Vítimas de assédio moral, perseguição e suicídio. Policiais e agentes de segurança estão expostos a violações de direitos dentro do espaço de trabalho, segundo relatos ouvidos pela Alma Preta Jornalismo.
Passinho da Silva, policial militar do Pará, foi reformado do cargo em 2021, uma espécie de aposentadoria, depois do que ele sinaliza ser um processo de perseguição política, quando passou a exigir direitos trabalhistas para os agentes de segurança pública. Ele conta que passou a ser perseguido pela corporação e Ministério Público até por conta do equipamento utilizado.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
“A gente começava a responder por qualquer idiotice. Ninguém mais a essa altura do campeonato era punido por contorno sujo, principalmente porque a gente trabalhava na área de periferia, a gente pisava na lama. Começaram a cobrar que o nosso uniforme estava muito velho, mas a gente tinha o direito de receber o auxílio fardamento. As coisas se regularizaram, mas ainda assim tive que gastar quase R$ 1 mil para deixar tudo certo”, conta.
Agentes de segurança que incomodarem superiores também podem ser transferidos para outras delegacias, distritos policiais ou batalhões. A distância é um problema, significa mais horas de percurso, de um trajeto que costuma ser um desafio para a categoria, que não se sente confortável em circular por transporte público, fardada e armada.
O maior deslocamento também representa menos tempo em casa, com os familiares, ou mesmo amigos, isso para um grupo com círculo social reduzido, com desconfiança de frequentar ambientes públicos e espaços de lazer, como bares, shows e festas. A troca de turno é outra possibilidade de dificultar a vida cotidiana de um agente de segurança, que pode ter seus vínculos afetivos enfraquecidos, com a chance de ver menos os familiares.
O militarismo e a hierarquia existente dentro da polícia constroem um ambiente difícil para se denunciar e propício para perseguição. Órgãos como a Ouvidoria das Polícias, em determinados casos, têm dificuldade para receber informações de violências sofridas por agentes de segurança.
“As dificuldades são imensas em denunciar em razão das eventuais perseguições que essas pessoas podem passar”, diz Claudinho Silva, ouvidor das Polícias de São Paulo.
Assédio moral e as diferentes camadas
“As violações que a gente tem maior conhecimento, em ambas corporações, estão muito vinculadas ao assédio moral”, conta Claudinho Silva. O ouvidor acredita que a situação seja um pouco mais delicada na Polícia Militar por conta da hierarquia militarizada.
Se em muitos ambientes de trabalho há a possibilidade para a chefia de exercer poder e humilhar os colegas, na polícia existe a sensação de uma liberdade para destilar preconceito para os colegas. “A polícia seria exatamente para coibir esse tipo de escrotidão”, relata um agente de segurança, de forma anônima.
Policiais negros, LGBTQIA+ e mulheres, por exemplo, sofrem pressões particulares por parte dos superiores dentro da corporação. Um exemplo ocorreu com o agente de segurança Leandro Prior. Ex-policial militar de São Paulo, ele pediu demissão depois de ser vítima de uma série de violações.
Prior passou a ser perseguido na corporação, quando em junho de 2018 viralizou uma imagem nas redes sociais em que ele beija, usando farda, outro homem. O ex-PM sofreu ataques e pressões a ponto de pedir afastamento no mesmo período e depois tentar suicídio.
“Eu não aguentei, peguei minha arma, coloquei na boca e apertei duas vezes. A arma falhou simplesmente. Eu já passei por situações assim, ápices de quase tirar a minha vida ou do meu comandante”, conta.
O beijo público no namorado gerou posicionamentos contrários a Prior, como o do então governador de São Paulo, Márcio França, que ressaltou a importância da farda ser “respeitada”. O Sargento da Rota Renato Nobile chegou a fazer uma publicação nas redes sociais com o desejo de morte a “pedradas” do policial homossexual. “Não houve um posicionamento. A gente tem ali um policial militar da elite, digamos assim, ameaçando outro policial militar. A polícia militar não falou nada, uma nota só”.
Durante os cursos de formação, as mulheres têm a capacidade questionada nas aulas de tiro. Uma delas chegou a ser questionada sobre como havia entrado na polícia, devido às dificuldades da aluna, com insinuações de que ela poderia ter relações sexuais com algum chefe.
Agentes de segurança negros também têm a capacidade intelectual questionada durante os cursos de formação. Eles costumam ser mais questionados pelos professores, terem a capacidade intelectual mais “testada”.
Adriana Bobillo, psicóloga que atua com profissionais de segurança pública, conta que as polícias foram “criadas com bases machistas, antigamente dominadas por homens e demorando muitos anos até que as mulheres pudessem ter o direito de ingressar na corporação, ainda hoje há resquícios dessa cultura. Não se vê um cenário diferente para esta tratativa envolvendo a questão de gênero e o racismo, ocorrendo os mesmos preconceitos vivenciados pelas mulheres, com as pessoas negras e lgbtqia+, uma vez que a supremacia masculina branca e hétero ocorre de forma simbólica, ou seja, alimentada culturalmente, seja proposital ou não intencional”.
O pedido de ajuda de policiais
Mesmo diante de tantas situações, policiais costumam enfrentar uma série de barreiras para o atendimento psicológico. O imaginário construído de herói ou de uma pessoa resistente, alimentada por programas policialescos e políticos de direita, aumentam as dificuldades para os agentes de segurança pedir ajuda. Os profissionais que recorrem ao atendimento psicológico são vistos como “loucos” e são alvos de brincadeira por parte dos colegas.
“Os comportamentos que contribuem para naturalizar e manter a ideia de que os profissionais de segurança devem ser ‘fortes’ todo o tempo, de que sintomas de depressão ou outros são ‘frescura’ etc, dificultam o apoio à saúde mental e tornam graves questões que poderiam se resolver no atendimento preventivo”, afirma a psicóloga.
Adriana avalia como fundamental a mudança cultural e estrutural dentro das instituições de segurança pública.
Enquanto isso não ocorre, os policiais enfrentam uma dificuldade para o atendimento. Leandro Prior se sentiu inseguro de utilizar o serviço oferecido pela corporação, por não ter a garantia de que o profissional manteria o sigilo e não repassaria as informações para a chefia. Por isso, procurou ajuda externa, o que também gerou desencontro com os médicos da própria instituição.
“O psiquiatra dá um atestado de 15 dias, a polícia vem e dá dois, para que eu pudesse, forçadamente, voltar ao trabalho. Ou eu tenho um laudo psiquiatra falando que não estou apto, e aí o profissional da polícia vai lá e dá como apto para voltar aos serviços de modo forçado”, explica.
Passinho chegou a ser atendido pelo setor de psiquiatria da polícia do Pará e lá foi tratado como “se não quisesse trabalhar”. O agente de segurança pública relata ter sido recebido da “pior maneira possível” e todo o processo complicou seu quadro de saúde. “A ansiedade e a insônia eu adquiri no trabalho, porque eu não era assim. Eu era calado, tinha dificuldade de fazer amizade, mas eu não gritava com ninguém”, recorda.
A remuneração das policiais também não contribuiu para esse acesso. No estado de São Paulo, por exemplo, o policial que for afastado para ter um tratamento psicológico tem um corte significativo na folha salarial. Com uma média salarial que varia entre R$ 3 mil e R$ 6 mil no Brasil, policiais afirmam que o valor fica aquém para um profissional que exige cuidados particulares, como o uso de transporte individual por conta do receio de utilizarem o transporte público. Com possíveis cortes de benefícios, a situação financeira se complica.
Um afastamento implica na impossibilidade de participar do DEJEM, um serviço extra oficial, ou seja, um “bico” institucionalizado pelo governo do estado. Existente desde 2013, o DEJEM é uma fonte de receita importante para os agentes de segurança pública. Nas palavras de um policial, “está oficialmente em serviço, faz praticamente o mesmo serviço como se estivesse trabalhando”.
Organizado a partir da Lei Complementar nº 1.227, de 19 de dezembro de 2013, o DEJEM “corresponde a 8 (oito) horas contínuas de atividades de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, da área de saúde, de bombeiros e de defesa civil, fora da jornada normal de trabalho policial, limitada à execução de, no máximo, 10 (dez) diárias mensais”. Para isso, contudo, o “policial militar não poderá ser convocado para desenvolver as atividades a que se refere esta lei complementar nas hipóteses de afastamentos, exceto quando em gozo de licença-prêmio”.
De maneira prática, o afastamento do policial por motivos de saúde faz com que ele perca o porte de arma, o que interfere no bico informal. Sem o trabalho informal, benefícios e até mesmo serviços extras formalizados, a pausa para se cuidar pode significar uma perda significativa de receita para o agente de segurança.
Policiais, então, evitam parar, mesmo doentes. Uma das somas desses fatores são os altos índices de suicídio dentro da corporação. Pesquisa realizada pela Ouvidoria das Polícias de São Paulo, em parceria do Conselho Federal e o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, apresentou a gravidade dos dados de violência contra policiais.
Os números sinalizam que a taxa média de suicídio no Brasil foi de 5.8 para cada grupo de 100 mil habitantes, em 2018, contra um indicador de 23.9 para cada 100 mil entre os policiais. Naquele período, foram 36 policiais na ativa vítimas do suicídio.
O que fazer?
Uma das maneiras para solucionar o problema do assédio moral sofrido pelos agentes de segurança na concepção de Leandro Prior é o fim do regulamento disciplinar da polícia militar. Para ele, é necessário que seja criado outro, com respeito aos direitos humanos do servidor público estadual. Os superiores hierárquicos se utilizam do regulamento para perseguir pessoas consideradas como ameaças.
“Se você comete um ato indisciplinar dentro da Polícia Militar, você tem o direito de ter ali uma pena prescrita. Mas fica ao critério do comandante. Uma situação comum é o comandante dar para os amigos um dia de prisão ou simplesmente uma advertência, mas para quem ele odeia, dá 20 dias. É assim que funciona, porque é discricionário”, detalha.
A violação cotidiana dentro dos espaços de trabalho, o contexto de violência da sociedade e a cobrança por repressão fazem parte dos agentes de segurança colocaram as frustrações nas ruas, nas abordagens e no trato com os cidadãos.
Claudinho Silva, ouvidor das polícias de SP, acredita que esses mecanismos de escuta podem melhorar as trocas entre os agentes de segurança e os cidadãos. “É especialmente no quesito lidar com as pessoas, na relação de gerenciamento de pessoas”.
Para eles, a resolução do problema é complexa. O aumento do salário dos policiais, para que não fosse necessário o bico e melhorar as condições de vida, preenchimento de quadros e a diminuição da defasagem na categoria.
Os agentes de segurança pública acham necessário existir uma formação completa sobre direitos humanos para a categoria, com professores capacitados. O que é relatado é que, em alguns casos, os professores não levam a sério o assunto e as aulas inclusive são alvos de deboche.
A maioria dos profissionais ouvidos pela reportagem tem prazer pelo ideal da profissão, mas tem uma situação de repúdio à estrutura da instituição. “Eu estou brigando por dignidade para ficar. Eu não quero sair. Eu odeio, odeio esse pessoal. Mas eu amo a minha missão”, conta o policial militar Passinho.
O que dizem os gestores?
O Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmou que destinou cerca de R$ 100 milhões para o cuidado com a saúde de policiais e que o tema tem sido debatido em encontros e eventos organizados pela pasta.
O Ministério ainda ressaltou que “o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) prevê integração dos órgãos de segurança e inteligência; padronização de informações, estatísticas e procedimentos; entre diversas outras medidas visando a integração das forças de segurança federais, estaduais, distritais e municipais. Todavia, o MJSP age como fomentador de políticas públicas, não podendo, contudo, ultrapassar e sobrepor a competência dos entes federados e municípios”.
O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania sinalizou que há “uma compreensão de que garantir melhores condições de trabalho para os agentes das forças de segurança pública é uma ferramenta importante, entre outras, no combate à letalidade, pelos policiais e dos policiais”. A pasta também acredita que os agentes de segurança compõe uma classe de trabalhadores e deve ter os direitos profissionais assegurados.
O órgão tem adotado medidas para fortalecer as ouvidorias e assim estimular os agentes a utilizarem os canais e compartilharem problemas no ambiente de trabalho referente aos direitos humanos. “Além disso, o MDHC tem se debruçado sobre a formação em direitos humanos desses agentes, de modo a observar não apenas o ensino teórico dos conteúdos, mas também sua aplicabilidade, seu aspecto prático, nos protocolos operacionais e nas atividades cotidianas”.
De exemplo prática, o MDHC contou que tem construído um convênio com o Núcleo Convivências do Rio de Janeiro, “que tem se proposto a oferecer atendimento psicológico a policiais rodoviários federais e policiais federais”.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) afirmou que as polícias “contam com um sistema de saúde mental que é referência dentro e fora do país, dentre as forças de segurança”. A pasta destacou que as policiais civil e militar contam com o acesso à rede do Centro de Atenção Psicológica e Social (CAPS), com 41 Núcleo de Apoio Psicosocial (NAPS), com 120 psicólogos para o atendimento distribuídos pelo estado. De acordo com a SSP, o “sistema é capaz de oferecer apoio a 100% do efetivo e pode ser acionado pelo próprio policial, seu comandante ou superior hierárquico ou, ainda, por um colega de trabalho”.
A SSP ainda informa que organiza palestras e campanhas para prevenir o suicídio e aborda a temática dos Direitos Humanos na formação dos agentes de segurança. A Polícia Militar informou em nota “que de acordo com o decreto Lei nº260 de 29 de maio de 19710, o policial militar agregado por ter sido considerado inválido ou fisicamente incapaz para o serviço policial militar receberá vencimentos e vantagens integrais do posto e graduação”.
Armando Brasil, 2ª Promotor de Justiça Militar e representante do Ministério Público do Pará, afirmou que o órgão “fiscaliza periodicamente as unidades da Polícia Militar em todo país” e que a instituição fez as “recomendações à Polícia Militar do Pará para instituir apoio psicológico a todos os PMs e pelo que consta já foram feitos vários concursos para admissão de Psicólogo nos quadros de saúde da instituição”. Ele preferiu não se posicionar sobre o caso particular de Passinho da Silva.
A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup-PA) não se posicionou até a publicação desta reportagem.