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Casa de acolhimento para pessoas LGBTQIA+ sofre preconceito na busca por imóvel

A ONG Casa Neon Cunha, que fica em São Bernardo do Campo, já tentou fechar contrato 18 vezes, mas proprietários e corretores negam seguir com o processo ao saberem qual seria a destinação do espaço 

Texto: Fernanda Rosário | Edição: Nadine Nascimento | Imagem: Reprodução/ Casa Neon Cunha

Espaço cheio de cestas para doação de Casa Neon Cunha.

14 de outubro de 2021

A ONG Casa Neon Cunha, em São Bernardo do Campo (SP), tem enfrentado dificuldade na busca por um imóvel para a viabilização do acolhimento para a população LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade. A instituição, que já passou por 18 espaços na região em quase dois meses de procura, sempre recebe uma negativa no fechamento do contrato quando os locatários descobrem as atividades que serão realizadas no imóvel.

Segundo Paulo Araújo, presidente e fundador da Casa Neon Cunha, o processo de locação ocorre tranquilamente até o momento em que vão falar para os corretores ou proprietários do imóvel sobre a ideia do abrigo. Nesse instante, o fechamento do contrato é interrompido. “Tudo isso se relaciona a preconceito, na verdade. A Casa Neon é um trabalho sério. É um trabalho comprometido com essas pessoas. Então, a gente não quer de forma alguma causar problemas. É o preconceito contra a população LGBT que está em situação de rua e que precisa desse abrigamento”, relata Paulo.

Desde o início das atividades da Casa, iniciadas em 2018, são angariadas doações para a viabilização de um espaço físico de acolhimento para a população LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social. A ONG conseguiu por meio de doações, campanhas e parcerias o montante suficiente para o pagamento do aluguel.

As justificativas que corretores e proprietários dos imóveis dão para não aceitarem a locação estão sempre atreladas a uma questão de falta de segurança, de que o imóvel é de ambiente familiar, de que estão preocupados com a bagunça ou com o entra e sai de pessoas. Mesmo que todos os documentos e garantias pedidas para a Casa Neon Cunha sejam entregues, que a ONG tenha um fiador e recursos financeiros disponíveis para mais de um ano de aluguel, se necessário, o processo de locação é interrompido.

“Eles pedem várias garantias, várias exigências e a gente cumpre as exigências. Quando a gente fala do abrigamento, essas pessoas não dão andamento a esse processo. Todas os retornos são semelhantes”, afirma o presidente da Casa.

Além de abrigo, a ONG pretende transformar seu espaço físico em local de atividades culturais, cursos e formações para capacitação profissional, além de apoio psicológico e assistencial. “Essas pessoas são violadas pelo Estado, então a gente tem que garantir que elas não sofram mais violência. Mas também a gente vai garantir a segurança do espaço onde a gente vai estar. A gente ressalva várias vezes que é um trabalho sério”, pontua Paulo Araújo.

Importância da Casa Neon Cunha

A ONG Casa Neon Cunha, desde sua inauguração, se articulou com outros ativistas da região do Grande ABC paulista para a construção de um espaço que desse conta de preencher uma lacuna deixada na região por conta da ausência de políticas públicas, não só na área do abrigamento, mas também em questões de saúde, habitação e segurança pública.

A iniciativa busca prestar serviços solidários à população LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade da região, além de buscar a promoção e inclusão da diversidade na luta pelos direitos dessa população, sobretudo, das pessoas transgênero.

Paulo Araújo conta que, nas casas de passagem e abrigos públicos oferecidos, existe ainda muita falta de sensibilidade e desrespeito às pessoas trans e travestis, que são impedidas, por exemplo, de dormir em ambientes ou utilizarem banheiros de acordo com sua identidade de gênero.

“A gente via a população LGBTQIA+ em situação de rua que não queria ficar nas casas de passagem, nos abrigos oferecidos pela prefeitura. Essas casas de abrigo não estão preparadas para receber essas mulheres travestis e transexuais, esses homens trans, essas pessoas gays, lésbicas, bissexuais. Muitas das vezes elas preferem ficar nas ruas, nas calçadas, embaixo dos viadutos, do que ir pra esse ambiente que é pra ser seguro, mas ao mesmo tempo é violento pra elas psicologicamente”, explica o presidente da Casa Neon Cunha.

O nome da instituição é uma homenagem, em vida, a Neon Cunha, mulher negra, ameríndia, transgênero, formada em Publicidade e Propaganda e Arte e Educação, como reconhecimento pela sua trajetória e importância no movimento trans. Ela foi a primeira mulher trans a mudar de nome sem diagnóstico de patologia, resultado de uma luta que a levou até ao STF ao pedir direito à morte assistida, caso não tivesse o direito a seu reconhecimento como mulher.

Atualmente, a ONG promove atividades socioeducativas, distribuição de alimentos e de materiais de higiene, auxílio psicossocial (com assistência social e psicológica), orientação jurídica para qualquer tipo de violência, além de acompanhamento e auxílio financeiro no processo de retificação de nome.

Com a pandemia, a Casa se viu na necessidade de utilizar os recursos angariados por doações para a reversão em cestas básicas, além de kits de higiene pessoal destinados ao público que atende. De acordo com o Relatório de prestação de contas da Casa Neon Cunha de 2020, foram distribuídas 2720 cestas básicas e kits de higiene pessoal, além do cadastro social e mapeamento de demandas de cerca de 200 pessoas atendidas.

Segundo Paulo Araújo, atualmente cerca de 300 pessoas são atendidas nas entregas de cestas, cerca de 200 pessoas no auxílio psicológico e cerca de 40 no acompanhamento do processo de retificação de nome.

Situação em São Bernardo do Campo

Além da ausência de políticas públicas voltadas para pessoas LGBTQIA+, apontadas por Paulo Araújo, São Bernardo dos Campos também sofre com o transfeminicídio. Em 2020, foram registrados cinco assassinatos com requintes de crueldade de pessoas travestis no municipio. Uma delas, Ester Vogue, foi queimada viva.

O presidente da Casa Neon Cunha também fala sobre a falta de diálogo da prefeitura. “Os próprios equipamentos da cidade [setores de assistência social, educação, Sindicatos, entre outros] procuram a gente para fazer essa adesão, essa qualificação. Só quem não quer dialogar com a gente é a própria prefeitura. A gente oficia a prefeitura para pontuar as demandas da população e dar alternativas para poder resolver, mas em nenhum dos momentos a gente foi atendido”, relata Paulo.

De acordo com ele, em 2020, foram protocoladas duas denúncias junto ao Ministério Público sobre a omissão em políticas públicas voltadas a população LGBTQIA+ da cidade por parte da Prefeitura de São Bernardo do Campo. “A gente faz essa denúncia e pontua, mas também traz soluções para que a prefeitura possa tomar para poder melhorar a relação com a população LGBT”, pontua Paulo.

Em nota, a Prefeitura de São Bernardo do Campo disse que lamenta por a entidade enfrentar dificuldades em encontrar um local para a oferta de serviço voltados à comunidade LGBTQIA+, mas ressalta que os critérios utilizados pelas empresas imobiliárias são alheios ao poder público. Também pontua que a administração dispõe de rede socioassistencial, cujas organizações são selecionadas por meio de chamamento público e que também desenvolve projetos junto ao público LGBTQIA+ e mantém estudo para instalação de um ambulatório de saúde integral para travestis e transexuais no Grande ABC.

Imóvel ideal

A Casa Neon Cunha está procurando um espaço físico que possa, pelo menos inicialmente, atender 12 pessoas. Para isso, o imóvel precisa ter, no mínimo, 4 quartos grandes para abrigar beliches e armários, além de uma cozinha grande. Paulo Araújo também fala na necessidade de um espaço que tenha salas grandes, para a construção de ambientes de socialização, sala de informática e sala para qualificação profissional. O objetivo é que futuramente a ONG tenha possibilidade de acolher até 32 pessoas.

“A Casa Neon Cunha é um sonho nosso, um sonho das pessoas de um lugar melhor. Um lugar que possa acolher, trazer afetividade e que as pessoas possam se sentir amadas. A gente quer crescer, dar essa resposta a essa ausência de política pública. A gente quer dar essa dimensão de dignidade para essas pessoas. Quem for corretor ou proprietário de uma casa e puder auxiliar a gente nessa procura, estamos super à disposição”, finaliza Paulo Araújo.

Leia também: CPI inédita sobre violência contra população trans começa nesta semana

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