A Fazenda Pública do Estado de São Paulo foi condenada a pagar R$ 50 mil em indenização pela prisão ilegal de um homem em situação de rua, que foi agredido por policiais militares e acusado de um crime de latrocínio (roubo seguido de morte) ocorrido em junho de 2014 no município de Santa Bárbara d’Oeste, interior de São Paulo. A decisão ainda cabe recurso.
De acordo com a sentença, emitida em julho deste ano, o juiz Paulo Henrique Stahlberg, da 2ª Vara Cível, reconheceu que houve conduta ilícita na prática dos PMs que levou à prisão de Roberto*.
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Na ação, a defesa do acusado argumentou que ele foi vítima de prisão ilegal, tortura praticada pelos policiais e exposição midiática, já que na época dos fatos ele teve a foto do rosto exposta em jornais e veículos de comunicação como se tivesse sido o autor do crime.
Em um trecho da decisão, o juiz citou que não houve apresentação do mandado de prisão e que o flagrante foi realizado um dia após o crime, sendo que nenhuma prova do crime foi encontrada com o acusado. Além disso, Stahlberg destacou que o acusado, um homem branco e em situação de rua, tinha características distintas dos verdadeiros autores do crime, dois adolescentes brancos detidos posteriormente e que confessaram o crime.
Tortura como método para confissão de crime
Segundo a sentença, há elementos que comprovam que o acusado foi agredido pelos PMs para confessar o crime. Em depoimento na delegacia, Roberto informou que ele e um amigo foram levados para um prédio em construção, onde moravam, e agredidos por policiais militares com chutes, socos e golpes com pedaços de madeira. O segundo acusado chegou a confessar o crime, mas uma investigação da Polícia Civil identificou que eles não tinham ligação com o caso.
Os policiais negaram as agressões, mas as lesões foram comprovadas por meio de laudo médico e o relato de uma testemunha, um jornalista que estava na delegacia no dia da prisão e viu quando Roberto limpou os ferimentos dentro de um banheiro. Um inquérito policial militar (IPM) chegou a ser aberto para apurar a tortura cometida pelos agentes de segurança, no entanto, foi arquivado por “falta de elementos”.
De acordo com o entendimento do juiz responsável pelo caso, os policiais cometeram abuso de poder. “Ora, uma vez mais: se o acusado foi detido pelos policiais sem mandado de prisão, a seguir levado a uma construção (local ermo sem testemunhas), e ao chegar na repartição policial apresentava ferimentos, minimamente crível que as lesões tenham ocorrido durante o período em que estavam sob custódia dos militares”, pontuou Stahlberg.
Ainda conforme o magistrado, o valor da indenização, de R$ 50 mil “se mostra razoável, considerados a dimensão e a gravidade do ocorrido e o sofrimento vivenciado pelo demandante”.
A Alma Preta questionou a Procuradoria Geral do Estado (PGE) de São Paulo, representante da Fazenda Pública no processo, se já foi notificada da sentença, o motivo do IPM ter sido arquivado e porque houve argumentação de que não há responsabilidade do Estado na exposição da imagem do acusado, já que as fotografias foram feitas dentro de uma delegacia na presença de agentes do Estado.
Em nota, a PGE informou que foi intimada da sentença e apresentou recurso. “Neste momento, aguarda o julgamento desses embargos para analisar a eventualidade de interposição de recurso de apelação. A procuradoria não respondeu aos demais questionamentos.
‘Indenizações ainda não são a regra’
O advogado William Oliveira disse que outros elementos também foram utilizados para comprovar a inocência do acusado, como as imagens da câmera de segurança de um supermercado e uma nota fiscal que apontam que no dia e horário do crime ele e o amigo estavam dentro de um estabelecimento comercial.
Para a defesa, a decisão representa um marco diante dos casos de tortura e abuso policial registrados no país. “Infelizmente isso acontece muito, mas nem sempre as pessoas têm como brigar para que isso seja reconhecido e muitas vezes o poder judiciário tem uma resistência em reconhecer que a polícia ou alguns policiais agem dessa forma. Essa decisão é um marco porque ela se destaca em meio a tantas outras que vão no sentido contrário”, afirmou, em entrevista à reportagem.
Na análise da advogada Patrícia Teodósio, integrante da articulação negra de Pernambuco (Anepe) pelo coletivo Esperança Garcia, a reparação do Estado para pessoas vítimas de prisões injustas ainda é uma exceção no país, sobretudo no caso de pessoas negras e/ou em situação de vulnerabilidade.
“Pessoas presas, ainda que no final do processo descubra-se que ela não foi a responsável por cometer aquele crime, a regra ainda não é a reparação. Ocorreu no caso desse cidadão porque ele passou por outras violências que agregaram na prisão — ele foi agredido, teve a imagem divulgada —, mas o que a gente vê é que no dia a dia isso é muito frequente e que infelizmente o direito ainda não tem sido suficiente para reprimir ou indenizar a pessoa que já passou por isso. Na prática, a gente percebe que essas indenizações ainda não são a regra”, observou.
Para a jurista, as interseccionalidades também interferem na forma como os sujeitos serão atingidos pela violência do Estado. “Embora esse caso seja de um homem branco a gente tem intersecções entre as desigualdades porque ser uma pessoa em situação de rua com certeza contou para a presunção de que essa pessoa era culpada. Para além disso, independente da discussão se ele foi ou não culpado, é o que autoriza que as forças policiais agridam e tratem esse corpo de forma desumanizada”.
* Nome fictício utilizado para preservar a identidade da pessoa citada.