produção
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Uma reportagem do Projeto Enquadro
Dentre as pessoas que assinam a direção dos 113 filmes programados para a 23ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, um dos festivais de cinema mais importantes do país, 34 se autodeclaram negras. Embora esse seja ainda um número proporcionalmente baixo em termos de representação e representatividade, filmes dirigidos por pessoas negras conquistaram presença nas mostras de maior visibilidade do festival.
“Há uma maior quantidade e importância da presença, especialmente na mostra competitiva – mostra que premia, que dá visibilidade e que promove discussões com a presença dos realizadores”, afirma Tatiana Carvalho Costa. “É uma vitrine para os realizadores, entendendo que a Mostra de Tiradentes atrai críticos, jornalistas e pesquisadores de todo o país”.
Na Foco, mostra competitiva de curtas a que Tatiana se refere, negros e negras são maioria: eles assinam a direção de sete dos dez filmes em exibição num recorte que abrange as regiões sudeste e nordeste do país. Dentre os curtas, temos como exemplo “Calmaria”, do diretor belorizontino Catapreta; “Egun”, filme do Rio de Janeiro realizado por Yuri Costa; e “Perifecu”, que tem, entre os membros de sua realização coletiva, uma travesti e uma trans não-binária.
“Esses filmes, na verdade, são um tipo de olhar para a sociedade. São obras que vão tensionar o que a sociedade vê como cânone a partir de pessoas que têm a consciência de serem racializadas e da hierarquia social”, explica Tatiana, ressaltando as diversas propostas narrativas e estéticas colocadas pelo cinema negro em exibição. “É possível tratar isso de maneiras diversas e encontramos na Mostra [de cinema de Tiradentes] propostas estéticas muito interessantes e que passam por vários caminhos”.
Tatiana Carvalho Costa no seminário com os curadores da Mostra. (Foto: Netun Lima/Universo Produção)
Ao todo, a Mostra de Cinema de Tiradentes possui cinco curadores. A seleção de longas-metragens fica por conta de Francis Vogner dos Reis, que também é coordenador curatorial do evento, e Lila Foster. Outros três profissionais selecionam os curtas: Pedro Maciel, Camila Vieira e a própria Tatiana, que ocupa o posto pela segunda vez e é a única pessoa negra da equipe.
Longas-metragens
Os dados estatísticos da 23ª Mostra são diferentes quando se analisa a seleção de longas, formato ainda pouco acessível aos realizadores negros. Considerando os diretores dos 23 filmes em exibição – excluindo os longas da Mostra Homenagem, que, nesse ano, valoriza a trajetória de Antonio e Camila Pitanga, pai e filha, apenas sete se auto declaram negros ou negras.
Na Aurora, importante mostra que prioriza cineastas com até três filmes no currículo, dentre as oito obras selecionadas há apenas um longa dirigido por cineasta negro: “Cabeça de Nêgo”, filme do cearense Déo Cardoso. A história, que será exibida na próxima sexta-feira (31) acompanha o movimento de uma ocupação escolar de certo modo inspirada por um livro dos Panteras Negras.
A 23ª edição da Mostra é a segunda consecutiva a disponibilizar aos inscritos um questionário de autodeclaração de gênero e raça. Embora recente, essa iniciativa tende a, ao longo dos anos, propiciar uma análise comparativa da evolução do evento em termos de representatividade. Para isso, no entanto, há lacunas que precisam ser solucionadas, como o alto índice de abstenção nas respostas.
“É evidente que toda pesquisa quantitativa tem sua limitação, mas esse questionário ajuda a enxergar coisas e a traçar caminhos para se fazer diagnósticos”, entende Tatiana Carvalho Costa.
“A imaginação como potência”
Após trabalhar temáticas como o “chamado realista”, em 2018, e a necessidade de “corpos adiante”, em 2019, a Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2020, escolheu o tema “A imaginação como potência” para guiar a seleção e organização dos filmes inscritos.
“A temática busca entender o que esses filmes estão propondo para além da ‘resistência reativa’ à realidade política, como estão vendo, reorganizando e propondo outros mundos”, apresenta o coordenador curatorial do evento, Francis Vogner dos Reis. “A imaginação não vai só olhar os fatos do aqui e do agora, mas vai tentar fazer o olhar e o coração chegarem um pouco mais longe. Como chegamos aqui e para onde queremos ir? São duas perguntas em uma, inseparáveis. Um olho crítico e outro imaginativo”, argumenta.
Nessa perspectiva, filmes dirigidos por pessoas negras têm muito a apresentar para uma arte que ainda é elitista e demarcadamente branca. “É resultado não só de políticas públicas que foram fundamentais na última década, mas de uma mobilização intensa de militantes e cineastas negros e negras que demandavam e demandam não só o aumento, a integração e a visibilidade desses profissionais, mas também a urgência em construir novas formas e reestabelecer paradigmas acerca da ancestralidade, da história e da consciência da história”, pensa Francis.
Parte do time de curadores: da direita para esquerda, Francis Vogner dos Reis, Tatiana Carvalho Costa e Camila Vieira. (Foto: Netun Lima/Universo Produção)
“A verdade é que nunca houve no cinema brasileiro, num quadro mais geral, tamanha diversidade”, concorda Tatiana Carvalho Costa. “Estamos assistindo ao início da presença de pessoas negras e indígenas com quantidade e regularidade no cinema”, ela afirma, destacando o modo como essas produções representam bem o gesto de “fabulação” desse cinema contemporâneo, que aponta novos traçados para os caminhos do passado e evidencia proposições para a existência de um futuro menos desigual.
Embora diversos filmes presentes na Mostra conversem com a temática principal do evento em maior ou menor grau, os cinco curadores organizaram uma submostra disso que Tatiana chama de “cosmopoéticas não hegemônicas”, demarcando a pluralidade dos modos de ver o mundo.
Nela, frequentadores poderão conferir, entre outros, “Cavalo”, longa experimental de Alagoas dirigido por Rafhael Barbosa e Werner Salles; “Pattaki”, instigante documentário de Everlane Moraes, filmado em Cuba; e o afetuoso “Um dia com Jerusa”, longa da baiana Viviane Ferreira que resgata uma das damas do teatro brasileiro, a maravilhosa Lea Garcia.
A Mostra de Cinema de Tiradentes tem programação gratuita e será realizada até 1º de fevereiro. Ao todo, serão realizadas mais de 50 sessões de filmes produzidos em 17 estados.