Pesquisar
Close this search box.
Pesquisar
Close this search box.

Brasil não tem dados raciais de 90% dos servidores públicos desde 2006

Nova lei, sancionada nesta semana, determina que IBGE faça censo a cada cinco anos para identificar estrutura racial dos empregos no setor público e adotar políticas de combate à desigualdades

Brasil não tem dados raciais de 90% dos servidores públicos desde 2006

Foto: Brasil não tem dados raciais de 90% dos servidores públicos desde 2006

27 de abril de 2023

Uma nova lei foi sancionada nesta semana para reverter um cenário de invisibilidade de dados de raça e cor, em especial na administração pública. A Lei 14.553/2023 altera o Estatuto da Igualdade Racial e determina procedimentos e critérios de coleta de informações relativas a cor e raça no mercado de trabalho, com o objetivo de subsidiar políticas públicas.

Apesar da norma valer para registros administrativos nos setores privados e públicos, o problema de invisibilidade de dados é mais grave na administração pública. A ausência de dados é detectada nos órgãos de nível municipal, estadual e federal.

Mais de 90% dos servidores públicos não têm sua cor identificada desde 2006, quando o quesito raça/cor foi inserido, de fato, na Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Essa base de dados, organizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), é a principal fonte para pesquisas sobre a situação do mercado de trabalho formal no país. Os dados de raça/cor começaram a ser captados na RAIS 1999, mas o MTE só liberou o acesso da variável a partir da RAIS 2006, sob a justificativa de que, naquele momento, as informações atingiram um “grau de consistência suficiente”.

“Precisamos ter mecanismos para avaliar a evolução das políticas públicas. Se, por exemplo, não há uma pessoa negra em cargos de chefia hoje, precisamos saber como o cenário vai evoluir em 10, 15 anos. Se ainda continuar sem ninguém, tem alguma coisa errada”, afirmou o deputado federal Vicentinho (PT-SP), autor do projeto de lei.

A invisibilidade não é total porque, há pouco mais de dois anos, o IPEA analisou e publicou alguns dados do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (SIAPE), responsável pela gestão de informações de pessoal no governo federal e que disponibiliza consultas públicas muito limitadas sobre dados de cor e raça. Essas análises, que vão apenas até 2020, estão restritas ao perfil racial do Executivo federal, que na RAIS 2021 representa 3,2% dos servidores da administração pública. Os gráficos e tabelas podem ser consultados na plataforma Atlas do Estado Brasileiro.

Por conta dessa invisibilidade, a lei, publicada no Diário Oficial da União de segunda-feira (24), também determina que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faça um censo, a cada cinco anos, sobre a participação de cada grupo étnico-racial empregado no setor público. 

As informações devem ser utilizadas na Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, instituída pelo Estatuto da Igualdade Racial, que visa reduzir as desigualdades raciais no Brasil.

O que muda com a lei

Empregadores do setor público e privado devem incluir nos registros administrativos um campo para que os empregados se autoclassifiquem segundo o segmento étnico e racial a que pertencem – ou seja, não deve ser um processo de heteroidentificação pelas equipes de recursos humanos.

O trabalhador deve indicar sua raça nos seguintes formulários: 

  • admissão e demissão no emprego; 
  • acidente de trabalho; 
  • inscrição de segurados e dependentes no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS);
  • pesquisas do IBGE; 
  • registro feito no Sistema Nacional de Emprego (Sine); 
  • e na Relação Anual de Informações Sociais (Rais).

Lei não prevê sanções a quem descumprir

A nova legislação não prevê nenhum tipo de sanção aos órgãos e empresas que a descumprirem. Para o senador Paulo Paim (PT-RS), relator do projeto que antecedeu a lei, o Estatuto da Igualdade Racial precisa ser incorporado por nossa sociedade e instituições e “penalizar uma sociedade que deve ser educada para promoção da igualdade racial não é o caminho”. 

“O Brasil possui instituições como o Ministério Público, que entre as suas funções tem o dever de fiscalizar as legislações, e a sociedade civil, que nos ajudam a fiscalizar as instituições que não implantarem a política. Acredito que este é o caminho”, disse o parlamentar.

Vicentinho também é contra o uso de sanções, inicialmente. “Lei boa é aquela que as pessoas têm consciência de que têm que cumprir”, afirma. Mas não descarta que haja, no futuro, alguma medida de obrigatoriedade. “Se percebermos que [a lei] não está sendo considerada em absolutamente nada, aí, sim, nós vamos entrar com uma emenda ou o governo terá que entrar com portarias para a exigência do cumprimento”, ponderou.

Procurado pela Alma Preta, o Ministério do Trabalho e Emprego disse em nota que pensa em desenvolver trabalhos de avaliação e conscientização com as empresas e não desconsidera multar por falta de preenchimento algumas companhias.

“Existe a possibilidade de multa por falta de preenchimento. No eSocial, já fizemos uma consulta jurídica sobre mudança na forma de coleta para reforçar para os empregadores que a informação é da responsabilidade deles e é relevante para as estatísticas públicas. No entanto, se não houver uma conscientização generalizada de que essa é uma informação crucial para diminuir desigualdades, continuaremos a ter informações insuficientes sobre o tema nos registros administrativos”, afirmou a pasta. 

Dados de raça e cor são subutilizados

Um dos desafios dos estudos raciais sobre mercado de trabalho são argumentos que descredibilizam os dados da RAIS, por exemplo. Entidades relevantes como o Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) e o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) afirmam não utilizar esses dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) sob a justificativa de que são as empresas que atribuem a cor ou raça das pessoas, ou seja, a declaração dependeria do olhar dos funcionários de recursos humanos.

Ana Georgina, economista e pesquisadora do DIEESE, afirma que a falta de dados raciais precisos do RAIS é uma barreira para a produção de pesquisas sobre o mercado de trabalho no Brasil. “Adoraríamos que os dados fossem mais confiáveis e que nós pudéssemos utilizar, porque é importante que existam recortes raciais quando a gente faz pesquisa, sobretudo, em relação ao mercado de trabalho”.

A MTE orienta o trabalhador a fazer “a autodeclaração de sua raça/etnia e de que as empresas não façam a atribuição desse quesito por meio de fotos ou impressões dos funcionários dos departamentos de recursos humanos”. No entanto, o manual de instrução para preenchimento do RAIS de 2017 e 2022 não sinalizam para a autodeclaração. Pelo contrário: no trecho destinado para instruir a resposta do questionário, há um pedido para o responsável escolher as opções a partir do “código compatível com a cor ou raça do trabalhador”.

No artigo “Investigação sobre Qualidade da Variável Cor ou Raça na RAIS através de um Estudo Comparativo com a PNAD do IBGE”, os autores apontam como um dos possíveis problemas da RAIS o “embranquecimento” dos funcionários por parte dos patrões, como uma tentativa de “elogiá-los” e o descreverem do ponto de vista racial de um modo a os clarear ou optar por uma não identificação.

Já o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) trabalha com esses dados de forma setorial no setor privado, justamente porque a não identificação no setor privado é muito menor, como mostra o gráfico abaixo:

 

“Eu realizo censos dentro das organizações e levantamentos setoriais desde 2000. A Febraban faz censo desde 2007 e atualiza essa informação de tempos em tempos. Em 2019, por exemplo, o censo deles contava com os 30 maiores bancos e, ao olhar para o setor bancário na RAIS, são dados que têm aderência entre si”, analisa Mário Rogério, diretor e pesquisador do CEERT.

Para Mário, no entanto, é preciso que hajam normas mais claras para a atualização de dados. “É preciso definir regras para que tanto público e privado atualizem a informação e que faça isso de forma recorrente”.

Outro ponto a ser avaliado é a qualidade dos dados, conforme sinaliza Wesley Matheus, doutor em ciência política pela UFMG e pesquisador do Afro Cebrap. “Não quer dizer que por ser muito preenchida, que as informações oriundas desse preenchimento são boas. A gente tem que tomar muito cuidado ao analisar diretamente essa ausência de dados e já querer tirar conclusões, porque um cenário de baixo ou intermediário preenchimento pode demonstrar boas informações”. 

O MTE recorda que sempre houve problemas no levantamento nos dados raciais de trabalhadores e coloca o racismo como um elemento para explicar esse cenário. “Da parte do trabalhador, ainda é forte a percepção que se declarar negro, pardo, indígena pode significar não conseguir o trabalho, pois ainda persiste a percepção de discriminação dessas pessoas por parte das áreas responsáveis por recrutamento e seleção para postos de trabalho”.

Leonardo Silveira, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador do Afro Cebrap, acredita que o Brasil tem um enorme potencial para o processamento de dados e que é necessário que exista maior rigor para o levantamento de informações sobre raça e cor no país.

“O RAIS, o censo da educação básica, censo do ensino superior, CadÚnico, sistema de informações de mortalidade no DataSuS, todos eles, quando a gente chega na variável racial, cria-se algumas dúvidas em relação a isso. A sociedade civil, os movimentos sociais, a universidade podem pautar o governo no sentido de aprimorar essa forma de coleta de dados raciais”, explica.

Metodologia de definição do setor público 

Para chegar aos dados de emprego formal da administração pública, a Alma Preta utilizou os microdados da RAIS disponibilizados pelo site Base dos Dados. Foram considerados apenas os vínculos ativos em 31/12 de cada ano desde 1999, mas os dados de raça/cor só apareceram a partir de 2006. 

A reportagem utilizou dois filtros:

. Pelo campo de raça/cor. De 2006 a 2009, alguns campos estavam em branco e foram contabilizados como “Não identificados”.

. Pela Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE 2.0): para chegar às informações do setor “administração pública, defesa e seguridade social”, o filtro foi feito pelos seguintes códigos: 84.11-6, 84.12-4, 84.13-2, 84.21-3, 84.22-1, 84.23-0, 84.24-8, 84.25-6 e 84.30-2. Abaixo a descrição de cada um deles:

84.11-6 Administração pública em geral
84.12-4 Regulação das atividades de saúde, educação, serviços culturais e outros serviços sociais
84.13-2 Regulação das atividades econômicas
84.21-3 Relações exteriores
84.22-1 Defesa
84.23-0 Justiça
84.24-8 Segurança e ordem pública
84.25-6 Defesa Civil
84.30-2 Seguridade social obrigatória

Leia Mais

Quer receber nossa newsletter?

Destaques

AudioVisual

Podcast

EP 153

EP 152

Cotidiano