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Desinformação e racismo: como notícias falsas reforçam a criminalização da população negra

Especialista defende que desinformação sobre pessoas negras desempenha papel essencial na manutenção de políticas punitivistas e ações violentas do Estado
Uma moradora protesta contra uma operação policial que matou 14 pessoas em Guarujá, a cerca de 90 km de São Paulo, Brasil, em 2 de agosto de 2023.

Uma moradora protesta contra uma operação policial que matou 14 pessoas em Guarujá, a cerca de 90 km de São Paulo, Brasil, em 2 de agosto de 2023.

— Allison Sales/AFP

10 de fevereiro de 2025

A desinformação que associa falsamente pessoas negras à criminalidade reforça estereótipos racistas e a marginalização. No Brasil, onde a violência policial contra negros é estrutural, as notícias falsas sobre crimes supostamente cometidos por negros alimentam estereótipos racistas, legitimam abordagens violentas e perpetuam a discriminação. 

Segundo  publicação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho de 2024, pessoas negras têm 3,8 vezes mais chances de morrer em ações policiais do que pessoas brancas. O levantamento ainda reforça que, assim como nos anos anteriores, pessoas negras (pretas e pardas) foram a maioria das vítimas, correspondendo a 82,7% das mortes em 2023. Em 2022, essa parcela era de 83,1%.

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Em 2023, foram registradas 6.393 mortes em decorrência de intervenções policiais, resultando em uma taxa de 3,1 mortes por 100 mil habitantes — uma pequena redução em comparação a 2022, quando a taxa foi de 3,2 por 100 mil habitantes.

Embora esse dado represente uma queda de 0,9% em relação ao ano anterior, o cenário revelado pelo Anuário a longo prazo revela uma tendência alarmante — desde 2013, houve um aumento de 188,9% nas mortes provocadas por ações policiais.

A disparidade fica ainda mais evidente quando comparadas as taxas de mortalidade: enquanto a taxa entre pessoas negras foi de 3,5 por 100 mil habitantes, entre pessoas brancas o índice foi de 0,9 por 100 mil.

A desinformação, prática que se caracteriza como a disseminação intencional de informações falsas ou descontextualizadas, com o objetivo de causar dano ou beneficiar alguém, associa falsamente à criminalidade, reforça estereótipos racistas e intensifica sua marginalização. 

Vídeos descontextualizados, boatos infundados e manchetes sensacionalistas circulam rapidamente nas redes sociais, alimentando um discurso punitivista, que influencia políticas de segurança pública e perpetua a discriminação racial no país.

Um exemplo disso são as notícias falsas que, desde o assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco, em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro, tentam vincular seu nome ao traficante Marcinho VP. Os boatos circulam na internet até hoje.

No entanto, esse tipo de discurso falacioso, é muitas vezes impulsionado por parlamentares da direita, como o deputado federal Alberto Fraga (PL), que apagou uma mensagem no X (antigo Twitter) após a repercussão. Ele chegou a admitir à época que errou e repassou a informação sem checá-la.

O post de Fraga, publicado logo após a morte da vereadora, obteve 592 curtidas, 290 compartilhamentos e 397 comentários. 

Imagem mostra publicação no X do deputado federal Alberto Fraga (PL) com fake news sobre Marielle Franco.
Reprodução

Em março de 2024, a mesma mensagem ressurgiu nas redes sociais, circulando novamente no X, o qual um internauta compartilhou o texto completo, atribuindo-o a um deputado do MBL. O post alcançou 120 visualizações.

Ainda sobre o vínculo com VP, circulou nas redes sociais uma imagem que associava a vereadora ao traficante. Uma matéria da revista Veja desmentiu o boato, ressaltando que, na verdade, a foto não mostrava Marielle e nem o traficante.

Outra desinformação afirma que a vereadora engravidou aos 16 anos, foi casada com Marcinho VP e foi eleita pelo Comando Vermelho. Além disso, também há um vínculo a um vídeo em que supostamente defende traficantes mortos por policiais no Complexo do Salgueiro. Ambas as informações são falsas.

Uma publicação do G1 desmentiu o boato, esclarecendo que Marielle não engravidou aos 16 anos. Ela teve sua única filha, Luyara Santos, aos 19, e o pai é Glauco dos Santos.

Outro internauta compartilhou a mesma imagem que associa Marielle a Marcinho VP com o texto: “Olha o lixo MARIELLE FRANCO, ex-namorada de Marcinho VP, traficante, Brasil se livrou de um lixo”. O post, publicado em 2 de abril de 2023, obteve 93 visualizações, uma curtida e um compartilhamento. 

Abaixo da foto, havia o texto: “A heroína da Rede Globo Marielle Franco, antes de ser lésbica, sempre teve envolvimentos amorosos com os chefões do tráfico, e vários traficantes em geral, que ajudaram a financiar sua campanha para vereadora. Isso a Globo não mostra, na foto no colo do chefão do tráfico Marcinho VP, está sentada a vereadora e heroína da GLOBO, Marielle Franco.”

Casos emblemáticos e o impacto da desinformação

O professor substituto de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Edson Mendes Nunes Junior, destaca casos emblemáticos que ilustram o impacto devastador da desinformação na violência policial contra negros, como o assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018. 

A falsificação de seu envolvimento com o tráfico e a propagação de fotos falsas atribuídas a ela evidenciam como a desinformação pode legitimar a violência contra pessoas negras e reforçar um discurso de ódio. Nunes recorda: “Este foi, inclusive, o caso que me inspirou a estudar a conexão entre a desinformação e o racismo estrutural no Brasil.”

Ele enfatiza que “não basta simplesmente desmentir uma desinformação”, pois ela circula rapidamente em um ambiente já contaminado pelo racismo estrutural. 

Segundo o docente, as políticas públicas devem ser inseridas em um contexto mais amplo, que inclua a violência estatal, a lógica das redes sociais e a urgência de fortalecer as vozes das periferias.

O professor, portanto, propõe que, para combater a desinformação, seja criada uma rede de resistência baseada na educação digital e no fortalecimento de narrativas autênticas originadas de grupos marginalizados. Dessa forma, é possível ampliar a capacidade de resistência e enfrentar as estruturas racistas que perpetuam esse ciclo de violência.

Desinformação e racismo estrutural nas percepções de criminalidade

A desinformação não é apenas uma falha de informação, é uma ferramenta que confirma estereótipos já profundamente enraizados, avalia o professor.

Ele argumenta que “a desinformação serve para confirmar uma ‘memória oficial’ da violência e da segurança pública em detrimento de histórias e narrativas marginalizadas”, especialmente de pessoas negras que habitam periferias e favelas.

Nunes destaca que essa manipulação da informação não só reforça a ideia de que pessoas negras, particularmente das periferias, são “inimigas” ou “criminosas” por natureza, mas também justifica políticas punitivistas e ações violentas do Estado. 

O especialista menciona padrões perigosos de vinculação das vítimas negras a crimes que muitas vezes não cometem, como o uso de fotos manipuladas de pessoas segurando armas ou drogas. “Fotos de alguém segurando uma arma, fuzil ou droga são falsamente atribuídas àquela pessoa”, explica. 

O impacto disso vai além do simples erro factual, sendo parte de uma disputa mais ampla por poder, como ele detalha: “A desinformação não é meramente uma falsificação, mas é uma disputa de poder”, argumenta. 

Ele relaciona essa prática com momentos históricos de manipulação de informações para legitimar ações autoritárias, como no Estado Novo e na guerra no Iraque.

Nunes destaca que “não adianta simplesmente desmentir uma desinformação”, pois estamos diante de um processo que envolve a construção de um imaginário coletivo sobre quem é digno de ser tratado com respeito e quem é desumanizado. 

“É preciso fortalecer os caminhos que levam ao pensamento crítico, ao estudo da história e ao debate conectado com a realidade concreta de quem vive os efeitos da criminalidade”, defende.

As consequências do racismo nas políticas de segurança 

O racismo estrutural, segundo Nunes, é evidente nas políticas de segurança pública no Brasil, que operam em um ciclo vicioso de violência. Ele observa que “desde a forma pela qual a agenda de segurança pública é colocada, até a sua implementação, resultando em ações violentas do Estado”. 

O professor destaca que a desinformação sobre pessoas negras desempenha um papel essencial na manutenção de políticas punitivistas. Ele lembra que as famílias das vítimas frequentemente se veem forçadas a provar que seus parentes eram pessoas “dignas” e, portanto, “não mereciam” a violência, o que gera impactos sociais profundos.

Nunes Junior também enfatiza os padrões de tratamento desigual nas abordagens policiais entre comunidades negras e periféricas e áreas brancas e de maior poder aquisitivo. 

“A violência policial seletiva é apresentada como necessária para manutenção de uma ‘ordem’”, observa, citando o trabalho de Vera Malaguti sobre a difusão do medo como ferramenta de controle social. 

Segundo o docente, a desinformação tem um papel fundamental em reforçar essa seletividade das ações violentas da polícia, “ampliando e permitindo que circule em novas linguagens” por meio das redes sociais.

Atores e estratégias na disseminação da desinformação

A jornalista e pesquisadora Gabriela de Almeida Pereira, da Universidade de Brasília (UnB), explica o papel central das redes sociais na disseminação de desinformação que associa pessoas negras ao crime. 

Segundo Gabriela, essas plataformas “funcionam como amplificadores de desinformação e discursos de ódio”, uma vez que seus algoritmos favorecem o engajamento e a viralização de conteúdos sensacionalistas. 

Ela destaca que, embora muitos desses conteúdos comecem em grupos fechados como WhatsApp e Telegram, rapidamente migram para redes públicas como Facebook, Instagram, TikTok e X (antigo Twitter).

Ela também ressalta que o ambiente digital é um reflexo da sociedade, e que, portanto, a violência e o racismo estrutural “também se refletem na internet, criando uma nova arena onde os discursos de ódio contra negros se fortalecem.” 

A pesquisadora também cita o caso de Adriana Santana de Araújo, mãe de Marlon Araújo, que, após a morte do filho durante uma operação policial no Jacarezinho, foi alvo de um vídeo falso que a associava a uma cena de violência com um fuzil, publicado em meados de maio de 2021 e desmentido pelo Aos Fatos

“Adriana recebeu ameaças e, como resultado, teve que tomar medicação controlada para lidar com o impacto psicológico das agressões”, explicou Pereira, apontando como a mentira “circulará sete vezes mais rápido do que a verdade” nas redes sociais.

Uma mulher segura uma placa com os dizeres “Jacarezinho pede paz” durante um protesto contra a violência policial no Rio de Janeiro, Brasil, em 6 de maio de 2022, no primeiro aniversário de uma operação policial que deixou pelo menos 28 mortos na favela.
Uma mulher segura uma placa com os dizeres “Jacarezinho pede paz” durante um protesto contra a violência policial no Rio de Janeiro, Brasil, em 6 de maio de 2022, no primeiro aniversário de uma operação policial que deixou pelo menos 28 mortos na favela. (Foto: André Borges/AFP)

Quando questionada sobre os responsáveis pela produção e circulação desse tipo de desinformação, Gabriela Pereira observou que, embora seja difícil identificar os autores devido à criptografia das plataformas, “é possível notar um perfil dos responsáveis, que incluem grupos ideológicos, influenciadores digitais e até mesmo agentes públicos”. 

Ela também destacou a responsabilidade das plataformas, que permitem a monetização desses conteúdos, muitas vezes sem investir em medidas eficazes de moderação.

Para combater a desinformação que reforça estereótipos racistas, a pesquisadora sugere estratégias como a checagem de fatos, a educação midiática e a criação de uma ciber-resiliência para a população negra. 

“É essencial que a educação midiática seja racializada, pois as pessoas negras não são apenas vítimas da manipulação de suas imagens, mas também da desinformação sobre políticas públicas essenciais, como o Bolsa Família e campanhas anti-vacina”, alerta.

Ela enfatizou a importância de um pacto coletivo por uma educação midiática que seja efetiva e envolva a prática do amor como forma de empoderamento coletivo, como propõe bell hooks.

“A cobertura tradicional associa criminalidade às periferias e à população negra, e os programas policialescos reforçam esses estereótipos racistas”, criticou. Para ela, a mídia tem um papel crucial na redução dos danos causados pela desinformação. “Os jornalistas devem adotar uma cobertura mais responsável, priorizando o uso de dados confiáveis e evitando revitimizar as vítimas de violência”, sugere.

Ela defende que a cobertura midiática tradicional reforça o discurso punitivista ao reproduzir estereótipos racistas e priorizar narrativas que associam criminalidade às periferias e à população negra. 

“A insistência em imagens de pessoas negras algemadas, a criminalização da pobreza e a falta de contextualização histórica das desigualdades sociais contribuem para o fortalecimento de políticas repressivas que impactam desproporcionalmente a população negra. Os programas policialescos contribuem muito para essa construção tão prejudicial”, acrescenta. 

O que fazer para reduzir danos da desinformação na segurança pública

A jornalista destaca que a propagação de notícias falsas pode ter efeitos devastadores, ampliando estereótipos racistas e reforçando a violência policial. Para combater esse cenário, jornalistas e veículos de comunicação desempenham um papel fundamental. 

A pesquisadora também elenca estratégias para jornalistas e veículos de comunicação, destacando medidas que podem reduzir os impactos da desinformação e garantir uma cobertura mais ética e responsável.

  • Abordar a criminalidade e a violência policial com mais profundidade, utilizando dados e fontes confiáveis;
  • Evitar narrativas simplistas que reforçam estereótipos;
  • Não utilizar imagens de pessoas negras vítimas de violência, o que pode contribuir para o trauma e a marginalização;
  • Dedicar espaços nos meios de comunicação, como telejornais e rádios, para divulgar correções e desmentir conteúdos falsos;
  • Criar e compartilhar narrativas positivas sobre favelas e pessoas negras, sem as associar à violência ou à pobreza; 
  • Se dedicar a entender e investigar como as redes de desinformação operam, quem são os responsáveis pela criação desses conteúdos e quais os impactos dessas narrativas.

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  • Formado em Jornalismo e licenciado em Letras-Português, morador da periferia de Maceió (AL) e pós-graduado em jornalismo investigativo pelo IDP. Com experiência em revisão, edição, reportagem, primeira infância e jornalismo independente. Tem trabalhos publicados no UOL (TAB, VivaBem, ECOA e UOL Notícias), Agência Pública, Ponte Jornalismo, Estadão e Yahoo.

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