O que era para ser apenas um trâmite normal de retirada de documento, se tornou uma discussão sobre a cor da própria pele. Em episódio racista, a afro-empreendedora e designer Maria Gabrielly Dantas teve seu pedido de correção de cor no Registro Geral (RG) questionado. A jovem, de pele preta, foi inserida como parda no quadro de identificação oficial mesmo não se identificando com a tipificação. Para ter sua identidade respeitada, a jovem pernamubucana teve de escrever uma autodeclaração alegando se considerar uma pessoa negra.
O caso aconteceu na última quinta-feira (5), no município de Itamaracá, a 46km do Recife. Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, a designer conta que o homem que proferiu palavras duvidando da cor de sua pele era branca, aparentemente com 60 anos, e policial civil. Ele estava coordenando o processo de certificação digital em um órgão ligado à prefeitura da cidade, a Secretaria de Políticas Sociais. Responsável pelo treinamento de mais duas funcionárias, o policial achou coerente subjugar e constranger Gabrielly.
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A designer afirma que só foi ouvida ao declarar estar ciente sobre seus direitos enquanto cidadã brasileira. “Tive que responder à altura, afirmando que era um direito meu, constitucional, eu me autodeclarar e reafirmar a cor da minha pele. Em resposta, ele dizia repetidas vezes que eu não era e eu respondia que o processo estava sendo feito de forma errada. Não tem a ver com o que ele acha e, sim, como a pessoa se autodeclara, sobre quem é e o que todo mundo vê”, conta Gabrielly.
Após tentativas de diálogo para mostrar o comportamento equivocado durante o processo de trabalho, o policial pediu tempo para falar com um supervisor para avaliar a situação da empreendedora. A jovem afirma que, para pôr fim ao constrangimento, o agente se dirigiu à ela com um papel pedindo uma autodeclaração feita à mão, com assinatura e data do ocorrido. A tentativa foi de não responsabilizar o estado sobre como uma cidadã se identifica e é identificada no dia a dia.
O caso propôs uma reflexão à empreendedora de uma problemática que não é isolada e de alcance nacional. “Identificar as pessoas, arbitrariamente, de pardas é uma forma de maquiar, embranquecer e apagar a nossa população. Falta diálogos sobre isso, conversas sobre colorismo. E, acima de tudo, do país aceitar que ele é, sim, uma nação preta. Falta esse entendimento”, dispara a jovem.
Gabrielly ressalta ainda que, ao ver mais detalhes sobre o modelo de formulário usado no setor, uma das opções de identificação usadas era o termo “mulato”. Com relação etimológica com “mula”, animal, a palavra era usada para designar a pessoa que era descendente de negros africanos e brancos europeus. “Um termo racista usado continuadamente. “O que parece existir é um compromisso do sistema de manter a gente sob o olhar que continuamos escravizados, por isso o uso contínuo dessa linguagem. Algo que passa despercebido, mas que precisamos ficar atentos”, declara a empreendedora.
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Em levantamento realizado entre os anos de 2012 a 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pesquisou a cor ou raça da população brasileira por autodeclaração. Questionadas sobre a sua cor, as pessoas envolvidas na pesquisa tinham que responder se eram brancas, pretas, pardas, indígenas ou amarelas. A amostragem, realizada à domicílios, revelou que 42,7% dos brasileiros se declararam como brancos, 46,8% como pardos e apenas 9,4% como pretos. Um ano antes, em 2018, seis em cada 10 brasileiros eram negros. Isso, levando-se em consideração a definição do IBGE, que considera como negros a soma de pardos e pretos.
No último mês de julho, um outro estudo apontou que o número de brasileiros autodeclarados negros está crescendo. Como possibilidade de motivação para tal feito, o forte processo de mudança na identificação racial da população. Intitulado “De norte a sul, de leste a oeste: mudança na identificação racial no brasil”, o levantamento expõs que em 1995, 68,17 milhões de pessoas se autodeclaravam pretas e pardas; em 2001 eram 79,6 milhões; já em 2015, 107,06 milhões se autodeclaravam negros. Indicativo sobre maior entendimento sobre as práticas racistas sistêmicas e a força da autodeclaração como método de representatividade e maiores acessos no país.
Gabriela ressaltou a necessidade da gestão municipal garantir mais formação para funcionários e acompanhar os debates raciais. “Falta treinamento de formação e abordagem para esses profissionais. Uma pessoa não pode se sentir no direito de dizer a cor que nós temos. É preciso entender e ficar ciente que nós somos um grupo social e que é preciso aprofundamento sobre quem somos e como nos identificamos. Processo que precisa ser revisto o quanto antes”, pontua.
A jovem também reitera a importância da autodeclaração como chave para mais acessos e ocupação em maior número de espaços. “É muito importante que aja um entendimento que quanto menos pessoas se autodeclarem pretas, menos políticas públicas serão voltadas às nossas necessidades. Faz parte de um projeto político que nós temos que estar cientes e na luta pela garantia dos nossos direitos e melhoria dos nossos acessos”, finaliza.
A Alma Preta Jornalismo tentou entrar em contato com a assessoria de comunicação do muncípio de Itamaracá, mas, até o fechamento da publicação, não obteve retorno.
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