PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Projetada para COP 30, construção de avenida ameaça quilombo na Grande Belém

Governo de Helder Barbalho não tem priorizado diálogo com comunidades que serão afetadas pelas obras da avenida Liberdade; licitação deve ser lançada no final de março
Imagem mostra a sede da associação dos moradores do Quilombo do Abacatal.

Foto: Fernando Assunção/Alma Preta

12 de março de 2024

O edital para as obras da Avenida Liberdade, na Grande Belém (PA), deve ser lançado no final de março. A via é uma das apostas do governador Helder Barbalho (MDB) para resolver o problema da falta de infraestrutura em Belém e região, que receberão o maior evento climático do planeta, a COP 30, em novembro de 2025.

O anúncio foi feito no dia 3 de março, na capa do Diário do Pará, jornal impresso pertencente à família Barbalho. Segundo a reportagem, o projeto da estrada está na “fase final de licenciamento ambiental, elaboração técnica e orçamentação”. A expectativa é que as obras iniciem ainda no primeiro semestre de 2024.

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

A notícia pegou de surpresa a população que será impactada pela obra, inclusive uma comunidade quilombola. Segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os quilombolas devem ser consultados previamente no licenciamento ambiental de empreendimentos que impactarão o seu modo de vida. 

O Quilombo do Abacatal, situado em Ananindeua, cidade vizinha de Belém, fica a menos de dois quilômetros de onde a avenida vai passar. A obra, inclusive, deve cortar a vicinal de acesso à comunidade. Entretanto, a escuta dos quilombolas não tem sido uma prioridade para o governo, segundo representantes da Associação de Moradores e Produtores de Abacatal e Aurá (AMPQUA).

“O governo atropela o protocolo de consulta da comunidade. Isso é um desrespeito a um quilombo de mais de 300 anos, com uma história dolorida, mas de muita importância para a região”, lamenta a pedagoga Maria Cardoso, coordenadora de Programas Comunitários da associação.

“A consulta deveria ser prévia, como diz a teoria, mas ocorre que só fomos procurados quando já havia sido feito todo o levantamento”, complementa Jéssica Teixeira, agricultora rural, estudante e coordenadora de Patrimônio da AMPQUA.

No início do ano, a comunidade finalizou o Estudo de Componente Quilombola (ECQ), uma das etapas iniciais no processo de licenciamento ambiental da obra da estrada. No documento, o Quilombo do Abacatal indicou os impactos que a avenida trará para os moradores.

“Para o ECQ, foi aplicado um questionário onde a comunidade apontou todos os impactos que vai sofrer e todos os pontos são negativos, ficou claro que a avenida Liberdade não vai trazer nada de positivo para nós. Mas apesar do nosso posicionamento, a obra avança, o que demonstra que o papel do estado é de ‘atropelar’ as minorias”, afirma Maria Cardoso. 

Avenida contrapõe discurso ambiental de Helder

Governador do estado que sediará a COP30 e um dos maiores articuladores, junto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para trazer o evento para o Pará, Helder Barbalho tem despontado a nível mundial como defensor da preservação da Amazônia. Em 2023, durante a COP 28, em Dubai, o governante afirmou que a temática da floresta deveria ser prioridade para as lideranças internacionais.

“[O legado ambiental da COP] não será apenas para o Pará, mas para toda a Amazônia. Toda a agenda que temos tem a obrigação de inserir o legado da floresta”, declarou. “(…) A floresta só entra na agenda global pelo romantismo da importância da floresta, mas nunca foi colocada de maneira efetiva, como riqueza necessária à preservação”, protestou Helder.

Na mesma fala, o governador cita o “legado de infraestrutura para Belém e para a região metropolitana” da COP. O problema é que, segundo lideranças comunitárias e estudos, obras a exemplo da Avenida Liberdade deixarão, na realidade, um legado de destruição ao modo de vida das populações tradicionais e à floresta remanescente no cenário urbano. A estimativa do próprio projeto é de que a construção vai derrubar 68 hectares de árvores.

Na COP 28, em Dubai, governador do Pará defendeu prioridade da floresta para as lideranças internacionais, mas projeto de avenida derruba árvores e ameaça modo de vida tradicional. Foto: Thalmus Gama/Ag. Pará

Um estudo liderado pela Conservation Strategy Fund (CSF) aponta que pelo menos 2,4 milhões de hectares da floresta Amazônica serão desmatados até 2040 em razão de projetos de rodovia no Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador e Peru. Desses países, o maior impactado será o Brasil. Estimativas indicam que o impacto das estradas sobre a floresta seja de 20 quilômetros para cada lado.

De janeiro a dezembro de 2023, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Pará apresentou 1.905 km² de área recoberta por alertas de desmatamento. O número é preocupante, embora represente uma redução de 1.604 km² ou 46% do desmatamento registrado no mesmo período de 2022, quando a área foi de 3.509 km².

“Aqui é uma área rica em vegetação, fauna e corredores ecológicos. Temos quatis, macacos, capivaras, tamanduás, ariranhas, gaviões, pássaros de diversas espécies. E esses animais vão se afugentar. Parte da obra vai passar por dentro de igapós, inclusive vai cortar a área do Parque do Utinga, onde existem os reservatórios de mananciais que abastecem água para Belém”, denuncia Cardoso.

Para Jéssica Teixeira, o conflito entre os animais e o “progresso” pregado pela obra é inevitável. “Existem, inclusive, espécies em extinção e será impossível impedir o conflito com os animais que vivem nessa área. Da mesma forma, o governo diz que irá plantar três árvores para cada uma desmatada, mas é diferente porque se derrubam árvores adultas para plantar mudas”, lamenta a quilombola.

Audiência pública ocorreu sem divulgação, diz quilombola

Maria Cardoso reforça que os impactos ambientais da obra da avenida Liberdade não irão chegar apenas ao Quilombo do Abacatal, mas serão sentidos por toda Belém. Em dezembro do ano passado, o governo do estado, por meio das secretarias estaduais de Transporte (Setran) e de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), promoveu uma audiência pública para tratar do projeto.

A audiência contou com a presença das comunidades afetadas, além dos órgãos envolvidos, e foi anunciada como a última etapa para o licenciamento e início das obras. Mas, para a comunidade, o mecanismo foi tratado apenas como uma formalidade e ocorreu sem ampla divulgação à sociedade.

“A destruição não será sentida só no Abacatal. Essa estrada trará poluição do ar, mais calor com a derrubada de árvores e contaminação dos reservatórios. Todos deveriam contribuir nessa luta, mas o governo realiza audiências sem divulgação para esconder do povo o que vai acontecer”, diz.

Governo do Pará promoveu a audiência pública do projeto de construção da avenida Liberdade, anunciada como a última etapa para o licenciamento e início das obras. Foto: Divulgação/Ag. Pará

Para os moradores, o diálogo, que já “ocorre de forma atropelada”, também acontece de forma tardia. Isso porque a comunidade já sabe da existência de um projeto de avenida na área pelo menos desde 2017, mas só no ano passado foram procurados pelo governo do estado para tratar da obra.

“Essa avenida vai na contramão da ‘liberdade’, na verdade, ela vai nos aprisionar e trazer diversos riscos”, dispara Maria. “A gente já até desistiu, sabemos que não vamos conseguir impedir esse projeto, mas queremos que o governo cumpra o seu papel e que tenha o mínimo de impacto possível para nós”.

Ocupação desordenada e poluição sonora

Um outro receio é que a chegada da rodovia favoreça a ocupação desordenada das margens da via, inclusive em áreas próximas ao quilombo. Com isso, além do aumento dos riscos de acidentes envolvendo moradores e animais, pode crescer também a criminalidade e a insegurança no local. Sobre isso, a Semas diz que a via será cercada e reservada, o que não induz ocupações nos acostamentos.

“Quando a [rodovia] Alça Viária foi construída era só estrada e mato. Hoje, tem até projetos de polos industriais na região. Como não temer que essa situação se repita? Até porque Ananindeua não tem mais para onde crescer, então a tendência é que cresça para o nosso lado”, diz a pedagoga.

Outro possível transtorno é o impacto sonoro. Distante cerca de cinco quilômetros da Rodovia PA 483, a Alça Viária, o barulho do fluxo de veículos já é ouvido e causa incômodo na comunidade.

Com área titulada em mais de 580 hectares, o Quilombo do Abacatal é formado por aproximadamente 500 pessoas e 140 famílias, tendo na agricultura familiar o seu principal meio de subsistência. Situado no município de Ananindeua, a dez quilômetros da Rodovia BR-316, é o quilombo mais próximo do perímetro urbano da Grande Belém.

Na área da comunidade, tem uma escola municipal, uma Unidade de Estratégia Saúde da Família (ESF), a sede da associação, igrejas evangélicas, campos de futebol e casas de farinha artesanal. O terreno também recebe projetos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (Emater) e da Secretaria Municipal de Pesca e Agricultura de Ananindeua (Semupa).

Uma escola municipal compõe o cenário do Quilombo do Abacatal. Foto: Fernando Assunção/Alma Preta

Criminalidade aumentou com a chegada de empreendimentos

No entorno da área demarcada, tem a vicinal que dá acesso à comunidade ligada à Estrada do Aurá. Nesse trajeto, existem conjuntos habitacionais desabitados do programa federal Minha Casa Minha Vida e uma subestação da concessionária de energia elétrica Equatorial Pará.

Com a chegada desses projetos, ainda que de pequeno e médio porte, no entorno do quilombo, os moradores já sentem os impactos do “progresso”. A instalação da Equatorial é considerada “o primeiro maior pesadelo” da comunidade. Segundo eles, o empreendimento trouxe o aumento da incidência de raios, piora das condições da estrada em razão dos carros pesados e morte de animais.

“A gente cansa de ver animais mortos no muro da empresa, que devem ter sido eletrizados. Já vimos asas de gavião na pista, animais atropelados, famílias de capivaras e quatis que costumávamos encontrar no trajeto e que agora sumiram. Tinha um casal de gavião que desapareceu quando começaram a desmatar lá”, enfatiza Cardoso.

A instalação de subestação da concessionária de energia Equatorial Pará é considerada “o primeiro maior pesadelo” da comunidade. Foto: Fernando Assunção/Alma Preta

O aumento da criminalidade é uma realidade no local. De acordo com as lideranças comunitárias, entre 2020 e 2021 foram registrados oito roubos com sequestro no entorno do quilombo, situação que fez com que a comunidade colocasse um portão na entrada do terreno para ter o controle de entrada e saída. “A abertura das matas para implantar os linhões de energia facilita a fuga dos bandidos”, pontua Maria. 

Para eles, o cenário pós chegada da Equatorial no entorno do quilombo é uma pequena amostra do que será a implantação de uma via expressa. “A avenida Liberdade não é um projeto que nos agrada, nunca nos agradou e nunca irá nos agradar. Tudo será ainda mais impactado, principalmente porque são corredores ecológicos no decorrer da via”, preocupa-se Cardoso. 

Obra pode ser paralisada, avalia especialista

A Consulta Livre, Prévia e Informada, prevista em tratados internacionais e reconhecida no âmbito nacional pelo Decreto Nº 6.040 de 2007, é um processo complexo, que envolve escuta dos povos tradicionais e participação contínua da comunidade no planejamento, execução e monitoramento de uma obra que os afete. Se não realizado dessa forma, o empreendimento pode até sofrer embargo judicial.

Na avaliação de um especialista ouvido pela Alma Preta, no caso das tratativas do estado para a avenida Liberdade, a consulta prévia ao Quilombo do Abacatal está sendo realizada como uma formalidade, esvaziando-se, assim, o direito efetivo da comunidade à participação na decisão sobre a obra.

“A consulta prévia é muito mais que uma formalidade ou burocracia; é condição jurídica de validade de um ato administrativo e, se não observada em sua inteireza, [a obra] traz insegurança jurídica para um empreendimento”, dispara o advogado Hugo Mercês, militante do Direito da Antidiscriminação na Amazônia há mais de 10 anos.

De acordo com o advogado, se a consulta não for respeitada, a obra pode ser paralisada por decisão judicial. “Nesse sentido, a reivindicação da comunidade poderia inclusive ter sido discutida na consulta prévia. Caso isso não tenha ocorrido, a questão pode ser judicializada”, avalia Mercês.

Projeto de ‘Eco Rodovia’

Chamada de “Eco Rodovia Liberdade”, a via terá 13,4 quilômetros de extensão e 28,5 metros de largura. O projeto prevê três faixas em cada sentido, sendo cada faixa com largura de 3,6 metros e acostamentos com largura de 2,5 metros para cada lado, com faixas exclusivas para motociclistas e ciclistas.

A estrada terá velocidade máxima de 100 quilômetros por hora. A via vai da avenida Perimetral até a Alça Viária. O projeto ainda prevê a construção de três viadutos e uma ponte.

O trajeto corta duas importantes Áreas de Proteção Ambiental (APAs), o Parque Estadual do Utinga, ponto turístico de conservação de espécies animais e vegetais, e a APA Belém, que protege os mananciais Água Preta e Bolonha que abastecem a cidade de Belém, além de furos, igarapés e a vicinal de acesso ao Quilombo do Abacatal e outras quatro comunidades tradicionais.

Mapa da “Eco Rodovia Liberdade”. Foto: Divulgação

Do ponto de vista ambiental, segundo a Setran, haverá 68 hectares de supressão vegetal – o projeto inicial previa 101,202 hectares. De acordo com o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-Bio), serão construídas mais de 30 passagens de animais – subterrâneas e aéreas – ao longo do traçado. 

Um outro compromisso previsto é que, a cada árvore retirada, outras três sejam plantadas. A equipe de trabalho do estado identificou que alguns pontos já possuem a vegetação suprimida, em razão de torres de transmissão de energia instaladas, área que será aproveitada para diminuir a intervenção na flora atual.

De acordo com a secretaria, a redução trará redução do deslocamento no percurso e, por consequência, diminuirá a emissão de gás carbônico na atmosfera. “O tempo de deslocamento, que hoje é de cerca de 52 minutos, entre a BR-316 até a Alça Viária, será reduzido para 12 minutos pela avenida Liberdade, assim como a emissão de gás carbônico terá uma redução de 17,7 toneladas por ano”, afirmou o titular da Setran, Adler Silveira.

A reportagem entrou em contato com os órgãos citados, incluindo as secretárias de Meio Ambiente e de Transporte e a Ideflor-Bio, acerca das questões levantadas pelo Quilombo do Abacatal e os relatos de problemas no licenciamento ambiental. Apenas a Setran respondeu e informou apenas que a obra “segue em fase de licenciamento ambiental e mantem diálogo contínuo com as comunidades. A Setran destaca que o projeto beneficiará a mobilidade de 2 milhões de pessoas”. O espaço segue aberto para o posicionamento das demais pastas.

Apoie jornalismo preto e livre!

O funcionamento da nossa redação e a produção de conteúdos dependem do apoio de pessoas que acreditam no nosso trabalho. Boa parte da nossa renda é da arrecadação mensal de financiamento coletivo.

Todo o dinheiro que entra é importante e nos ajuda a manter o pagamento da equipe e dos colaboradores em dia, a financiar os deslocamentos para as coberturas, a adquirir novos equipamentos e a sonhar com projetos maiores para um trabalho cada vez melhor.

O resultado final é um jornalismo preto, livre e de qualidade.

  • Fernando Assunção

    Atua como repórter no Alma Preta Jornalismo e escreve sobre meio ambiente, cultura, violações a direitos humanos e comunidades tradicionais. Já atua em redações jornalísticas há mais de três anos e integrou a comunicação de festivais como Psica, Exú e Afromap.

Leia Mais

PUBLICIDADE

Destaques

AudioVisual

Podcast

papo-preto-logo

Cotidiano