Em uma semana, as periferias do Rio de Janeiro registraram pelo menos 15 mortes decorrentes de operações policiais
Texto: Nataly Simões | Edição: Simone Freire | Imagem: Bruno Itan/Olhar Complexo
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“É muito triste você viver onde não respeitam os direitos das pessoas. Em vez de o estado entrar armado, deveria apoiar as pessoas na pandemia. Jovens que não chegaram nem aos 20 anos foram mortos. Na favela eu já senti todas as dores que uma pessoa poderia sentir”. O desabafo é da assistente social Lúcia Cabral, moradora da comunidade Matinha, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro (RJ).
Lucia Cabral é fundadora do Espaço Democrático e Abrangente (Educap), organização que atua desde 2008 na promoção da cidadania e no acolhimento das demandas sociais de mais de 500 famílias. No dia 15 de maio, em meio ao aprofundamento de problemas como o desemprego e a falta de acesso ao sistema de saúde em razão do Covid-19, os moradores da região vivenciaram mais uma operação violenta da polícia. Uma ação do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e da Desarme (Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos) deixou 13 mortos.
A assistente social é uma das lideranças comunitárias na linha de frente na defesa dos direitos das populações das periferias do Rio de Janeiro. Ao lado de outros voluntários, Lúcia se divide entre a arrecadação de cestas básicas e a mediação entre os familiares das vítimas de violência e a Defensoria Pública do Estado.
“Neste momento estou localizando as famílias das 13 vítimas da chacina para que elas tenham acesso a defensores públicos. A sorte é que no Complexo do Alemão existem diversas organizações sociais que estão na mesma luta”, conta.
“A maior parte das demandas que temos é de familiares de pessoas vítimas de violênci que precisam dos defensores públicos porque não têm condições de arcar com os custos de advogados, que chegam a cobrar R$ 10 mil delas. As pessoas que procuram o Educap também precisam de alimentos e de informações sobre como acessar o auxílio emergencial do governo, por exemplo”, acrescenta.
Sequência de assassinatos
Nos dias seguidos ao assassinato de 13 pessoas no Complexo do Alemão, foram registradas outras mortes de jovens negros em decorrência de operações policiais nas periferias do Rio de Janeiro. Na segunda-feira (18), a vítima foi João Pedro, de 14 anos, baleado dentro de casa no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, por policiais do Bope e da Polícia Federal. Sem a autorização da família, o adolescente foi levado no helicóptero de operações e os pais só o reencontram no Instituto Médico Legal (IML), para o reconhecimento do corpo.
Na quinta-feira (20), enquanto o país acabava de atingir a marca de 1.179 mortes por Covid-19 em 24 horas, contabilizadas pelo Ministério da Saúde, João Victor, de 18 anos, foi assassinado em uma ação conjunta das polícias Civil e Militar na Cidade de Deus. No momento da operação, voluntários da Frente Cidade de Deus tiveram de interromper a distribuição de cestas básicas e se proteger dos tiros nas casas dos moradores.
APONTARAM ARMAS PARA NÓS ENQUANTO TENTÁVAMOS ENTRAR NO CARRO. Somos todos da Cidade de Deus, na @frentecdd, educadores, trabalhadores locais, artistas. Estávamos NUMA AÇÃO entregando 200 cestas básicas para as famílias da região PANTANAL. DISSERAM QUE IAM CUIDAR DE NÓS
— ?? ? JOTA MARQUES (@jotamarquesrj) May 20, 2020
A defensora dos direitos humanos Renata Trajano, integrante do gabinete de crise criado pelos coletivos Papo Reto, Voz das Comunidades e Mulheres em Ação no Alemão (MEAA) para monitorar os casos de Covid-19 e prestar assistência às famílias, reitera que o isolamento social é algo distante da realidade das periferias.
“Estamos vivendo dias maus, todos os dias nos matam. Me sinto muito mal com essas mortes e saio de casa pensando na necessidade da minha gente. Nossa realidade é diferente da daqueles que podem ficar em casa. Vivemos em grandes aglomerados. Isso é a favela. Há pessoas com casas muito pequenas, como se faz isolamento?”, questiona.
O Alma Preta procurou as secretarias das polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro e perguntou a respeito das operações no Complexo do Alemão, no Complexo do Salgueiro e na Cidade de Deus. Até a publicação deste texto, a Polícia Civil não respondeu aos questionamentos da reportagem.
A assessoria de imprensa da Polícia Militar, por sua vez, informou em nota que as operações policiais no Complexo do Alemão e na Cidade de Deus resultaram de denúncias de tráfico de drogas. Em relação à ação no Complexo do Salgueiro, a PM afirmou que apenas prestou apoio e não entrou em confronto.
A reportagem questionou se os policiais seguem algum protocolo em razão da pandemia do Covid-19 e a PM não se posicionou.
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Esse conteúdo faz parte da #SalveCriadores, uma iniciativa que a partir do apoio a coletivos e criadores de conteúdo das periferias de São Paulo vai trazer reflexões e dados sobre a crise da COVID-19 e seus reflexos nas populações negras e periféricas. O projeto, desenvolvido pela Purpose, busca reforçar o importante trabalho que vem sendo feito por criadores de conteúdo e trazer pontos de vista e perspectivas que ainda não foram levantados. Os coletivos que fazem parte dessa iniciativa são o Alma Preta, o Nós, Mulheres da Periferia, a Periferia em Movimento e a Rádio Cantareira. Os conteúdos serão publicados nos canais de cada coletivo e divulgados nas redes sociais do Cidade dos Sonhos.