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Bárbara Carine: a professora que descolonializa a história afro-brasileira

16 de julho de 2020

“A minha maior luta é essa: a ressignificação e construção de uma nova subjetividade para as crianças negras. Tudo que faltou para mim, eu quero oferecer para essas crianças. Esse é meu propósito de vida”

Texto: Beatriz Mazzei | Edição: Nataly Simões | Imagem: Dillasete

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Na tradição africana existe um conceito que resume a trajetória da professora, doutora, mãe e militante Bárbara Carine Soares, de 33 anos: o Sankofa. Inserindo em um conjunto de símbolos chamado Adinkra, o Sankofa é representado por um pássaro com a cabeça voltada para trás. Sanfoka simboliza o resgate do passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Para Bárbara Carine, olhar para trás e enxergar a potência de sua ancestralidade foi fundamental para uma nova construção individual e coletiva.

Filha de Teresinha, nascida no Quilombo Mocambo dos Negros, Bárbara teve sua infância e criação na periferia Fazenda Grande do Retiro, em Salvador, na Bahia, ao lado da mãe e dos irmãos. O pai foi uma figura ausente, que tinha outra família. “A minha mãe viveu praticamente uma realidade de mãe solo. Na parte do meu pai, tenho cerca de 11 irmãos, algo assim, eu nunca sei o número direito”, conta.

Em sua trajetória escolar, a professora estudou em uma escola pública na Fazenda Grande do Retiro até entrar para o CEFET (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia), no bairro do Barbalho. A distância de mais de quatro quilômetros entre sua casa e sua escola eram muitas vezes percorridas a pé.

No fim da trajetória escolar, permeada por uma realidade que valoriza o trabalho em detrimento da vida acadêmica por conta da necessidade de existência, Bárbara conversava com as amigas do colégio e via que grande parte delas estavam convencidas a seguir algum emprego longe das universidades, porém, não era aquilo o que ela esperava para a própria vida, então decidiu prestar vestibular na UFBA (Universidade Federal da Bahia). “Ninguém acreditava que eu conseguiria. Até mesmo na igreja me disseram que entrar na universidade não era para mim”, conta.

Bárbara reconhece que naquele tempo, ainda não era uma mulher de desafiar as estruturas. “Eu não sabia do meu próprio poder”, diz. Foi justamente a descrença das pessoas que a motivou. Ela ignorou o que diziam, encarou o desafio e conseguiu. “Eu não tinha grana e fui a pé para a UFBA ver o resultado do vestibular. Quando eu vi meu nome entre os aprovados eu não acreditava. Fiquei parada olhando a lista”, relembra.

Ao ingressar no curso de Química da Universidade Federal da Bahia, os desafios só aumentaram. A academia era e ainda é composta majoritariamente por pessoas brancas, mesmo em Salvador, capital mais negra do país. Sentindo-se não pertencente àquele espaço, ela sofreu humilhações e os efeitos do racismo, mas seguiu em frente.

“A universidade é reprodutora do racismo que a gente vive em sociedade. Esse espaço reproduz a hierarquização que centraliza o poder na perspectiva eurocêntrica, branca, cis e hétero patriarcal. Então, uma menina negra que vem de uma realidade de periferia não se vê ali. Eu queria desistir, mas lembrava das experiências de massacre que eu já havia sofrido e pensava que precisava superar tudo aquilo. A dor e o ódio me moveram”, revela.

Ao se formar e tornar-se doutora aos 27 anos, Bárbara quebrou uma sequência familiar de gerações de mulheres que não completaram o ensino básico, contudo, apesar da vitória, sentia que precisava ir além. “Eu me formei com referências epistemológicas brancas, sem nunca sequer ter lido uma autora negra. Quando terminei minha tese em 2014 percebi que precisava redesenhar a minha história e saber quem eu sou”, afirma Bárbara.

Com essa motivação para redesenhar sua origem e a dos seus, a professora doutora passou a se dedicar às perspectivas decoloniais de ensino, que negam as premissas colonialistas e todos os padrões de colonialidade que estão impregnados na educação de base eurocêntrica. Desconstruindo falácias e mitos, como a ideia de que os povos africanos não possuíam os próprios sistemas matemáticos, químicos, arquitetônicos e medicinais, Bárbara mergulha na sabedoria de Sanfoka olhando para um passado milenar de reis e rainhas de grandes impérios africanos: uma história que foi totalmente apagada pela forma europeia de contar os saberes.

“O povo negro nasceu há 4 mil anos e toda essa história é apagada em prol do conto mitológico de subserviência africana e afrodiaspórica dos últimos quatro séculos. A história brasileira apagou milênios da história de seus povos originários”, ressalta, explicando o conceito do epistemicídio, que aborda o apagamento das epistemologias (saberes intelectuais) de povos originários em detrimento do saber europeu. “A gente absorve a ideia de que a Grécia fundou tudo. Isso é um mito criado para colocar os negros num lugar de subserviência e isso impacta a vida das pessoas negras até hoje”, explica.

Ensino decolonial

Como educadora, hoje Bárbara é docente da UFBA e pôde levar todos seus saberes em afroperspectiva para um novo projeto educacional, a Escolinha Maria Felipa, onde trabalha como sócia, fazendo consultoria pedagógica. Localizada em um bairro central de Salvador, a Maria Felipa é uma instituição educacional que surge a partir da reflexão da necessidade de uma construção decolonial desde a educação infantil. Desse desejo, surge uma escola afro-brasileira e bilíngue em inglês, que trabalha articulando o referencial teórico da Decolonialidade do Saber com a Pedagogia Histórico-Crítica.

Sobre a Maria Felipa, Bárbara confessa que levou para o projeto tudo o que não teve em sua infância. “Projetei muito das minhas ausências. Até hoje tenho muita dificuldade para falar inglês, então coloquei como prioridade a escola ser bilíngue. Tudo que faltou para mim, eu quero oferecer para essas crianças: esse é meu propósito de vida”, sustenta.

Para a professora e doutora, a educação crítica e afro-brasileira desde a infância é uma ferramenta poderosa para a construção de uma perspectiva positiva da África, dos antepassados e da própria condição do negro no presente e no futuro. Por conta disso, posiciona sua militância no campo da potencialidade. “O racismo designa quem nós somos e eu cansei de ficar o tempo todo negando o que o racismo fala de nós. Eu não quero negar, eu quero dizer quem eu sou”, conta, completando que o racismo é uma construção da branquitude, e que, portanto, a mesma deve se responsabilizar por ela. “A minha preocupação não é educar os racistas, e sim levantar o meu povo”, reforça.

‘Lutamos para que a nossa existência física seja respeitada, quem dirá a nível intelectual’

Autora de dois livros, Bárbara Carine está à frente do livro “Descolonizando a Lei 10.639/2003 no Ensino de Ciências” ao lado da professora e doutora Katemari Rosa. O livro aborda a lei que está no escopo das legislações afirmativas no Brasil e cria a obrigatoriedade do ensino de cultura e história afro-brasileira em toda a extensão curricular da educação básica.

No livro, as autoras se debruçam sobre o fato do Ensino das Ciências terem sido construídos a partir da perspectiva europeia, que passou a ser falsamente entendida como universalista. “Em meio a esse processo se deu a construção de uma ciência moderna monocultural e epistêmica, que negou outras matrizes civilizatórias e defenestrou conhecimentos científico-tecnológicos milenares de povos ancestrais, como por exemplo, os povos africanos, os primeiros a habitarem o mundo”, relatam as autoras na obra.

Ao ser questionada sobre o fato da lei não ter aderência no Brasil, Bárbara tem a resposta na ponta da língua: “A lei não é cumprida porque o racismo é estrutural e a branquitude não quer perder seus privilégios. Nesse país, as leis voltadas para os negros são para inglês ver, foi assim desde a suposta abolição. Nós estamos lutando pela nossa própria existência: veja o que acontece com Miguel, com Claudia, com Marielle. Nós estamos lutando para que a nossa existência física seja respeitada, quem dirá a nível intelectual”, pontua.

Com a perspectiva de raça e gênero, a última contribuição da doutora Bárbara é o livro “Mulheres Negras Na Ciência”, lançado esse ano. Na obra, a autora busca difundir grandes nomes da ciência africana e afrodiaspórica, socializando produções científico-tecnológicas de mulheres negras das ciências biomédicas e matemáticas. No livro, Bárbara também cita sua própria trajetória enquanto mulher negra, mãe, filha, irmã, amiga, companheira, professora de química, doutora e pesquisadora.

Referências para as novas gerações

Atualmente, Bárbara mora do Bairro do Rio Vermelho, em Salvador, com a filha Iana de dois anos, que estuda na Escolinha Maria Felipa. “Iana revolucionou a minha vida para sempre. Ela me ensinou sobre amor, paciência, sobre medo (um medo que nunca tive), sobre educação infantil e sobre a importância da minha ancestralidade”, relata.

Além do exemplo deixado para a própria filha, que estará à frente de uma nova geração de mulheres negras. Ao longo de sua trajetória, a professora e doutora inspirou outras mulheres negras das ciências, como Caren Queiroz, bióloga e doutoranda na Universidade Federal da Bahia. “Eu conheci a Bárbara em um dia muito especial. Eu estava mediando uma mesa redonda pela primeira vez e o tema era Mulheres Negras na Ciência. Nessa mesa, ela trouxe sua trajetória pessoal e a de outras mulheres que vieram antes de nós. Eu me identifiquei demais com a história da Bárbara e até chorei na mediação. Minhas lágrimas representaram a importância daquele encontro. Antes daquele dia eu duvidava de muita coisa, mas depois me senti acolhida. Percebi que eu não estava sozinha”, diz Caren.

Depois dessa mesa, Caren e Bárbara se reencontraram em novos debates. O último encontro foi virtual, em uma live da Rede Kunhã Asé, que tem a Caren como uma das organizadoras. Na live, Caren encerrou perguntando à Bárbara o que ela diria para a Bárbara de 15 anos. Com lágrimas nos olhos, ela respondeu: “Eu só diria: vai dar certo, menina. Eu sei que é difícil, mas acredite: vai dar certo”.

No mês da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, o Alma Preta traz uma série de reportagens especiais que contam a história de mulheres inspiradoras.

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