Por: Pedro Borges, Pedro de Oliveira e @apreta_tha
O Conselho da Comunidade Negra do Rio Grande do Sul (CODENE) entrará com uma ação na Justiça para anular pontos do termo de ajustamento de conduta (TAC) firmado pelo Carrefour, após o assassinato de Beto Freitas em uma unidade da rede varejista de Porto Alegre, em 19 de novembro de 2020.
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“Acordo para inglês ver”, é o que afirma Márcio Oliveira, presidente do CODENE. Ele acredita que o acordo fere a legislação responsável pelas ações civis públicas e a lei estadual sobre as funções do conselho.
O grupo pede anulação do ponto que garante ao Carrefour a gestão dos recursos para que os valores sejam coordenados pelo CODENE. Atualmente, a rede de supermercados contrata uma empresa de consultoria financeira para gerenciar esse dinheiro.
Responsável por mapear as vulnerabilidades da comunidade negra no estado, o conselho também pede anulação das prioridades de investimento do TAC, focadas em bolsas de estudo para graduação. O Carrefour se comprometeu a destinar R$ 68 milhões para bolsas de estudo para estudantes negros. Para integrantes do CODENE, o repasse deveria ter outras prioridades, como a assistência às comunidades quilombolas do estado.
João Alberto Freitas, homem negro de 40 anos, foi espancado por seguranças particulares da empresa Vector, contratada pelo Carrefour, em uma unidade da rede em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Após uma onda de protestos em várias cidades, a empresa promoveu ações para recuperar a sua imagem e evitar processos na justiça. A rede de supermercados firmou um TAC no valor de R$115 milhões e contratou uma empresa para fazer a gestão dos recursos, que têm sido avaliados por auditorias externas e pelo Ministério Público Federal.
“Nós somos contrários a essa solução e fizemos alguns questionamentos”, explica Márcio Oliveira. O CODENE participa de uma audiência pública da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, no dia 22 de março, para propor a anulação do TAC. O encontro ocorre às 10h, com transmissão ao vivo pelo canal da casa legislativa. A presidenta da Comissão de Direitos Humanos da casa é a deputada Laura Sito (PT-RS).
Ilegalidade
A Constituição, na forma da lei 7.347, conhecida como Lei das Ações Civis Públicas, foi assinada em 1985 e rege ações por danos morais e patrimoniais que ferem a “honra” e a “dignidade” de “grupos raciais, étnicos ou religiosos”.
O parágrafo segundo do artigo 13 da lei explica, com especificidade, como os recursos de possíveis indenizações motivadas por crimes de racismo devem ser geridos. A lei aponta que a gestão deve ser feita pelo Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SENAPIR), ou por conselhos estaduais da comunidade negra.
O estado do Rio Grande do Sul dispõe do CODENE, composto por 24 cadeiras, 12 da sociedade civil e 12 por integrantes de órgãos públicos, como secretarias de governo, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros. Uma das funções do CODENE é “deliberar, acompanhar e fiscalizar a execução das políticas estaduais voltadas à Comunidade Afro-descendente” e “contribuir na definição dos critérios de destinação dos recursos financeiros públicos às instituições que prestam serviços à Comunidade Afro-descendente”.
O artigo 13 da legislação responsável pela criação do CODENE garante a existência de fundo para receber os recursos de ações civis públicas. Uma das funções é “atuar como captador e repassador dos recursos financeiros destinados à política de atendimento e aos programas de promoção, proteção, inclusão e reparação dos integrantes da Comunidade Afrodescendente”.
Cláudia Dutra acredita que os valores do TAC devam ser aplicados para a inclusão da população negra gaúcha, sob a gestão do CODENE. “Esse conselho tem legitimidade para propor as políticas públicas, para que esse dinheiro, oriundo de uma barbárie, de uma desgraça, da morte de que levou um nosso, vá para onde é devido. Que é a reparação, para a promoção, para a proteção”, afirma.
O Carrefour defende a legalidade do acordo e afirma que “Na época da assinatura, o CODENE não fazia parte do Conselho Estadual e o termo foi assinado na presença da Defensoria Pública e do Ministério Público Federal”. O CODENE existe desde 2003.
Onir Araújo, um dos advogados ligados ao CODENE, demonstra indignação com o acordo e as prioridades definidas, como os repasses prioritários para bolsas de estudos em universidades.
“Eu, enquanto homem negro e advogado, que tem essa relação com os territórios quilombolas e negros, isso me indigna muito. Nada contra, que haja recursos para permanência, mas tem prioridade. Esse recurso poderia, com certeza, ter contribuído para salvar muitas vidas. E a gente conhece a situação prática nas comunidades quilombolas em contexto urbano em Porto Alegre”.
O CODENE também critica a falta de transparência e pede acesso a todos os detalhes dos recursos gastos. Até o momento, não há a possibilidade de acessar os fornecedores contratados pelo Carrefour, os valores repassados e sua aplicação.
O TAC previsiona o pagamento de R$ 2 milhões para que empresas de auditoria realizem a checagem dos processos feitos pelo Carrefour. Esse valor poderia ser destinado para ações públicas, se já fosse gerido pelo conselho.
“Nós enquanto sociedade civil, também afirmamos que esse TAC não nos representa, não representa a maioria do movimento negro, e é por isso a audiência pública”, afirma Cláudia Dutra.
A rede de supermercados afirma que os últimos relatórios dos órgãos responsáveis pela assinatura do acordo não apontaram irregularidades e que contratou uma empresa de consultoria para gestão dos recursos.
“Registramos ainda que, por cumprir as exigências previstas em Lei, inclusive quanto à destinação de seus recursos, o instrumento foi devidamente homologado pelo Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. […] O impacto das ações e as iniciativas realizadas pelo Grupo no combate ao racismo e à discriminação estão disponíveis no site Não Vamos Esquecer, reforçando a nossa transparência”.
O uso dos recursos do TAC do estado do Rio Grande do Sul é outro ponto de reclamação do CODENE. O acordo prevê o repasse de 30% dos recursos das bolsas de estudo para o estado e o restante da quantia, para todas as unidades da federação, inclusive o RS. Documentos obtidos pela Alma Preta mostram repasses do Carrefour para empresas de outros estados.
O acordo foi feito pelo Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS), o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE-RS), a Defensoria Pública da União (DPU) e contou com a participação da Educafro e do Centro Santo Dias de Direitos Humanos, ligado à Arquidiocese da Igreja Católica de São Paulo.
A reportagem questionou todos os órgãos. Em resposta, o Ministério Público do Rio Grande do Sul diz que “tudo foi feito dentro da legalidade”. A Defensoria Pública da União afirmou que “até a presente data, não foi identificado descumprimento das cláusulas pactuadas no TAC em ordem de determinar a adoção imediata de medidas, sendo que as atividades de fiscalização seguem de forma permanente e, havendo necessidade, medidas poderão ser adotadas para assegurar o cumprimento efetivo do acordo”.
A Defensoria Pública da União ainda sinalizou que “o TAC não impôs condenação ou prestação em dinheiro aos compromissários a ser convertido em fundo de destinação aberta, mas sim a fixação de obrigações de fazer com valoração e repasse em dinheiro de responsabilidade dos compromissários. Trata-se, portanto, de compromisso de ajustamento de conduta em que as medidas ajustadas, custeadas pelos compromissários, tiveram enfoque e direcionamento por obrigações de fazer destinadas ao cumprimento de ações afirmativas com vistas à transformação das condições sociais de pessoas negras”.
As demais instituições públicas não responderam até o fechamento do texto.
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