Um estudo pioneiro reflete sobre como se expressam as desigualdades de raça, classe e gênero no processo alimentar do Brasil. O livro “Prato do Dia: Desigualdades. Raça, Gênero e Classe Social nos Sistemas Alimentares” foi lançado pela Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (Fian Brasil) nesta semana.
A obra traz uma investigação, que tem como base dados coletados na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), entre os anos de 2017 e 2018, e que mergulha em textos públicos de organizações de diferentes setores da sociedade – comercial, movimentos sociais, entidades profissionais e academia, além de uma década de conferências nacionais vinculadas a políticas setoriais.
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O estudo também retoma conclusões apresentadas no 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgadas em junho passado, que apontou que 20,6% dos lares chefiados por pessoas negras foram as maiores vítimas da insegurança alimentar no país entre novembro de 2021 e abril de 2022.
De acordo com a nutricionista e coordenadora da investigação, Veruska Prado Alexandre-Weiss, o cenário já era previsto no período pré-pandemia.
“A questão da raça é tão determinante no Brasil a ponto da gente fazer uma classificação nada boa de que lares chefiados por pessoas negras sofrem mais insegurança alimentar. Isso demonstra o cenário de injustiça social associado à questão racial no Brasil e como se cruza no campo da alimentação. Mas é importante pontuar que a alimentação é só a nossa porta de entrada e que ela certamente expressa outras violações que as famílias estão passando”, afirma, em entrevista à Alma Preta.
O estudo avalia a expressão das desigualdades na produção, circulação, acesso e consumo de alimentos, afetando de forma mais intensa a vida de pessoas negras, mulheres e crianças e daqueles com mais baixa renda. “Com a leitura integrada, pudemos observar como o problema das desigualdades é tratado de forma generalizada e, em alguns momentos, naturalizada”, comenta Veruska. “Chamou-nos atenção que, mesmo entre setores mais críticos da sociedade, é como se o que vivemos até aqui, na formação do Brasil, estivesse naturalizado a ponto de ser imutável”, complementa.
Para a coautora do estudo Rute Costa, é preciso avançar na compreensão das interações complexas do racismo e do sexismo no contexto dos sistemas alimentares. “Não é possível superar a insegurança alimentar sem enfrentarmos o racismo e o sexismo, produtores de barreiras à realização do direito humano à alimentação adequada”, destaca. Também participaram da pesquisa, como consultores/as, Patrícia Mourão, Pedro Rossi e Arthur Welle.
Obesidade e alimentação de baixa qualidade
A investigação aponta que o sistema alimentar hegemônico, marcado pelo agronegócio, que tem como principal objetivo enriquecer grandes fazendeiros, não garante acesso a alimentos de forma adequada e saudável para as pessoas, o que incide tanto na fome como nos elevados índices de obesidade. Considerando o período de 2006 a 2021, o excesso de peso aumentou de 42,6% para 57,2%, de acordo com o que demonstram dados obtidos pelo Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel).
“É importante levantar esse paradoxo de que as famílias de baixa renda tanto sofrem com a insegurança alimentar do ponto de vista da fome, como do ponto de vista da obesidade, porque muitas vezes o recurso que elas têm para comprar alimentos dá para comprar apenas o alimento mais barato, que enche a barriga, ou seja, ultraprocessados”, diz Veruska.
As implicações desse contexto de comprometimento no acesso qualitativo aos alimentos são muitas. Uma delas é a ocorrência de deficiências de micronutrientes, mais uma face da insegurança alimentar. Dados nacionais publicados pela equipe do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani-2019) relatam frequência de anemia de 10% entre crianças menores de 5 anos e 14,2% de deficiência de vitamina B12, ambas aferições com elevadas diferenças entre as regiões brasileiras – a Região Norte apresenta os piores resultados.
“A análise de região também é interessante para se fazer uma reflexão do ponto de vista do reconhecimento de auto identificação dos indivíduos. Se você pega dados do Censo, vai ver que a concentração de indivíduos que se autodeclaram negros – pretos e pardos – no centro oeste, norte e nordeste é maior, o que reforça o fator raça no contexto de insegurança alimentar também do ponto de vista regional”, avalia.
Para Veruska, a principal contribuição da pesquisa “é um alerta à necessidade de sermos mais específicos em nossas falas sobre desigualdades e iniquidades relacionadas ao acesso à alimentação, assim como a efetivação de todos os demais direitos humanos, uma atitude fundamental neste novo ciclo de gestão pública”.